A cerca de quatro quilómetros da margem
esquerda do Guadiana, a pouca distância da sua entrada, por alturas de
Monsaraz, em território português, erguem-se, num teso de altura
mediana, os restos do castelo de Mourão, iniciado por D. Dinis,
completado por D. Afonso IV e objecto de acrescentamentos e
modificações em reinados posteriores, mormente por ocasião da guerra da
Restauração. Na encosta sul desse teso assenta a vila de Mourão, cabeça
de conselho do mesmo nome distanciada uns parcos sete quilómetros da
fronteira espanhola e catorze de Villa Nueva deI Fresno, povoação
fronteiriça com a qual mantém quotidiano e cordial trato.
Embora o dialecto alentejano possua
características gerais inconfundíveis, o certo é que de terra para terra
há diferenças curiosas, especialmente no vocabulário, dignas de nota. O
falar alentejano é cantante arrastado, dolente, reflectindo, sem dúvida,
nessa dolência a saudade das suas vastas planuras a perder de vista. Mas
nesse mesmo cantante, nessa mesma dolência, há graus que a ouvidos,
ainda aos inexpertos, não passam despercebidos. Assim a modulação do
som, o arrastado da pronúncia, divergem entre povoações vizinhas com
Reguengos Mourão e Moura.
A proximidade da fronteira e as relações
íntimas com gente da nação vizinha fazem que o falar mouranense tenha
um pouco mais de vivacidade na emissão e que o vocabulário conte muitos
termos que, incontestavelmente, são de origem castelhana, e muito
especialmente dos dialectos estremenho e andaluz. Essa mesma acção de
comunicabilidade e de interpenetração se observa também nalguns
costumes, na indumentária e na culinária. Não vem fora de propósito
dizer-se que, apesar disso, um português de Mourão e um espanhol de Villa Nueva
del Fresno têm dificuldades em se entenderem, falando cada um
deles a sua língua nacional.
Dito isto, à maneira de prólogo,
passamos a apresentar algumas particularidades do falar de Mourão, sem
pretensões de esgotarmos o assunto, porquanto as nossas nótulas mais não
aspiram que a ser classificadas de modesto ensaio
Foneticamente o falar de Mourão conserva
as vogais finas precedidas de liquida, e, assim, a pronúncia corrente de
fácil, funil, fuzil, corunchél, abril, comer, abraçar, dormir, cantar,
fugir, lavrar e outros termos semelhantes, é facili, funili,
fuzili,corunchéli, abrili, comeri, abraçari, dormiri, cantari, fugiri,
lavrari, sendo, todavia, o i final pouco acentuado, mas contudo o
bastante para não se confundir com e.
O ditongo ai permanece, mas o i
sobressai na pronúncia, dando ao ouvido a impressão quase de duas
sílabas; por isso que o i é bem acentuado, assim pai e mãe,
pronunciam-se respectivamente pá-i e mã-im. O ditongo ei desapareceu,
ficando representado pelo som e acentuado, com se verifica em féra,
géra manéra tecedéra, e outros da mesma espécie fonética, correspondentes
respectivamente a feira, jeira, maneira, tecedeira. O ditongo au latino
é representado por oi e não por ou, fenómeno este que, de resto, se dá
em muitos outros falares portugueses, especialmente do sul. Desta forma,
em Mourão, pronuncia-se toiro, toirada, oiro, teso
ira, besoiro e nunca
touro, tourada, ouro, tesoura, besouro, dando-se, por vezes, também o
caso de muitas pessoas não pronunciarem o ditongo oi mas sim,
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quiçá por influência do castelhano, ô, dizendo tôro, tôrada,
tesôra.
As primeiras pessoas do singular do
pretérito perfeito definido dos verbos em -ar ou da primeira conjugação,
por analogia com os de infinitivo em -er e -ir, terminam em
i e não em ei,
pronunciando-se ami, canti, di, unti, e não amei, cantei, dei, untei.
Mercê disto, é vulgar esta frase que se presta a um trocadilho, quando
proferida por mulher: «Ai, mana, já hoje andi tanto qu 'inda nã pari». Este
pari é o verbo parar, como se depreende facilmente pelo sentido;
mas os maliciosos, que os há e em grande número nos pequenos centros de
população, tomam-no como preterido do verbo parir.
Quando ocorrem duas vogais, uma final e
outra inicial, em regra não se fundem por crase, mas desaparece a
primeira dizendo-se tiAna, tisabel, em vez de tia Ana e tia Isabel;
diz-se, porém, tia Maria, tia Joaquina, embora seja de notar a tendência
para se pronunciar ti Maria, ti Joaquina, principalmente em tom familiar
ou zombeteiro. A mesma apócope se dá em tio, sendo uso corrente a
pronúncia tiAntónio, tiOnofre; a apócope do o, porém, dá-se também antes
dos ruídos articulados, e o dizer do povo é ti Pedro, ti João,
ti Manel,
em vez de tio Pedro, tio João, tio Manuel. É corrente o a protético,
dizendo-se alampada, avoari em vez de lâmpada, voar.
Nenhum outro caso fonético há no falar
mouranense que seja digno de menção. Morfologicamente apenas sobressai o
facto de bom ser empregado ora expletivamente, ora como interjeição de
dúvida. Apresentamos duas frases típicas, nas quais bom figura nos
sentidos que dissemos. E sejam velas em forma de diálogo, para melhor se
salientar o caso.
– Intão, vais à festa?
– Bom, não vou.
Aqui evidentemente bom é expletivo.
– António é boa pessoa?
– Bom!
Aqui o bom significa isso sim ou talvez,
podendo considerar-se como negativo ou como dubitativo.
A sintaxe é, sem discrepância de tomo, a
vulgar em todo o falar português; mas deve notar-se que, quando
concorrem pronomes pessoais de 2a e 3a pessoas, o verbo vai para esta e
não para a 2a, conforme à regra gramatical. Em obediência a êste
princípio, não se diz: Tu e Maria ides à fêra; mas sim. Tu e Maria vão à
fêra.
O que mais interessa no falar que vimos
estudando, embora sucintamente, é o vocabulário, no qual encontramos
alguns termos desconhecidos noutros pontos do país. Seguiremos na
exposição a ordem alfabética e procuraremos dar a cada vocábulo todo o
desenvolvimento possível, se bem que para alguns nos faleçam elementos
para determinação da sua etimologia. Nestes casos, quando possível,
formularemos hipóteses que se nos afigurem plausíveis, aguardando que os
entendidos na matéria se manifestem para nosso ensinamento e proveito.
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