Índice do Almanaque.
 

ALENTEJO É NOME DE MUNDO

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Poemas

Nicolau Saião

 

Tenho seguido com algum interesse, alguma curiosidade e certa nostalgia, as notícias e demais parafernália que vai rodeando o tentame, absolutamente correcto e bastante justificado, de conseguir que o “cante alentejano” seja considerado património cultural da humanidade.

Creio que o é já, independentemente de as entidades oficiais darem de maneira formal o seu assentimento. Tal como o flamenco, maravilha musical maior de “nuestros hermanos”, o cante alentejano é indubitavelmente uma das fórmulas vocais e poéticas mais belas que a imaginação, caldeada por anos de adequação intrínseca, deu à voz humana organizada num jeito peculiar.

Gostaria de pensar, de concluir e finalmente certificar que este movimento não está nem estará orientado – e muito menos capturado – por intenções de sectores que, por radical conceptualidade que pelos anos lhe tem sido própria, podem tentar colonizar as coisa que pareçam, ou se lhes antolhem, fazer aumentar a sua influência na manobra social.

O que no Alentejo, pelo tempo fora, tem sido por vezes demasiado usual…

PScriptum
– O primeiro dos poemas seguintes foi escrito nos idos de 72 e publicado por Mário Cesariny num dos boletins do Bureau Surrealista em 1978. Tinha sido cortado pela Censura quando busquei dá-lo a lume no “Distrito de Portalegre”, então dirigido por José Heitor Patrão, algumas semanas após a sua efectivação. O segundo constituiu a letra que o cantor espanhol Miguel Naharro utilizou numa das suas composições integrada no CD “Canciones Lusitanas”.

 

A obra que ilumina este bloco, “Grande Interior Alentejano” – cartão para painel de azulejo (210 cm X 200 cm), faz parte da colecção do eng.º Vítor Lemos Julião e foi elaborado por Trepal, Ldª.

 
1
POEMA ALENTEJANO
 

Nascer no Alentejo é engraçado
– com a morte debaixo e a fome ao lado.

Planta-se uma couve regada de urina
– colhe-se um maneta com viola e menina

É-se jovem e airoso como um deus antigo
– com sorriso rasgado da garganta ao umbigo

Esvoaça na rua da aldeia velha
A canção do pirata de brinco na orelha

(História contada no caminho
dos que estão
com a raiva ou o carinho
dos que vão.
História terrível
do Bem e do Mal
alentejanamente
convencional)

E o sol ao tombar doura as arcas de ouro
fugindo das trevas, vagalume mouro.

E o suão é suor de romance barato
– p’ra ter bem depressa toucinho no prato.

Saudades saudades saudades irmão
– natureza morta com cego e bordão.

Ai terra do Alentejo
corda de guitarra cigana
flor de lua ao entardecer
caranguejo de face humana
no dia negro a morrer.

(E o pastor que guardava o gado
jaz dolorido e enforcado)

Tudo está errado e tudo está certo
a oliveira ao longe e o borrego ao perto.
E balança a estrela da madre pendente
o silêncio da infância e a voz do poente.

Saudade saudade saudade perdida
na morte na morte na morte
da vida.

 
2
ALENTEJO REVISITADO

                                         a meu avô Francisco

 

                                     I

Do rosto que olha o Alentejo é o corpo
mas não somente o corpo a árvore
figueira junto ao mar um pássaro
perto do coração

Trigo que escutamos e que vemos
antes de ser o pão

A mão que desvenda
o sítio exacto da alma
vegetal animal e mineral
em todos os caminhos

Para sempre
um país sob a luz menino imemorial

                                     II

Durante tanto tempo foste
o companheiro das coisas vivas

Terás de encher agora os teus bosques ardentes
de neblina e silencio e animais sem condição

E deverás olhar as coisas mortas
como se todas as manhãs elas partissem

Tudo o que tens e que tiveste outrora
a paz que em vão buscaste tantos anos
nesse lugar fecundo ficará

Quanto oceano quanta sede quanta voz
na escuridão das searas que amanhecem

Alentejo um pão cortado
na sombra dos candeeiros dentro das casas desertas.

 

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