A
notícia da destruição de quase um hectare de milho transgénico na
Herdade da Lameira, em Silves, poderia ter sido o mote para um rigoroso
e alargado debate sobre os transgénicos, ou seja, sobre o organismos
geneticamente modificados, vulgarmente ditos OGM e a sua coexistência
com as produções agrícolas convencional e biológica. Mas, não.
O
evento que mobilizou a atenção do País, incluindo a dos governantes
nacionais, apagou-se ao confinar-se ao aspecto criminal da acção.
Talvez
por isso, não me tenha sido indiferente a opinião de um agricultor
biológico há 17 anos radicado no Algarve, divulgada num vespertino
nacional, para quem «tal como o ruído e o silêncio não conseguem
coexistir, também a agricultura transgénica inevitavelmente exclui todas
as outras formas de produção».
Para
este homem a coexistência não passa de uma miragem, de uma «manobra que
permite a algumas empresas apropriarem-se do património genético que
pertencia a toda a humanidade... e tudo isto para aumentarem os seus
lucros de curto prazo, quando a sustentabilidade da terra é o capital de
que os nossos filhos e netos vão ter de viver, e não está à venda».
Outro
episódio noticioso digno de registo aconteceu a 5 de Abril de 2006,
quarta-feira. Nesse dia, os portugueses, os que lêem jornais, — tomam
conhecimento de que «a generalização do cultivo de plantas geneticamente
modificadas (OGM) em Espanha está a causar a contaminação generalizada
das culturas não transgénicas, colocando em risco tanto os agricultores
convencionais como os biológicos, além de pôr em causa o direito à
escolha dos consumidores».
A
citada notícia tinha na sua base o relatório 'Coexistência Impossível',
publicado pela Greenpeace aquando do arranque da conferência da Comissão
Europeia sobre coexistência entre culturas transgénicas e não
transgénicas, que decorreu em Viena.
O
relatório evocado fundamentava-se em investigação pormenorizada, que
incluía testes laboratoriais de amostras recolhidas nos campos de milho
de 40 produtores biológicos e convencionais de Aragão e da Catalunha. E,
os resultados obtidos não deixavam dúvidas: com os transgénicos por
perto / p.
48 / não há agricultura convencional ou biológica que
resista.
No
documento aparece registada a presença indesejada de milho transgénico
«num quarto dos casos estudados», atingindo a contaminação o
extraordinário valor de 12,6 por cento, o que, para um número alargado
de agricultores biológicos teve, logicamente, consequências nefastas e
avultados prejuízos.
Em três
casos concretos — divulgados no relatório — o património que se perdeu
não tem preço, na medida em que «foram destruídas variedades regionais
de milho seleccionadas ao longo de várias décadas».
Assim,
neste como em outros casos de contaminação, o que está em risco de se
perder é, em primeira instância, a biodiversidade agrícola e, em última
análise, toda a biodiversidade.
Aliás,
a falta de debate deste tema na sociedade portuguesa, para não dizer o
silêncio que o rodeia é de tal ordem que a desinformação atinge
proporções preocupantes.
A
Comissão Europeia, porém, em 2005, autorizou o cultivo de 30 variedades
de milho transgénico em toda a União. Só em Espanha cultivaram-se cerca
de 100 mil ha. Em Portugal, o maior importador de milho espanhol (66 mil
toneladas em 2005), o cultivo deste milho estendeu-se por mais de 700
ha, embora o Poder Local vá dando sinais de não querer pactuar com os
transgénicos.
É,
aliás de recordar, ainda a propósito do milho transgénico de Silves, que
12 municípios nacionais e a região do Algarve, oportunamente, aprovaram
e declaram-se Zonas Livres de Transgénicos. O mais recente exemplo, que
vem aqui ao caso, pertence exactamente ao território algarvio, onde o
concelho de Lagos viu reconhecida, em Diário da República, a sua
pretensão de permanecer Zona Livre. Mas, apesar de tudo, o caso de
Silves abre a porta à dúvida: Quem poderá garantir aos consumidores
portugueses que os transgénicos ficam fora do prato?
«Transgénicos Fora do Prato» é a designação de uma associação liderada
por Margarida Silva (bióloga e docente universitária), que integra
diferentes entidades não-governamentais da área do ambiente e da
agricultura, que a propósito desta matéria têm produzido informação
rigorosa e diversificada, além de promoverem o seu debate.
Das
leituras efectuadas e dos argumentos que escassamente chegam ao grande
público resulta claro que nos antípodas da agricultura transgénica está
a agricultura biológica, cada dia mais ameaçada.
Ora é
socorrendo-me de um trabalho de Margarida Silva, intitulado «Alimentos
Transgénicos — Um guia para consumidores cautelosos» que me apraz
divulgar alguns aspectos que todos
/ p. 49 / devíamos
conhecer para melhor decidir e orientar as nossas escolhas, pois ao
contrário do que muita gente pensa este tema ou esta problemática não
começou ontem.
Em
rigor, conforme o supracitado trabalho, «a venda legal de sementes
geneticamente modificadas para cultivo comercial iniciou-se em 1992, na
China, com tabaco alterado para resistir a ataques de vírus; mais tarde,
em 1994 foi o tomate resistente a vírus (na China) ou com amadurecimento
retardado (nos Estados Unidos da América».
Estes
foram de algum modo, os primórdios, porque, daí em diante, o mercado
oferece cada vez mais versões de organismos geneticamente modificados,
como é o caso da soja, milho, algodão, colza, abóbora, batata, linho,
papaia, flores e sabe-se lá mais o quê.
Segundo
Margarida Silva, «a nível mundial, apenas quatro países produzem 99 por
cento de todos os OGM». E, nesta corrida, o pódio é ocupado pelos
Estados Unidos da América (66 por cento), Argentina (23 por cento),
Canadá (seis por cento), China (quatro por cento), além da África do
Sul, Austrália, México, Espanha e Roménia, entre outros países, que
apresentam percentagens mais pequenas».
Seja
como for, mesmo nestes países onde as percentagens são ainda baixas, os
relatos de contaminações de explorações agrícolas não-transgénicas são
uma realidade. E, é por esta e por mais um conjunto alargado de questões
que cientistas, ambientalistas e cidadãos de vários pontos do planeta
estão preocupados e consideram a questão dos OGM como uma das mais
graves a nível ambiental.
Assim,
não é descabido perguntarmos, se a intenção era conseguir uma
agricultura limpa, porque não se optou por seguir e incentivar as
práticas da agricultura biológica, que não necessita nem de pesticidas
nem de OGM, para obter uma boa produtividade?
Aliás,
a agricultura biológica é reconhecidamente uma forma de cultivar a terra
que respeita o ambiente, a biodiversidade, o bem-estar animal e a saúde
humana, apresentando-se desta forma como uma prática sustentável. E, o
pior é que a proximidade dos transgénicos está a pôr em causa a sua
existência.
Para
ilustrar o alcance da reflexão que teci em tomo desta questão lembro
aqui uma prosa de uma revista científica referida por Margarida Silva,
onde somos informados que «um pomar de macieiras em produção biológica
não só é mais produtivo, como protege melhor o ambiente (no curto e, em
particular, no longo prazo) e ainda tem maçãs com sabor mais apurado do
que um pomar equivalente em regime convencional».
/ p. 50 /
Mas tudo isso será uma miragem. Tudo isso pertencerá ao passado se nada
for feito para travar a ameaça das sementes geneticamente modificadas.
A
ironia é que a verdade sempre vem ao cimo, sempre tarde demais.
Já a
hipocrisia é uma constante diária. Veja-se por exemplo que num estudo
encomendado pela Comissão Europeia se prevê o aumento dos custos de
produção para os agricultores, convencionais e biológicos, num quadro em
que coexistem os três tipos de práticas agrícolas. Mas, como? Se no
mesmo documento se reconhece que a coexistência da agricultura biológica
e da agricultura transgénica é impossível se se mantiverem com os
actuais padrões.
Neste
contexto a questão primordial subsiste e não há volta a dar-lhe, pois
volvidos todos estes anos continuamos a não ter respostas concretas e
rigorosas sobre quais serão, no futuro, os impactos dos OGM sobre o
nosso mundo tal como o conhecemos e sobre nós próprios.
Estará
algum cientista em condições de excluir a hipótese de que iniciámos um
processo perigoso, que pode não ter retorno?
Estará
algum iluminado capaz de assegurar que os perigos inerentes a esta
caminhada não existem?
Haverá
alguém que devidamente informado e consciente não comece a perspectivar
a necessidade de se criarem bancos de todos os organismos hoje
existentes à face da terra, incluindo dos nossos próprios genes?
É que,
do mesmo modo que o passado se repercute no presente, também este irá
determinar o futuro. Um futuro que muitos desejamos sustentável...
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