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Sérgio Paulo Silva, O tiro errado de Alvarinho Vapor, 1ª ed., Estarreja, Novembro 2007, 13 pp.


O tiro errado de Alvarinho Vapor

Porque ele hoje está diferente, já poucos se recordam dum rapaz que foi aluno desta escola e que se chamava Álvaro, Álvaro Vapor. Mas, no tempo em que ele cá andava a estudar, toda a gente o conhecia; e não era por ele ser um bom aluno, mas precisamente porque ele era um pequeno mafarrico, o diabo em pessoa, como dizia muitas vezes a professora. Era um companheirão, amigo de todos, isso não se pode negar; mas só estava bem a inventar coisas e a fazer barulho, porque também era um grande tagarela que não sabia estar calado e, quando não estava a falar, assobiava.

– Alvariiinho!... – gritava-lhe a professora com um olhar ameaçador.

O Álvaro caia em si, pedia desculpa e calava-se. Mas, pouco depois, tirava

uma carocha do bolso ou um desenho do caderno e virava-se para quem estivesse mais perto:

– Já viste isto?..

Naturalmente, estava sempre de castigo, embora de pouco valesse. Um dia, porém, o Alvarinho Vapor excedeu a fasquia, como se diz, passou as medidas, e foi o fim do mundo, uma coisa nunca vista que até os jornais contaram e foi falada nos noticiários da rádio.

A ocasião faz o ladrão, diz o ditado. E como tudo servia de tentação ao Alvarinho, não espanta a ninguém que ele, na primeira ocasião em que o pai, por imperdoável desleixo, não escondeu uma espingarda de pressão-de-ar, lhe tivesse pegado e, depois de meter um punhado de chumbeiros no bolso, se tivesse metido pelos quintais e pelos caminhos atirando aos pássaros que pousavam nos fios eléctricos ou que descortinava na copa das árvores.

Felizmente para a passarada, o Alvarinho tinha pouca prática ou fraca pontaria; e se algum morreu, deve ter sido mais de susto que de chumbo. Entusiasmado, porém, o nosso mafarrico prosseguia pelos caminhos fora dando ao gatilho.

Uma andorinha, talvez fatigada de voar para cima e para baixo da rua, sempre em grande velocidade e nas constantes acrobacias com que capturava moscas e mosquitos, pousou num fio eléctrico a descansar e demorou-se um pouco, encantando a tarde com os seus gorjeios, alheia ao perigo que se aproximava, pé ante pé, agachado ao longo do muro até estar pertinho, a boa distância, para apertar novamente o gatilho.

Quando se julgou na distância apropriada, o Alvarinho aconchegou a arma à cara, apontou à andorinha e disparou. Mas, ou porque o vento fazia oscilar o fio, ou pela pouca pontaria, a andorinha fugiu espavorida e o projéctil sibilou pela lonjura do céu e foi atingir, mesmo em cheio, uma grossa e escura nuvem que naquele instante toldava o céu.

As nuvens viajam sempre pelos céus à boleia dos ventos, carregadas de água que soltam em lágrimas, como se chorassem de alegria por voltar aos rios e aos mares de que fizeram parte. Chuva é o nome que se dá a esse choro e, como qualquer pessoa, uma nuvem pode só choramingar ou chorar convul­sivamente. A nuvem, que o tiro do Alvarinho atingiu, sentiu uma dor aguda e desabou, assim de uma só vez, com violência, ali mesmo onde estava gerando um verdadeiro dilúvio.

De repente, tudo ficou inundado. Nas ruas, a água corria como se fossem ribeiros, invadia casas e garagens e arrastava tudo quanto encontrava: palhas e folhas de árvores, óleo derramado, sacos de plástico, restos de cigarros, a carcaça de um rato, bocados de jornal, um pneu careca, um frasco de iogurte ou um chinelo roto. Tudo foi arrastado num ápice pela força das águas!

Alvarinho, ensopado até aos ossos, equilibrava-se na soleira duma porta sem saber como poderia de lá sair nem quando. Só começou a respirar de alívio quando ouviu as sirenes dos bombeiros, que depressa apareceram logo seguidos da polícia, que já trazia na força o Inspector Cheirete, que não chegou a prestar serviço, porque o menino Vapor, como escreveram nos autos, tinha confessado tudo, sendo-lhe apreendido o objecto do crime, ou seja, a espingarda.

Ao longo do dia, os bombeiros não fizeram outra coisa que encher cisternas e bidões de água suja e de retirar baldes e baldes de lama.

Nessa noite, o senhor Vapor, acompanhado pelo filho, compareceu no gabinete do Presidente para resolver o assunto. Chegaram ambos com umas trombas maiores que a dum elefante velho: o senhor Vapor, porque não sabia como ia pagar tantos prejuízos; e o Alvarinho, porque já levava as orelhas bem aquecidas...

Na sala já se encontravam os donos de alguns estabelecimentos, o comandante dos bombeiros, o sargento da polícia e mais uma data de pessoas, entre as quais a professora e o delegado de Saúde Pública, que também tinha que ser ouvido.

O Alvarinho, que era um refinado papagaio, estava agora mudo como um gato morto e devia ter a cabeça muito pesada, porque não tirava os olhos do chão. O pai, o senhor Vapor, limitava-se a acenar com a cabeça e a sua cara também era de poucos amigos. Entretanto, alguém disse mais qualquer coisa na sala que ele retorquiu:

– O meu filho já pediu desculpa...

– As desculpas não se pedem, evitam-se, senhor Vapor! – comentou o Presidente.

Foi nesse momento que a professora pediu a palavra:

– Dá-me licença, senhor Presidente?..

– Faz favor...

– Queria dizer que está enganado, que as desculpas se devem pedir sempre quando as coisas acontecem, embora a obrigação de cada um seja procurar evitar que aconteçam, o que é diferente... Mas eu queria propor, para resolver este impasse, um castigo que resultasse em benefício e não uma punição vazia...

A professora prosseguiu o seu discurso, causando alguma agitação na sala. Meia hora depois, já toda a gente sabia no Café Central, que era o sítio onde se sabia sempre tudo, o resultado da infeliz caçada do Alvarinho: a espingardinha tinha sido confiscada a favor do Estado, o senhor Vapor tinha que pagar uma multa pelo seu desleixo, e o Alvarinho teria que passar as férias num laboratório a transformar a água conspurcada dos bidões e cisternas em água limpa, a contribuir para que uma nova nuvem se formasse no céu, e a separar os lixos encaminhando-os para os sítios certos.

E assim aconteceu. Quando chegaram as férias grandes, tempo de calor e de praia, o Alvarinho passou alguns dias a estender a lama ao sol. O sol evaporava a água, levando-a no calor dos seus raios para fazer uma nova nuvem. Ficava apenas a terra seca, que era devolvida aos campos. Plásticos, garrafas e tudo mais, foram levados para os postos de reciclagem. E o que era lixo, ensacado no contentor. Finalmente, a água dos bidões foi metida em grandes retortas e posta em ebulição. O vapor gerado passava por serpentinas, transformando-se em água destilada que era aparada em recipientes e depois comercializada no mini-mercado.

Quando as férias se aproximaram do fim, os companheiros do Alvarinho, que regressavam da praia e dos campos de férias, pensavam que iam encontrar o colega deprimido e cansado, mas ficaram muito admirados por ver a alegria e a destreza com que ele dominava as técnicas de laboratório. E, enfim, as aulas recomeçaram cheias de entusiasmo como se nunca nada tivesse acontecido.

  

Foi isto o que me contaram com os seus tenros olhares, escutando em alvoroço, e, quando me fui embora, a curiosidade que eu tinha era tanta que não descansei até saber o que era feito do Alvarinho Vapor. Fiz perguntas, indaguei junto de autoridades e de familiares e apurei que o Alvarinho tinha ido para a Universidade e que hoje trabalha num grande laboratório, onde verifica a qualidade dos produtos que são quase só água – sumos e coca-cola, gasosas e licores, bebidas dessas – isolando a água do que lhe é adicionado, para anotar percentagens e controlar esse tentacular negócio da água tingida.

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