O AMOR SEGUNDO AQUELA
NOITE
Não conseguia dormir, não conseguia
acordar do que vira. Administraram-lhe uma anestesia local nos olhos
quando ainda os tinha abertos: talvez cegasse, talvez pudesse sobreviver
à luz. Era premente rarefazer o perfume o perfume daquela noite,
decompô-lo por partes, uma a uma – ou não mais acordar, não mais
conseguiria fechar os olhos sobre o perfume anestésico da sua paixão por
aquela noite.
CABO OESTE
Abriu todas as janelas, varandas,
arcadas de vento, os cabelos ofegantes sem coragem para se libertarem de
uma bela cabeça. Sentou-se no meio do vendaval, nas escarpas onde a sua
pele ficara – uma camisa de náufrago esfarrapada esfarrapada por dois
invernos.
LIÇÃO NA TABERNA
O bêbedo falou de um mundo criado por um
painel de deuses, espertos, uma equipa multidisciplinar – nem podia ter
sido de outra maneira. O vinho era salgado, o céu estava debaixo dos
nossos pés e as montanhas eram estalactites penduradas sobre nós. Um
sopro de paixão varria a mesa do bêbedo, permitindo-lhe ver que
acontecera: dizia ele que, dantes, a liberdade era um tufão abrasador, a
beleza vivia na flor dourada das neves. E à medida que ia bebendo,
aquele seu mundo incandescia.
INCÊNDIO
Ergueu o primeiro cálice e bebeu de
olhos fechados, num vagar culinário, petisqueiro. Quereria talvez mais
tarde pôr fim a tudo, incinerar a própria lua sob o pretexto de que, em
qualquer dos casos, pouco subsistiria. Já agora, desejava entregar-se ao
capricho de por uma última vez, saudar os escombros da lua: bocados de
cimento espalhados pelo chão, cacos de merda cristalizada. Foi tomando
os seus cálices estranhos, cada vez mais espessos, dominicanos, até ver
os escombros com nitidez. Agora talvez pudesse incinerá-los,
processá-los mais tarde também. Enfim, pouco subsistiria, de importante
pouco sobreviveria àquele incêndio. Despedaçaria tudo, sim – ainda com
saúde, vinho, tesão. E dizia: "Se nos olhássemos nos olhos, hoje, nem
uma só cintilação se desperdiçava." Mas isso só podia passar-se na
noite, fixado como uma estampa ortodoxa no céu móvel da noite.
A MENINA MUITO TRISTE
Nunca vira olhos mais tristes. A
libertação destes olhos foi adiada e é cada vez mais incerta a data em
que a luz poderia pousar sobre eles. Nada se pode já fazer por estes
olhos: eles viram a noite apodrecer de madrugada, o hálito da
decomposição ficou neles, é impossível beijá-los. E, contudo, houve
tempos em que esses olhos se gastaram pela cidade, por muros púrpura,
sacadas, pedras duras. Tudo esses olhos tactearam sem pressa: ignoravam
que, ao verem o ódio, ficariam tocados fruta podre, bugalhos sacanas.
JANELAS
Colou os olhos à janela para viajar. Lá
em baixo, os homens pareciam ainda mais antigos do que ela fora um dia.
Escondia-se no seu silêncio húmido, um
claustro indetectável. Chegava a confundir o dia com a noite. Sobre a
mesa de pedra estavam pousados todos os seus haveres – fruteiras, chás
velhos. Em alturas solenes, o cheiro do incenso entrava pelas frestas:
ela via o amor nas suas danças de rua, os homens eram lobos esfomeados.
às vezes estremecia a vê-los rodopiar lá em baixo na vida, às vezes
fechava os olhos.
PÁSSARO
Perseguiu a beleza incansavelmente, o
pardal perseguia a beleza nas cerejas, na gula dos seus lábios. Esse
pássaro não se cansava de amar aos bocadinhos, coisas pequenas, astutas:
uma macieira, um pé de uvas doces, migalhas, sementes, bicos, vermes,
beijos, sucos.
AS CRIANÇAS
Vieram em busca dos prazeres densos,
Jardins, labirintos de onde saíssem sem remorso. Nem poderiam ter
chegado sozinhas: não saberiam como perder-se. Vieram em bandos e
esperaram amorosamente. Os jardins debruçam-se sobre si mesmos, também
eles aguardam a passagem de uma nuvem que os reflicta. Podem permanecer
dias, anos, sempre à espera. A prudência abandonou-as, os jardins são a
sua última diatribe. Virão um dia, em silêncio, analisar as ruínas.
Serão arqueólogas resignadas com a escassez de vestígios, evidências tão
precárias.
VERÃO
Era um longo corredor, dá esguiamente
para o pátio onde o vento se deitava. Sobre ele vivia um sol constante,
as portas interiores escondiam ritos, pó, geleia. Há em algumas casas a
sede das abelhas, um sistema tubular complexo, alcatruzes, sono. Aí
tecem, abrigadas.
ÁGUA
Pequeno riacho, luminoso, saltitante,
riachinho de luzes, filho da noite, fala do sol, pequeno riachinho,
luminoso, saltitante.
CONSERVATÓRIO
O arrepio das trompas chegou aos muros
das casas, pela calçada sopra o troar das trompas. Elas já não podem
convocar a ordem: a sua ordem anda dispersa, a desordem fuI gente dos
sonhos anda consigo. As trompas pegam fogo à tarde e o seu calor faz
estremecer a calçada: reparai no coração do aprendiz, ao subir.
A FALA DO ESPÍRITO
Depois, quando dentro de si parecia não
haver já lugar para qualquer esperança, ouviu o vento do fim da tarde:
anunciava-lhe um desfecho mais distante ainda, absurdo, nada do que
pudera prever – simplesmente mais claridade – o som fala de braços
abertos e por entre os seus dedos escorrem os dias, a respiração dos
estuques tépidos, o reinício, o espírito que ajuda o Arquitecto. Sim, é
possível que depois te apeteça conjecturar, deslizando os dedos sobre a
maqueta da cidade: dedos dispersos, visões sem rancor.
in NO RASTO DOS LEÕES
de Jorge Morais |