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Agostinho Fortes, Nótulas acerca dum falar da margem esquerda do Guadiana, acompanhadas de algumas notícias folclóricas, Cadernos CA, N.º 4, 1ª ed., Lisboa, Casa do Alentejo, 2000, págs. 9 e 10.


Acerca do falar da margem esquerda do Guadiana

A cerca de quatro quilómetros da margem esquerda do Guadiana, a pouca dis­tância da sua entrada, por alturas de Monsaraz, em território português, erguem-se, num teso de altura mediana, os restos do castelo de Mourão, iniciado por D. Dinis, completado por D. Afonso IV e objecto de acres­centamentos e modificações em reinados posteriores, mormente por ocasião da guerra da Restauração. Na encosta sul desse teso assenta a vila de Mourão, cabeça de conselho do mesmo nome distanciada uns parcos sete quilómetros da fronteira espanhola e catorze de Villa Nueva deI Fresno, povoação fronteiriça com a qual mantém quotidiano e cordial trato.

Embora o dialecto alentejano possua características gerais inconfundíveis, o certo é que de terra para terra há diferenças curiosas, especialmente no vocabulário, dignas de nota. O falar alentejano é cantante arrastado, dolente, reflectindo, sem dúvida, nessa dolência a saudade das suas vastas planuras a perder de vista. Mas nesse mesmo cantante, nessa mesma dolência, há graus que a ouvidos, ainda aos inexpertos, não passam despercebidos. Assim a modulação do som, o arrastado da pronúncia, divergem entre povoações vizinhas com Reguengos Mourão e Moura.

A proximidade da fronteira e as relações íntimas com gente da nação viz­inha fazem que o falar mouranense tenha um pouco mais de vivacidade na emis­são e que o vocabulário conte muitos termos que, incontestavelmente, são de origem castelhana, e muito especialmente dos dialectos estremenho e andaluz. Essa mesma acção de comunicabilidade e de interpenetração se observa também nalguns costumes, na indumentária e na culinária. Não vem fora de propósito dizer-se que, apesar disso, um português de Mourão e um espanhol de Villa Nueva del Fresno têm dificuldades em se entenderem, falando cada um deles a sua língua nacional.

Dito isto, à maneira de prólogo, passamos a apresentar algumas particu­laridades do falar de Mourão, sem pretensões de esgotarmos o assunto, porquanto as nossas nótulas mais não aspiram que a ser classificadas de modesto ensaio

Foneticamente o falar de Mourão conserva as vogais finas precedidas de liquida, e, assim, a pronúncia corrente de fácil, funil, fuzil, corunchél, abril, comer, abraçar, dormir, cantar, fugir, lavrar e outros termos semelhantes, é facili, funili, fuzili,corunchéli, abrili, comeri, abraçari, dormiri, cantari, fugiri, lavrari, sendo, todavia, o i final pouco acentuado, mas contudo o bastante para não se confundir com e.

O ditongo ai permanece, mas o i sobressai na pronúncia, dando ao ouvido a impressão quase de duas sílabas; por isso que o i é bem acentuado, assim pai e mãe, pronunciam-se respectivamente pá-i e mã-im. O ditongo ei desapareceu, ficando representado pelo som e acentuado, com se verifica em féra, géra manéra tecedéra, e outros da mesma espécie fonética, correspondentes respectivamente a feira, jeira, maneira, tecedeira. O ditongo au latino é representado por oi e não por ou, fenómeno este que, de resto, se dá em muitos outros falares portugueses, especialmente do sul. Desta forma, em Mourão, pronuncia-se toiro, toirada, oiro, teso ira, besoiro e nunca touro, tourada, ouro, tesoura, besouro, dando-se, por vezes, também o caso de muitas pessoas não pronunciarem o ditongo oi mas sim, / 10 / quiçá por influência do castelhano, ô, dizendo tôro, tôrada, tesôra.

As primeiras pessoas do singular do pretérito perfeito definido dos verbos em -ar ou da primeira conjugação, por analogia com os de infinitivo em -er e -ir, terminam em i e não em ei, pronunciando-se ami, canti, di, unti, e não amei, cantei, dei, untei. Mercê disto, é vulgar esta frase que se presta a um trocadilho, quando proferida por mulher: «Ai, mana, já hoje andi tanto qu 'inda nã pari». Este pari é o verbo parar, como se depreende facilmente pelo sentido; mas os maliciosos, que os há e em grande número nos pequenos centros de população, tomam-no como preterido do verbo parir.

Quando ocorrem duas vogais, uma final e outra inicial, em regra não se fundem por crase, mas desaparece a primeira dizendo-se tiAna, tisabel, em vez de tia Ana e tia Isabel; diz-se, porém, tia Maria, tia Joaquina, embora seja de notar a tendência para se pronunciar ti Maria, ti Joaquina, principalmente em tom familiar ou zombeteiro. A mesma apócope se dá em tio, sendo uso corrente a pronúncia tiAntónio, tiOnofre; a apócope do o, porém, dá-se também antes dos ruídos articulados, e o dizer do povo é ti Pedro, ti João, ti Manel, em vez de tio Pedro, tio João, tio Manuel. É corrente o a protético, dizendo-se alampada, avoari em vez de lâmpada, voar.

Nenhum outro caso fonético há no falar mouranense que seja digno de menção. Morfologicamente apenas sobressai o facto de bom ser empregado ora expletivamente, ora como interjeição de dúvida. Apresentamos duas frases típicas, nas quais bom figura nos sentidos que dissemos. E sejam velas em forma de diálogo, para melhor se salientar o caso.

– Intão, vais à festa?

– Bom, não vou.
 

Aqui evidentemente bom é expletivo.

 

– António é boa pessoa?

– Bom!

Aqui o bom significa isso sim ou talvez, podendo considerar-se como negativo ou como dubitativo.

A sintaxe é, sem discrepância de tomo, a vulgar em todo o falar por­tuguês; mas deve notar-se que, quando concorrem pronomes pessoais de 2a e 3a pessoas, o verbo vai para esta e não para a 2a, conforme à regra gramatical. Em obediência a êste princípio, não se diz: Tu e Maria ides à fêra; mas sim. Tu e Maria vão à fêra.

O que mais interessa no falar que vimos estudando, embora sucintamente, é o vocabulário, no qual encontramos alguns termos desconhecidos noutros pontos do país. Seguiremos na exposição a ordem alfabética e procuraremos dar a cada vocábulo todo o desenvolvimento possível, se bem que para alguns nos faleçam elementos para determinação da sua etimologia. Nestes casos, quando possível, formularemos hipóteses que se nos afigurem plausíveis, aguardando que os entendidos na matéria se manifestem para nosso ensinamento e proveito.

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