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Egas Salgueiro e a Empresa de Pesca de Aveiro – As minhas memórias

Electricistas a Bordo

Quadro geral do Santa Mafalda. Na imagem, à esquerda, o electricista, António Simões, e o segundo maquinista, João Paulo, que embarcou nesta viagem como primeiro.

Poderá ser esta a minha crónica mais pequena, mas, seguramente, será a mais sentida. Quase todos os electricistas da Empresa de Pesca de Aveiro foram meus aprendizes. Todos eles por mim formados para irem para bordo. Exige a minha consciência que destaque o que foram estes jovens, que muito me ajudaram, fornecendo-me “pistas” para as avarias que ocorriam no mar e que me contavam “Estórias” que hoje fazem parte das minhas memórias não vivenciadas, até porque tenho um irmão que embarcou no Santa Mafalda, já navio de popa.

Há aqui um pormenor interessante que não poderei deixar de referir. Nos "Navios Clássicos", a Casa das Máquinas tinha um Primeiro Maquinista, o segundo e o terceiro, que eram coadjuvados por três ou quatro ajudantes, todos eles mecânicos, que se entreajudavam. No que toca aos electricistas, apenas havia um, que trabalhava sozinho. Nos "Popas", a situação era diferente, porque, normalmente, o Primeiro era sempre um Maquinista formado na Escola Náutica. Se tirasse um curso Complementar, passava a engenheiro maquinista naval, com conhecimentos teóricos que ajudavam o Electricista.

É assim que entendo dedicar esta crónica a todos eles como uma homenagem. Hoje ligo para alguns e fico “assustado”, porque estão com os netos ao colo.

O Guilhermino “Piloto”, quando o entrevistei no Pestana dos Santos, na delegação da EPA em Lisboa, para ingresso no Santa Joana, se a memória não me atraiçoa, tinha muitas dúvidas, porquanto provinha da “construção civil”. Um belo dia, em plena faina piscatória, quando estourou um cabo do gerador do Guincho, ele teve a genial ideia de o substituir pelo cabo real da rede de pesca, protegido por uma mangueira, permitindo que o navio não necessitasse de arribar, isto é, de regressar ao porto, continuando normalmente a sua faina.

O João Ferreira, também ele electricista no Santo André, que já laborava com redes de emalhar, tinha um paiol com pneus dos “mini”, para os turcos das baleeiras(1). Como por lá passava o escape da M. P. (máquina principal), começaram  arder, enchendo a casa da máquina de fumo negro. O contramestre teve que sair em braços cá para fora, tendo-lhe sido ministrado leite, que ele vomitava todo preto, tal era a quantidade de fumo que tinha inalado. Passado o susto e recuperado, ameaçou  matar o electricista, porque nunca tinha bebido leite!

O meu irmão, António Simões, conta que uma vez, já no novo Santa Mafalda de popa, com o Capitão João Mário do Bem, estando na casa da máquina, com o Segundo a soldar, pegou um incêndio, que era só fumo preto. Tiveram de gastar todos os extintores para debelar o fogo. Entretanto já todos tinham fugido para o convés e estavam nas baleeiras, preparados para abandonar o navio. Era assim o instinto de conservação do homem, que fazia com que até os mancos conseguissem correr mais que os sãos.

Quando o mar estava sereno, toda a faina corria na maior das calmas. Quando calhava ficar encapelado e sob forte temporal, o navio era colocado de capa, isto é, aproado às ondas, para poder cortar as vagas. O navio não rangia, porque não era de madeira, mas balançava e vibrava muito. E com ele também os tripulantes, com receio pelas próprias vidas.

Muitas mais histórias haveria para contar, se tivesse oportunidade de falar com todos estes meus amigos, muitos dos quais estas crónicas me permitiram rever ao fim de tanto tempo.  Também com eles me fui revendo, com espanto e saudade, como se o tempo tivesse andado para trás. Mas por estes breves episódios nos ficamos.

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(1) - Turcos das baleeiras - Guinchos para elevar ou arriar as baleeiras.

 

 

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04-05-2018