Cabeçalho da página de Sérgio Paulo Silva e hiperligação para a hierarquia superior.

Sérgio Paulo Silva, Palavras de trazer por casa, 1ª ed., Estarreja, 2007,146 págs.

A Bicicleta

Eu sei lá que idade tinha! Talvez oito ou dez anos, mas lembro-me perfeitamente da bicicleta com que eu e o meu irmão nos iniciámos na arte de bem pedalar. Não era pequenina, nem excessivamente grande como eram as dos adultos, de roda 26 ou 28, e era dum vermelho vivo. Um luxo nesses anos!

Mas recuemos um pouco no tempo. Quando eu era ganapo e fre­quentava a escola primária, muitos dos meus colegas iam descalços, porque um par de botas não era para todos. E era assim pelo país fora.

Lembro-me de ter lido – talvez num dos livros do Bento da Cruz – a história dum rapaz que tinha umas botas novas. Foi à feira e, para não estragar as botas, amarrou-as e pendurou-as ao ombro. A certa altura deu uma topada numa pedra e esfolou o dedo grande do pé. Cheio de dores e ao ver a ferida no dedo, exclamou: olha se eu trazia as botas calçadas!...

A bicicleta, nesses meus anos, era como as botas do rapaz, de tão bonita, de tão valiosa, para pôr às costas e ir a pé...

Mas o pai tinha-a comprado para nós andarmos. O pior é que eu era um azelha. Com paciência de Job, meu pai segurava a bicicleta no suporte, atrás, e corria ao meu lado enquanto eu pedalava. Passava-se isto na Torreira, em época de férias grandes, quando não havia carros e a estrada era nossa. Meu pai segurava a bicicleta e eu pedalava. Era uma coisa fantástica! Sentia-me um rei naquele corcel vermelho, dando aos pedais pela estrada fora. Um dia, meu pai fingiu segurar e deixou-me ir sozinho, vencendo distâncias. E eu pedalava, garboso, eufórico, até que dei fé de que não tinha a mão de meu pai. Nesse instante, desequilibrei-me e esfolei-me todo numa queda aparatosa.

Ainda ando de bicicleta. Quando vou ao pão ou preciso de pregos, pego na bicicleta. Mas aquela, que desapareceu na voragem dos anos, tem para mim um significado especial.

Com os meus escritos, pouco mais colhi que algumas palavras de extrema simpatia, sobretudo de pessoas de longe ou que nem sequer conheço, algumas deferentes, de escritores conhecidos, mas, no geral, muito silêncio. Conforta-me saber que ninguém é profeta na sua terra. O pior é que tão pouco logrei sê-lo na dos outros. Quando me dizem que escrevo bem, que isto e aquilo, agradeço a simpatia, mas continuo a ver-me ao espelho. Conheço bem os meus limites e insuficiências. Vivo do meu trabalho; e, às vezes, como os humildes músicos da filarmónica da minha terra, recreio-me com palavras. Com o meu pai aprendi este mister em que, para se ser mestre, é preciso treinar, treinar muito, despender um pouco mais de tempo que o necessário para ir ao pão e aos pregos.

Tantos anos depois, sempre que me sento a escrever, tenho a mão de meu pai sobre o meu ombro. Podeis imaginar o que acontecerá quando deixar de a sentir?

 

 
Página anterior Página inicial Página seguinte