Acesso à hierarquia superior.

Egas Salgueiro e a Empresa de Pesca de Aveiro – As minhas memórias

O Capitão São Marcos

Tenho pelo Senhor Capitão João São Marcos uma amizade especial, um carinho muito meu. E isto justifica-se por ter trabalhado com ele trinta anos e o seu gabinete ser mesmo encostado à Oficina Eléctrica. Reuníamos muitas vezes.

Clicar para ampliar.

Quando em 1974 passei a Chefe de Serviços Eléctricos, fui com ele muitas vezes para Lisboa tratar de avarias nos navios, reunindo-me com ele no Pestana dos Santos. Ainda me recordo de ter ido para o Santa Joana, no Poço do Bispo, com uma avaria no Guincho e o Sr. Capitão São Marcos apresentar-me ao Capitão dizendo:

– Está aqui o João Pires, o novo chefe de Electricidade, que lhe vai reparar o Guincho. Trate-o bem.

Fomos juntos para São Pierre e, quando saí da E.P.A., teve para mim uma frase lapidar: “Sabe, quando não exigimos aquilo a que julgamos ter direito é porque não estamos cientes de o merecer.”

Por causa da minha pronúncia (os de Ílhavo também têm), brincava comigo: «Joãooo… a água do mar tem sabão…ome!»

Entendo que a melhor forma de demonstrar a minha amizade é citar parte de um artigo dele em que me disse: «você tem todas as autorizações do mundo para o transcrever. Só lamento não o poder fazer na íntegra, mas há limitações de espaço.»

 

«Oh mar, salgado mar!

Neste cismar e congeminar sem saber porquê nem como, alheado ao brutal quadro ali presente e à vista, aquela natureza morta onde tudo era exangue, desde o peixe esventrado, às facas ensanguentadas e ao mundo de vísceras que tudo entulhavam, até aos homens alquebrados pelo duro labor, como a mim próprio a lidarmos há vários dias, sem descanso e a mexer-nos como autómatos, dei por mim a rememorar não o que ali tinha presente, mas coisas completamente diferentes e distantes, ouvidas em menino a velhos familiares pescadores longínquos de então, como eu o era agora.

Mas curiosamente, o que ouvira fora já passado não pelos próprios narradores, mas por outros mais velhos, seus pais ou avós da época heróica dos marinheiros de antanho. Eram histórias de perigo e lutas vividas no convés dos veleiros, açoitados pela violência das tempestades, com os do leme amarrados a tentarem o governo e o navio atravessado na cava do vagalhão à espera e na esperança de que, na crista, a fúria da ventania e o cachão ajudassem a empolá-lo para correr em árvore seca.

Foram algumas destas passagens vividas por gente crente e fervorosa que deram lugar e azo a quadros votivos e a promessas de em grupo, de roupa oleada e sueste vestidos, descalços, irem de porta em porta, às segundas-feiras das almas, a esmolar para o Senhor dos Navegantes.

Eram descrições e resenhas a bordo dos lugres da pesca longínqua, de trabalhos forçados e perigosos, acometidos por gente muito mais dura e destemida que eles os narradores, a viver então dias inteiros no convés, sem comer e a descer só raramente à câmara ou ao rancho a beber um trago e a buscar, por vezes à bofetada, algum amedrontado que borrado de medo se refugiara no escuro das cavernas do pique ou da rabada, fugindo à medonha visão daquele inferno dantesco, onde se juntara o sibilar do vento a vibrar no cordame dos mastros e mastaréus, fazendo o acompanhamento. Tudo afinal era o mar e a sua vivência em todos os tempos, igual ao de hoje e certamente ao de amanhã, sofrido no convés de qualquer veleiro. Só que, naquele tempo, nada chegava do exterior ao viver de bordo a alterar a morte lenta dos que ali vegetavam, a não ser o piar de alguma ave marinha ou o sopro barulhento das baleias expirando largos jactos de mar…»

 

 

página anterior início página seguinte

04-05-2018