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Santa Joana Hac Hora

Santa Joana Princesa (1452-1490)

Santa Joana é uma das figuras mais marcantes do imaginário religioso português. Para isso contribui, antes de mais, o conhecido retrato de autor anónimo, com o seu rosto adolescente, um pouco triste, a expressão estática e ausente. Uma coifa carregada de jóias envolve o cabelo caído. Um longo colar de ouro rodeia-lhe o pescoço. O vestido mostra uma finíssima gola de renda amplamente aberta sobre o peito liso. Apesar dos caracteres pessoais marcados na expressão da boca e nas faces redondas, infantis, parece o símbolo quase etéreo de uma certa perfeição feminina, mais do que retrato de uma mulher concreta, de carne e osso. Faz-nos imaginar uma princesa sonhadora, delicada e frágil, encerrada num mosteiro invisível, como jóia escondida num tesouro oculto.

Para quem tem alguma informação histórica, à impressão visual produzida pelo retrato, associa-se outra, deduzida de factos reais, mas também propícia a efabulações. O rei seu pai e os representantes das cortes não lhe permitiram professar para poder continuar a sucessão régia se viesse a faltar outro membro da família real. Aceitou a imposição, mas recusou o casamento com o rei de Inglaterra, o imperador da Alemanha e outros príncipes europeus. Levava vida «apartada», seguia os exercícios da comunidade, mas não dispensou os rendimentos nem a criadagem. Daí se deduz uma personalidade virginal, porventura mais tímida do que austera, piedosa, decerto, retirada do mundo, mas nem secular nem religiosa.

Uma investigação histórica objectiva sobre a sua personalidade deveria contar de preferência com possíveis reconstituições da vida conventual predominante na época, entre as ordens religiosas da «observância» — a corrente religiosa que no século XV atribuía a maior importância à regularidade dos actos litúrgicos, ao rigor e austeridade da penitência, ao zelo pastoral e à severidade com que punia faltas ou desleixos. Disciplina que contrastava com a tibieza ou corrupção das ordens mais antigas, instaladas em mosteiros ricos, habituadas a práticas permissivas, ou até à infracção habitual dos votos religiosos. Os observantes atraíam assim a simpatia da família real, de muitos senhores poderosos e de alguns eclesiásticos que os protegiam e favoreciam.

O retrato de Santa Joana, carregada de jóias, contrasta de tal modo com a vida austera e penitente das religiosas dominicanas, que se torna difícil conciliar a imagem visual com a informação histórica do ambiente que escolheu para viver. Mas esse é também uma das contradições da sua época. Os religiosos mais exigentes, como os franciscanos e dominicanos observantes, os jerónimos ou os eremitas, construíram, durante a segunda metade do século XV, edifícios ricos, imponentes, ou até sumptuosos, que o seu rigor inicial decerto devia excluir. Se aos fundadores se associa facilmente o retrato descarnado de S. Bernardino de Siena, ou o rosto macilento de Stª Catarina de Sena, a perfeição corporal e as jóias ostentadas pela princesa já não evocam a penitência das origens, mas o luxo devoto dos protectores senhoriais que punham a sua riqueza ao serviço dos religiosos mais severos para assim obterem a intercessão de quem lhes parecia poder abrir o caminho do céu.

Será possível criar uma imagem visual que associe num só quadro elementos tão contrastantes?

José Mattoso
 

 

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