I
Introdução
O Rio
Antuã é um curso de água que nasce no Monte Alto, em Romariz, no
concelho da Vila da Feira, distrito de Aveiro. Tem como afluente o rio
UL. O rio Antuã atravessa a cidade de Estarreja. Entre Sapais e
Esteiros, alberga espécies únicas de Fauna e Flora, tendo a sua foz,
juntamente com outros rios, na Ria de Aveiro, que nos aproxima, sendo no
entanto uma Laguna. A Empresa de Pesca de Aveiro deu o nome destes
cursos de água a navios, por iniciativa do Sr. Egas da Silva Salgueiro,
nomeado mais tarde Comendador. Eu estranhei a falta deste Rio, associado
a um navio. Na realidade, nomes como Caima, Cáster, Cértima, Marnel,
Alfusqueiro, Águeda, todos afluentes do rio Vouga e “Rio Vouga”, não
foram esquecidos; e, para minha satisfação, como verão adiante, o
Navio-Motor Rio Antuã também não.
Resumindo
a história do bacalhau
Podendo
historiar um pouco a pesca do bacalhau e não o fazer é estar sempre na
mesma página da crónica que estou a escrever! É muito difícil escrever
sobre este navio, pelas transformações e reconstruções que teve ao longo
da sua vida. A Faina Maior acompanha-nos quase desde o tempo da nossa
nacionalidade e tem histórias que nunca mais acabam. Muitos jovens, com
cerca de 16 anos e 17 anos, iam para a pesca do bacalhau e chamavam-lhe
os “verdes”. Passado um ano eram promovidos a “maduros”. No entanto, nos
anos 60 preferiram ir para a pesca do que ir para a Guerra do Ultramar.
Naquela latitude norte, nos mares de Terra Nova, os ciclones apareciam
de repente e podiam durar uma noite inteira. A noite no mar é triste,
tenebrosa. Aquilo eram Mares de Cristo! Quando o mar e o vento não
estavam de feição, o capitão colocava o navio de “capa”, aproado ao mar
e ao vento e como a máquina era pouco potente, o rumo ia-se alterando.
Para se protegerem do salitre e do frio os pescadores usavam o “sueste”
que lhes protegia a cabeça. Comiam a “chora”, aqueciam-se com aguardente
e arriavam com Deus, os botes (dóris) às 4 da manhã. Na asa da ponte, o
capitão ou o imediato avistavam e admiravam enormes icebergues, que se
deslocavam lenta e perigosamente, de uma brancura impressionante,
embelezados por vezes, por algumas focas e gaivotas, quando a bruma não
era cerrada. Os pescadores, na amurada de bombordo ou de estibordo,
também admiravam esta paisagem. Dois meses eram célebres: – Abril a
partir, Outubro a chegar, muitos na esperança de a tempo de assistirem à
Procissão da Nossa Senhora das Areias, em São Jacinto, que se celebra
nos inícios do mês de Outubro. Amiúde, havia necessidade de fazer
funerais marítimos, que criavam traumatismos psicológicos a bordo, ao
ver o corpo de um companheiro embrulhado numa serapilheira, ligado a um
ferro. Rezavam pela salvação da alma e o Capitão elaborava “O protesto
do mar”. Algumas vezes, ficavam viúvas em terra, vestidas de negro!
Na
necessidade de contactar com os seres superiores, levavam medalhas do
Senhor dos Mareantes ao pescoço, do mesmo modo que eu levei para a
Guerra do Ultramar uma medalha de Nossa Senhora, Mãe de Jesus! A
construção de Lugres e Navios-Motores de madeira de pinho manso e bravo,
era uma arte. Todavia, ao ser impregnada de gasóleo, para protecção do
bicho da madeira e óleo de linhaça, para protecção da salinidade
existente na atmosfera do mar, formava um cocktail propício às
chamas, quando havia incêndios a bordo, embora por vezes, se utilizasse
em certas partes do navio o carvalho e madeiras nobres brasileiras.
Assim, viam-se estes lugres de velas enfunadas ao vento em chamas, a
serem engolidos pelo mar, em cachões de espuma de cor alaranjada,
enroladas pela ventania, ao som dos gritos das gaivotas, até se calarem
num total silêncio. Um dos locais míticos da pesca do bacalhau, naquela
época, era Virgin Rocks (rochas virgens), com enormes escarpas, muitas à
profundidade de 3,6 mts, que até se via o bacalhau a nadar. Outras
escarpas eram de 23 e 28 metros, a partir das quais se afunda. Por lá
ancoravam muitos lugres e outros navios, construídos com madeira. Talvez
este local fosse onde mais vezes se lançou pela fonia o S.O.S. (Save
Our Souls). Disse-me quem por lá andou muitos anos, meu colega na
E.P.A. (Empresa de Pesca de Aveiro), que o tempo era de tal forma
nebuloso e o mar violento que, em tempos idos, foi instalada uma”
ronca”, como a que existiu no nosso Farol de Aveiro, para aviso à
navegação. Como funcionava é que eu não sei. A electricidade e a ar
comprimido não deveria ser, porque este local está a 90 milhas de St.
John’s e ainda não existiam painéis solares. Como seria gostava eu de
saber. Nesta situação de fogo no mar, os tripulantes quase enlouquecem,
enquanto os oficiais tentam manter a calma. Se é preciso abandonar o
navio, utilizando as balsas e até os botes, sai a Companha; e o Capitão,
como determina a Lei, é o último a abandonar o navio. Este descontrolo
mostra bem a nossa dimensão humana: à escala cósmica somos apenas do
tamanho de um grão de areia! Teria o Rio Antuã naufragado no Virgin
Rocks? Muitos dizem que sim. Mas não há certezas.
II
Navio-Motor Rio Antuã
|
BISSAYA BARRETO – O
«Bissaya
Barreto» era um navio-motor de madeira. Foi construído em 1943 por
Benjamin Bolais Mónica na Murraceira, Figueira da Foz, para a
«Lusitânia», Companhia Portuguesa de Pesca, Ldª. Em Janeiro de 1950
foi destruído por um incêndio, quando se encontrava em reparações no
Rio Douro. Juntamente com o navio gémeo «Comandante Tenreiro», foi
um dos primeiros navios-motores de madeira. |
Vamos
procurar escrever a história a deste navio através de informação
recolhida por pessoas de elevado crédito e testemunhas orais. Passados
tantos anos, ainda tenho muitos amigos que são autênticas bibliotecas
vivas. Embora não sendo eu da época dos Lugres, nem dos Navios-Motores,
lembro-me ainda, tinha cerca de 8 anos, de entrar a bordo do Navio-Motor
Adélia Maria. Está no meu imaginário o saco de lona, com a roupa e o
cheiro ao óleo de fígado de bacalhau. Este Navio-Motor de dois mastros,
que viria a chamar-se “Rio Antuã”, de madeira, era gémeo do
“Comandante Tenreiro”, sendo os dois primeiros navios do projecto
“Renovação” de 1934 para a C.R.C.B (Companhia Reguladora do Comércio de
Bacalhau). Foi construído por Benjamim Bolais Mónica, em Murraceira, na
Figueira da Foz, para a Lusitânia Companhia de Pesca, com seca e
secadouros na referida cidade.
Foi
equipado com um motor propulsor Diesel da Sulzer, com uma potência de
500 BHP a 300 r.p.m. Tinha um comprimento de 46,73 Mts. Já possuía um
motor do molinete e transportava 55 botes (dóris) com 19 tripulantes e 49
pescadores. No dia 4 de Abril de 1943 aconteceu o bota-abaixo. Cortou o
cabo da bimbarra o patrono do navio, Professor Doutor Bissaya
Barreto. Por ironias do destino, reparei o guincho do Bissaya
Barreto, já como arrastão lateral em aço, comandado pelo Sr. Capitão
José Augusto Senos, de Ílhavo, no ano de 1975. Só eu sei o trabalho que
tive para retirar uma peça da EFACEC, pois tinha acontecido o 25 de
Abril e estávamos em pleno PREC. Ainda no ano de 1943, foi registado na
Capitania da Figueira da Foz, com o número oficial B-278 e o indicativo
de chamada CSLN, pois tinha um E/R Marconi. O mestre Benjamim Bolais
Mónica foi condecorado por esta construção com a medalha de Mérito
Industrial, pelo Governador Civil da Figueira da Foz, representando o
Governo. A 21 de Janeiro de 1950, quando estava fundeado no rio Douro,
sofreu um violento incêndio que o deixou praticamente destruído. Os
destroços do “Bissaya Barreto”, agora com o nome de “Samagaio”,
com número oficial P-1160-TL, saíram do Porto, a reboque para a Gafanha
da Nazaré, no dia 27 de Novembro de 1951, por terem sido adquiridos pela
Empresa de Pesca de Portugal, Lda, com sede e secadouros em Ílhavo. O
mestre executante foi José Gomes Martins (o Viola), discípulo do mestre
de construção naval, Manuel Maria Bolais Mónica, no estaleiro dos
herdeiros de António Bolais Mónica. O motor propulsor SULZER, do
“Bissaya Barreto”, foi recuperado e reinstalado. O bota-abaixo foi
levado a cabo a 24 de Abril de 1955, agora com o nome de “Paraíso”.
Saiu de Aveiro para a primeira viagem, no dia 22 de Maio, com escala em
Setúbal, para carregar sal e em Lisboa, para embarcar mantimentos e
receber a companha.
III
|
PARAÍSO – Navio motor de madeira, sucessor do Bissaya Barreto. Foto
de autoria não identificada. |
No ano a seguir, em 1956, o “Paraíso” foi adquirido pela
Empresa de Pesca de Aveiro, Lda., com sede em Aveiro, julgo ainda que no
N.º 6 da rua Dr. Barbosa de Magalhães, em frente ao Rossio, possuindo secadouros e grandes oficinas, onde trabalhei 30 anos, na Gafanha da
Nazaré, com a gerência de Egas da Silva Salgueiro. As características
são praticamente as mesmas; apenas o E/R passou a ser da S.A.I.T. A 4 de
Maio de 1956, foi registado, na Capitania do Porto de Aveiro, alterando
o nome para “Rio Antuã” e o número oficial para A-1158-N, nome
este que faltava na longa história da Empresa de Pesca de Aveiro. Para a
campanha de 1962, vendeu a E.P.A à Sociedade Gafanhense, Lda, com
instalações na Gafanha da Nazaré e gerência de Virgílio Ribau. Registado
em Dezembro, manteve a denominação e alterou o número oficial para
A-1596-N.Em 1965, quando o “Rio Antuã” arribava a St. John’s, já
muito perto da entrada deste porto, ficou fechado e apertado no meio de
um extenso campo de gelo. Valeu-lhe o navio-hospital “Gil Eannes”, que
foi do porto em seu auxílio, fazer de quebra-gelos. (Foto c) Sofreu
avarias graves na roda de proa e teve de entrar em doca seca. Em 1967,
foi em seu auxílio o “Senhora da Boa Viagem”, porque estava a fazer água
à popa, junto do leme e as bombas de esgoto já não conseguiam dar vazão.
Em 1972, foi transformado em navio de redes de emalhar com 5 lanchas.
O “Rio
Antuã” iniciou a pesca no dia 30 de Junho de 1973, já eu tinha
regressado da Guerra Colonial em Angola. Tinha a bordo 2.000 quintais
(120 toneladas) de bacalhau salgado verde, até que, no dia 31 de Agosto,
quando estavam a jantar, deflagrou um incêndio na casa da máquina, por
um curto-circuito. Era uma situação natural e frequente, porque, à
época, as protecções eléctricas eram muito escassas. Tinha apenas um
simples fusível sem qualquer poder de corte. Rapidamente se alastrou ao
navio todo. O Capitão emitiu um S.O.S. e ordenou à tripulação para
abandonar o barco. Os navios “Conceição Vilarinho”, “Novos Mares” e “São
Rui” recolheram os náufragos, que foram transferidos para o “Senhora da
Boa Viagem”, que os transportou para St. John’s. Dias depois,
regressaram a Portugal de avião. À data desta Crónica, desconheço o
local do naufrágio.
|
Rio Antuã – Proa do barco danificada num banco de gelo. Fotografia
cedida pelo Capitão Francisco Paião. |
IV
Agradecimentos
–
À Dr.ª
Ana Maria Lopes, com o seu blog "Marintimidades".
–
Ao meu
Amigo Tiago Neves, com o seu blog "roda-do-leme".
–
Finalmente ao meu amigo José Nicolau, da fundação Gil Eannes. Este
navio-hospital foi a construção N.º 15 do E.N.V.C. (Estaleiros Navais de
Viana do Castelo). Começou a sua actividade em 1955, que além de todo o
equipamento médico, trazia a bordo uma imagem de Nossa Senhora de
Fátima, semelhante à que ainda se encontra hoje no Campo Militar do
Grafanil em Luanda e donde me enviou a principal literatura, porque
ninguém faz um trabalho destes sozinho, permitindo-me recordar Viana do
Castelo, já que sinto qualquer coisa que em Portugal se chama SAUDADE!
V
Alguns
reflexos das minhas memórias
–
A ponte
Eiffel, de tão gratas memórias, que liga Darque a Viana.
–
O hotel
Afonso III, (O quinto Rei de Portugal, que tinha o cognome de o
“Bolonhês”). Hotel que já não existe, onde costumava pernoitar, quando
tinha de fazer provas de mar e onde me reunia com os técnicos que vinham de
todas as partes do Mundo. A E.P.A sempre me tratou muito bem.
–
Recordo-me ter estado com Amália Rodrigues, madrinha das festas da
Nossa Senhora da Agonia e a sorrir cantar” Havemos de ir a Viana”. Sendo
esta festa a Romaria de todas as romarias” Foi Deus” que a
enviou!
–
A
pastelaria Zé Natário, já falecido e amigo pessoal do
escritor brasileiro Jorge Amado, ainda em funcionamento, liderado
agora pela Esposa.
–
O Café
Sport, restaurante desde 1955, onde almoçava muitas vezes. E que
delícia! Lá se comia uma “Chora”, fazendo lembrar os lugres a pescar
bacalhau!
–
O restaurante “Os 3 Potes”, onde almocei com o Eng.º Pimpão,
Administrador dos E.N.V. C. aquando da inauguração do navio Murtosa, em
1976, construção N.º 96. Restaurante a funcionar desde 1972. Era
anteriormente uma
padaria com um forno comunitário. Decorado com pedaços de
muralha do século XVI. Estava sonorizado com uma música de fundo bem
portuguesa. Um autêntico restaurante bem requintado.
–
A Zefa
Carqueja, um restaurante secular, sempre muito bem afreguesado, nas
proximidades do Forte Santiago da Barra. E outros que já se apagaram da
minha memória e também já não existem.
–
O
Santuário no Monte Santa Luzia, onde se pode admirar a Princesa do Lima,
cidade que descansa na margem direita do Rio Lima, que nasce na Galiza e
abraça o Atlântico mesmo junto à foz.
–
Gosto de
recordar que se circulava de Viana a Aveiro pelas estradas nacionais e
quando me aproximava de Esposende encantava-me a Estalagem Zende,
construída no tempo do governo de Marcelo Caetano e inaugurada a 1 de
Maio de 1969, classificada com 5 estrelas, rodeada de palmeiras, que me
faziam recordar as palmeiras no norte de Angola, para construir um
abrigo subterrâneo e era um sonho meu lá ir. Cumpri esse sonho numa
passagem de ano em 2009/2010, em família e na companhia de uns grandes
amigos meus.
–
Por
último, entrar em Ofir próximo ao rio Cávado e juntamente com um colega
meu da E.P.A. comprar por tradição as famosas “Clarinhas de Fão”, um
doce secular. Aqui em Ofir, era onde o Sr. Egas Salgueiro gostava de passar
o Réveillon. Será que tinha a ver com a loja de artigos de pesca que
existia em Luanda, na Salvador Correia?
Aveiro, Setembro de 2020
João Pires Simões
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