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Santa Joana é uma das figuras mais marcantes do imaginário religioso
português. Para isso contribui, antes de mais, o conhecido retrato
de autor anónimo, com o seu rosto adolescente, um pouco triste, a
expressão estática e ausente. Uma coifa carregada de jóias envolve o
cabelo caído. Um longo colar de ouro rodeia-lhe o pescoço. O vestido
mostra uma finíssima gola de renda amplamente aberta sobre o peito
liso. Apesar dos caracteres pessoais marcados na expressão da boca e
nas faces redondas, infantis, parece o símbolo quase etéreo de uma
certa perfeição feminina, mais do que retrato de uma mulher
concreta, de carne e osso. Faz-nos imaginar uma princesa sonhadora,
delicada e frágil, encerrada num mosteiro invisível, como jóia
escondida num tesouro oculto.
Para quem tem alguma informação histórica, à impressão visual
produzida pelo retrato, associa-se outra, deduzida de factos reais,
mas também propícia a efabulações. O rei seu pai e os representantes
das cortes não lhe permitiram professar para poder continuar a
sucessão régia se viesse a faltar outro membro da família real.
Aceitou a imposição, mas recusou o casamento com o rei de
Inglaterra, o imperador da Alemanha e outros príncipes europeus.
Levava vida «apartada», seguia os exercícios da comunidade, mas não
dispensou os rendimentos nem a criadagem. Daí se deduz uma
personalidade virginal, porventura mais tímida do que austera,
piedosa, decerto, retirada do mundo, mas nem secular nem religiosa.
Uma investigação histórica objectiva sobre a sua personalidade
deveria contar de preferência com possíveis reconstituições da vida
conventual predominante na época, entre as ordens religiosas da
«observância» — a corrente religiosa que no século XV atribuía a
maior importância à regularidade dos actos litúrgicos, ao rigor e
austeridade da penitência, ao zelo pastoral e à severidade com que
punia faltas ou desleixos. Disciplina que contrastava com a tibieza
ou corrupção das ordens mais antigas, instaladas em mosteiros ricos,
habituadas a práticas permissivas, ou até à infracção habitual dos
votos religiosos. Os observantes atraíam assim a simpatia da família
real, de muitos senhores poderosos e de alguns eclesiásticos que os
protegiam e favoreciam.
O retrato de Santa Joana, carregada de jóias, contrasta de tal modo
com a vida austera e penitente das religiosas dominicanas, que se
torna difícil conciliar a imagem visual com a informação histórica
do ambiente que escolheu para viver. Mas esse é também uma das
contradições da sua época. Os religiosos mais exigentes, como os
franciscanos e dominicanos observantes, os jerónimos ou os eremitas,
construíram, durante a segunda metade do século XV, edifícios ricos,
imponentes, ou até sumptuosos, que o seu rigor inicial decerto devia
excluir. Se aos fundadores se associa facilmente o retrato
descarnado de S. Bernardino de Siena, ou o rosto macilento de Stª
Catarina de Sena, a perfeição corporal e as jóias ostentadas pela
princesa já não evocam a penitência das origens, mas o luxo devoto
dos protectores senhoriais que punham a sua riqueza ao serviço dos
religiosos mais severos para assim obterem a intercessão de quem
lhes parecia poder abrir o caminho do céu.
Será possível criar uma imagem visual que associe num só quadro
elementos tão contrastantes?
José
Mattoso
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