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Cláudia Pinho e Melo e José António Rebocho Christo, Proposta para uma Exposição no Museu de Aveiro. In: "AMUSA", N.º 1, Outubro de 1999, pp. 19-24.


Proposta para uma Exposição no Museu de Aveiro
 

INTRODUÇÃO

Uma exposição, em si mesma, é carregada de significados culturais e encarna uma série de opções e reinterpretações, que estão relacionadas com a mente de quem as concebe e com as peças que apresenta, opções essas, que obedecem a uma lógica interna.

Em termos semióticos, uma exposição não deixa de se constituir como um "sistema linguístico" ainda que complexo, que combina objectos de todo o tipo – legendas, vitrinas, sistemas de iluminação – os quais se estruturam de uma forma determinada. As peças sobreviveram desde o passado e, como tal, incorporam-se na "língua" contemporânea da nossa sociedade;' assim, o passado elabora­-se à luz de conceitos actuais. A criação e recriação constantes de significados, em virtude dos quais os signos e os símbolos geram outros novos, são uma parte importante do processo imaginativo, através do qual damos sentido ao nosso passado comum e à nossa actividade presente, processo no qual os museus e as exposições desempenham um papel preponderante. Como consequência surge o facto de cada exposição se constituir num acto de comunicação.

Graças à exposição de objectos, os museus reflectem e fortalecem a memória colectiva das pessoas e permitem que se adquira consciência cultural. Os objectos museais; "testemunhos mudos do passado", requerem um enfoque multidisciplinar para se poder transmitir um conhecimento multidimensional relacionado com o desenvolvimento geral da sociedade humana. A informação ou aprendizagem assim obtidos, constituem uma mensagem para os visitantes. Pode-se dizer que uma exposição de museu se ocupa essencialmente de três elementos: os objectos do museu, a mensagem e as pessoas que a recebem, ou seja, o público.

A maior parte das exposições giram em torno de um tema que contribui para transmitir a dita mensagem. Os seus fins e objectivos dependem, em grande parte, do tipo de mensagem que se pretende passar. A realidade objectiva é a fonte de todo o conhecimento humano, os objectos concretos e visíveis, constituem "factos" do processo histórico e têm, por conseguinte, uma importância considerável. Para estabelecer uma relação dinâmica entre o museu e o público, é necessário analisar os materiais a expor, o público e as técnicas de exposição mais eficazes. Os objectos seleccionados devem ser estudados de tal forma que revelem quer as suas qualidades intrínsecas, quer as explicitas, a sua origem e procedência e a função que cumprem ,na natureza e sociedade, num espaço e tempo determinados.

Condição importante de uma mostra num museu é o espaço, trata-se de deslocar os objectos e reagrupá-los num lugar novo, que ,se vai converter no espaço da exposição. Esta formula as suas próprias afirmações, através de convenções formais, nas quais figura em primeiro lugar a dimensão limitada da galeria, sendo a relação com esse espaço que vai influenciar decisivamente a forma como se gera o conhecimento.

IDENTIFICAÇÃO DAS PEÇAS QUE VÃO SER EXPOSTAS

Conjunto formado por sete painéis de azulejo monocromáticos que apresentam características idênticas: são do período barroco, situando-se em meados do século XVIII; a sua proveniência, do antigo Recolhimento de S. Bernardino de Aveiro; devem-se provavelmente a feitura de oficina / 20 / coimbrã (escola de Vital Rifarto).

O quadro que se segue, apresenta as dimensões da composição de cada um dos painéis.

 
Nº DE INV. ALTURA LARGURA PAINEL *
118/Ea 3,10 m 1,07 m A
119/Ea 2,34 m 1,61 m G
120/Ea 3,07 m 1,07 m D
121/Ea 3,00 m 1,00 m F
122/Ea 3,08 m 1,06 m C
123/Ea 3,06 m 1,07 m E
124/Ea 2,95 m 1,07 m B
 
  * Localização. Ver planta  

Tal como foi referido, este grupo de painéis de azulejo, que se propõe serem expostos numa sala do Museu de Aveiro, apresentam características comuns, formando assim, um conjunto coerente. Um dado comum a todos é a sua proveniência: o antigo Recolhimento de S. Bernardino, em Aveiro. Neste Recolhimento Feminino, da Ordem Terceira de S. Francisco, com a sua fundação . em inícios de 1680, as recolhidas sempre se regeram pelos Estatutos das Religiosas Conceicionistas de Portugal, chamadas vulgarmente de Capuchas Franciscanas Descalças. Professavam os três votos substanciais da religião e também o da clausura perpétua, voto que, no entanto,'.não era obrigatório. Na medida em que foi crescendo o número de recolhidas e o seu viver se tornou mais rígido e fechado, trataram de ampliar o edifício e de mandar construir uma igreja de maiores dimensões, a qual, em 1745, se achava concluída. Segundo Rangel de Quadros(1): "O templo do Recolhimento de S. Bernardino é todo de abóbada de tijolo e até quase metade da altura, tem as paredes revestidas de bons azulejos, representando paisagens e alguns passos da vida de S. Francisco de Assis, a cuja Ordem pertencia"(2). Em todo o conjunto do templo e das suas dependências nota-se não só uma rigorosa simetria, mas também a simplicidade própria de uma Ordem que tem como apanágio a humildade. Em 1832, o templo transformou-se em sede episcopal, e por força do decreto de  1834, este Recolhimento é extinto sucedendo-lhe o mesmo que às casas das outras Ordens. Hoje não existem vestígios do Recolhimento, demolido já no nosso século.

Outro elemento que contribui para a unidade estilística deste conjunto é o seu possível fabrico coimbrão da "escola" de Vital Rifarto. Este, pintor de azulejos e debuxador de retábulos de talha, trabalha activamente no segundo quartel do século XVIII. Raras são as obras assinadas em azulejo e este conjunto não é excepção, como tal, só através de uma análise estilística detalhada se poderá apontar o nome do autor ou "escola". Ao nível compositivo acresce que todos estes painéis apresentam uma complexa solução decorativa, sobretudo no enquadramento ornamental em detrimento das partes figurativas.

Por fim a constatação de que pertencem ao mesmo período histórico-artístico, o barroco com todo o seu esplendor e riqueza, coincidindo com uma fatia substancial do reinado de D. João V, que desenvolve as potencialidades cénicas do azulejo, tanto na sua organização compositiva, que privilegia as bocas de cena onde se desenvolvem as narrativas, como nos enquadramentos arquitectónicos. Surgem inicialmente em igrejas construídas em épocas anteriores dotadas de espaços estáticos que urgia / 21 / renovar com estes conjuntos que se impõem ao olhar do crente, seduzindo-o e convencendo-o.

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Antigo recolhimento de S. Bernardino. Vestígios dos painéis de azulejos

 


DEFINIÇÃO DOS OBJECTIVOS
(EXPOSIÇÃO)

A exposição que se propõe realizar, pretende sobretudo provocar impacto emocional e estético no visitante, não esquecendo nunca a preocupação de comunicar e informar. Estes painéis de azulejo podem ser entendidos como elementos animadores do espaço arquitectónico, que exprimem a ousadia decorativa do barroco como expressão original da arte portuguesa. Aqui não se pretende só informar, mas também permitir que o visitante se relacione de uma forma íntima e directa com as peças, fruindo-as em plena liberdade.

O conjunto não pode deixar de ser apreciado pela sua aparência visual e propõe-se ser apresentado de tal forma que as suas qualidades visuais particulares possam Ser inteiramente apreciadas pelo visitante. Deste modo, o espaço pré-existente, com determinadas características, vai desempenhar também um papel importante na concepção da exposição, inclusivamente como seu poten­ciador, na medida em que se visa que a forma e a dimensão dos objectos em relação a esse mesmo espaço tenham impacto emocional.

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SALA DE EXPOSIÇÃO DOS PAINÉIS DE AZULEJOS

Situada num espaço que "precede" a visita ao museu propriamente dito, assume-se, assim, como sala de passagem. Ou seja, todo o público que acorre ao museu a ela tem acesso, no entanto, um local escolhido pelas entidades (instituições) e museu, para aí se realizarem frequentemente exposições, actividades culturais e sociais. Ao organizar a exposição, gostaríamos que esta sala fosse um local de paragem e de reflexão, no qual todo o visitante pudesse contemplar e usufruir do ambiente criado.
 

MORFOLOGIA DA EXPOSIÇÃO
COLOCAÇÃO DOS PAINÉIS

Pensando concretamente na exposição seria conveniente que os painéis de azulejos não ficassem em contacto directo com o suporte (parede). Para tal, refere-se a sua montagem prévia em placas de acrílico (dado a elevada altura dos painéis, deverão existir 3 placas por painel) às quais serão adossados os azulejos, usando-se para tal silicone. Cada painel deverá ficar distanciado do chão a uma altura aproximada dos 60 cm, quer por uma questão de segurança, quer tendo em conta o olhar e estatura média do visitante.

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JANELAS

No âmbito da mostra que se propõe levar a cabo, as janelas desta sala adquirem um duplo sentido, como fonte de luz e como ponto de fuga através do qual se vislumbra o exterior, o que em certa medida contraria a finitude da exposição. A paisagem exterior, que pode ser contemplada pelo visitante através das janelas, define-se por um jardim cujas arvores são magníficas, transmitindo serenidade e ao mesmo tempo monumen­talidade. As janelas existentes na sala apresentam grandes dimensões e são formadas por molduras de madeira com vidros em "quadrícula" e grades exteriores em ferro. A proposta consiste em substituir, da forma mais adequada, esta estrutura por outra formada por um vidro de placa inteira (3), sem grades exteriores, decisão justificada por duas razões:

● maior aproveitamento lumínico;

● eliminação de interferências na leitura da paisagem.



CONDIÇÕES AMBIENTAIS LUZ

Para a criação do desejado ambiente lumínico, propõe-se a conjugação entre a luz solar e a luz artificial. A luz solar apresenta diversas características: é variável, difusa e contém grande quantidade de UV (raios ultra violeta). No caso das cerâmicas, material inorgânico, os raios UV não têm tantos efeitos nocivos como noutros materiais (exemplo da pintura, têxteis, papel, etc.) podendo, no entanto, recorrer-se sempre que possível ao uso de filtros (incolores), película de protecção UV, que poderão ser aplicados nos  vidros das janelas. No caso dos azulejos, o maior problema com que nos deparamos em termos de luz, é o do brilho que se reflecte no vidrado do azulejo e provoca o encandeamento do visitante, dificultando assim a leitura da peça. Apesar das janelas estarem viradas a noroeste, não havendo assim incidência directa do sol, será uma questão a reflectir pelo Conservador e pelo técnico especialista.

Como complemento da luz natural, e por forma a manter o ambiente de luz difusa, poderá ser utilizado um sistema compensatório de luz artificial (para períodos de menor iluminância), para tal pode ser utilizada a denominada vulgarmente de "luz branca solar", ou seja, uma luz artificial (que poderá ser fluorescente) semelhante à luz natural.

As cerâmicas podem ser iluminadas até níveis que podem atingir os 200 a 300 Lux.


HUMIDADE E TEMPERATURA

O grande problema com que se debate o "antigo" edifício do Museu de Aveiro, são as elevadas percentagens de humidade que se infiltra quer pelo sentido ascendente quer descendente, justificadas em grande parte pela situação geográfica do museu, que se encontra numa região onde as médias anuais de humidade do ar estão compreendidas entre os 79% e os 88%, resultando estas percentagens da evaporação permanente que se verifica na ria e ainda a humidade trazida pelos ventos quentes que, soprando do mar, são influenciados pela corrente do Golfo. O elevado teor de humidade sofre, no entanto, fracas amplitudes, tanto diurnas como nocturnas. Quanto à temperatura, a média anual é de 15°C; as temperaturas mais baixas e mais altas ocorrem, respectivamente, em Dezembro/Janeiro/Fevereiro e Junho/Julho/Agosto.

O material cerâmico é extremamente sensível à humidade, o seu corpo poroso é susceptível à  migração de sais solúveis cuja acção é muito danosa. Em muitos casos dá-se / 23 / mesmo a desintegração da chacota (corpo cerâmico) e outras vezes a destruição do vidrado, provocado pela cristalização de sais. As condições consideradas como ponto de partida para a criação de um ambiente ideal para a exposição, com níveis constantes, são as seguintes:

Humidade Relativa entre 50% a 65%;
Temperatura a 19° C.

No entanto, é necessário arranjar uma situação de compromisso entre as condições ideais e as condições ambientais existentes no museu, de modo a encontrar um ambiente em que a colecção encontre um equilíbrio.

Temos ainda que pensar que o espaço do museu não é só ocupado pelos objectos, há que considerar também o factor humano (pessoal e visitantes). O controle do ambiente deve também ter em conta as condições de conforto, para que as pessoas o possam visitar e nele trabalhar. Apesar de, na maior parte das vezes, as condições ambientais requeri das pelos objectos não serem as que mais conforto poderão dar às pessoas, há que procurar equilibrar ambas. Beneficiamos aqui do facto de os materiais estáveis, neste caso a cerâmica, serem mais tolerantes relativamente às condições ambientais.

Para melhor combater o problema da humidade, seria indispensável o uso de um desumidificador, cuja função é retirar a humidade do ar, de preferência os desumidificadores automáticos que funcionem por dessecantes. Através de informações obtidas de outros museus, a opção pela instalação de um ar condicionado, não parece ser muito eficaz na resolução do problema da humidade, para além de ter um custo elevado. Outro instrumento de controle ambiental de grande importância é o termohigrógrafo, aparelho que regista os valores da humidade relativa e temperatura, permitindo, desta forma uma rápida e eficaz intervenção no caso destes sofrerem alterações que possam ser danosas às peças.

 

LEGENDA TIPO

A informação contida na legenda que acompanha cada painel deverá ser apresentada de uma forma sumária, como por exemplo:

PAINEL DE AZULEJOS MONOCROMÁTICO SÉC. XVIII

OFICINA: COIMBRA. ESCOLA DE VITAL RIFARTO

PROVENIÊNCIA: RECOLHIMENTO DE S. BERNARDINO, AVEIRO

N° INV.: 122/Ea


Deverá ficar bem posicionada em relação ao objecto, de tal forma que o visitante facilmente obtenha a informação que procura. Não se pretende que tenha grandes dimensões, por forma a não competir em termos visuais com o objecto, e para que não haja interferências na leitura do próprio painel. Sugere-se que seja colocada à frente do painel a uma distância aproximada de 50 cm, sobre o lado esquerdo. Poderá ser uma placa de acrílico de forma rectangular (10 x 15 cm aproximadamente) com uma ligeira inclinação apoiada numa vara, também de acrílico, com a altura aproximada de 50 cm.

Na medida em que tratamos de uma proposta para uma exposição, aferimos todos os detalhes que propiciem o êxito do evento. Porém o sucesso pretendido só poderá ser efectivamente avaliado, perante a receptividade do público. Esta, naturalmente, vai passar também pela forma como se encararia a sua divulgação, elemento cada vez mais fundamental para a boa resposta a uma actividade cultural que, certamente, não surtirá efeito se não criar empatia e transmitir uma mais valia ao visitante.

Fica a ideia. Existem o espaço, os objectos, a vontade e a noção de que, a vários níveis, o museu, a colecção e o público sairiam enriquecidos.

Cláudia Pinho e Melo

José António Rebocho Christo

 

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

BELCHER, Michael - Exhibitions in museums, Leicester Museum Studies, 1991

CASSAR, May - Environmental Management. Guidelines for Museums and Galleries,
    Museums and Galleries
Comission, London, 1995.

GOMES, Marques - Memórias de Aveiro., Aveiro, 1875

GONÇALVES, António Nogueira - Inventário Artístico de Portugal. Aveiro Zona-Sul, Academia
    Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1959.

HOOPER-GREENHILL, Eilean - The Educational Role of the Museum, Routledge, Londres,
   1994.

MECO, José - O Azulejo em Portugal, Publicações Alfa, Lisboa, 1989.

PAPADAKIS, Andreas - New museology, Academy Editions, London, 1991

QUADROS, Rangel de - Aveiro Apontamentos Históricos, Vol. VI, [fotocopiado, Aveiro, 1978]

THOMSON, Garry - The Museum Environment, Butterworth-Heinemann, Oxford, 1986

THOMPSON, M. A. [et alii] Manual of Curatorship , - A guide to museum practice, Butterworth ­
    Heinemann, 2ª edição, Oxford, 1994.

 

_________________________________

 

(1) QUADROS, Rangel, Apontamentos Históricos, VoI. VI, Aveiro, 1978, p. 43.

(2) Mediante estudo iconográfico realizado, pode-se afirmar que as cenas figurativas que se observam nos painéis se referem a cenas com eremitas ou simples alusões à vida contemplativa.

(3) A espessura do vidro deve ser a suficiente para poder garantir as melhores condições de segurança passiva.

 

 

 

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