A 3 de Janeiro de 1967, fui incorporado no S.M.O. nas Caldas da
Rainha, como instruendo do C.S.M. Era um menino grande, fazia muito frio
e a minha roupa interior, mergulhada nas águas barrentas das lagoas, no
treino militar, bem incomodavam a minha Mãe que me dizia que eu não
ganhava para o sabão azul e branco. Qualquer comparação com a cor dos
ovos-moles é pura coincidência. Bem tentei fugir deste inferno, ao
abrigo de um Dec. Lei de Óscar Carmona de 1927 e meter-me noutro, onde é
quase sempre inverno, na pesca do bacalhau, mas não consegui, por já
estar incorporado nas Forças Armadas. Ainda bem.
O Menino João, com 23 anos resolveu ir para Angola, porque não quis ser
desertor nem refractário, corria o ano de 1968, em Janeiro.
Obrigado, embarquei no paquete Uíje, que mais parecia um navio
Negreiro, sem algemas! Na bagagem apenas levava enguias, já que não
tinha condições para levar doces, numa viagem que imaginava longa, como
foi. Ao aproximar-me de Angola, olhando para Luanda, vislumbrava o B.C.A.,
o edifício mais alto do Império português no Mundo, com os seus 26
andares e 87 metros de altura. Iria lá eu pensar que ali se tinham
comido ovos-moles, neste Hemisfério Sul?
O acrónimo do Banco Comercial de Angola era ironizado pelos
Luandenses, que diziam “Bai Crescer Ainda”. Nunca mais parava de
crescer!
Inaugurado simbolicamente em 1964 por entidades oficiais do
Continente, foi em 1967 definitivamente inaugurado e teve como
protagonista o Governador-geral de Angola, Camilo Rebocho Vaz, de Avis
mas com família em Aveiro, o Comandante-Chefe da Fortaleza e entre
outros ilustres convidados, o meu Sogro, Empreiteiro-Mor dos CTT de
Angola, onde a gula foi evidente. Entre outros acepipes, o marisco foi
rei, o bolo era enorme, cuja maquete e confecção foi feita na
Paris-Versalhes, situada no Largo D. João IV, não regado a espumante,
mas a champanhe, tendo também por companhia os ovos-moles de Aveiro. O
bolo era tão grande que não cabia nas portas dos elevadores e teve de
ser a Câmara com a ajuda de gruas a levá-lo para cima. No terraço do 21º
andar, onde neste enorme edifício só havia uma residência do empresário
Manuel Vinhas, dono das cervejas CUCA e NOCAL, que se entretinha a fazer
safaris!
Embora a Paris-Versalhes tivesse sempre ovos-moles, da Maria da
Apresentação a funcionar desde 1882, que viajavam nos CTT de Aveiro para
Lisboa e na TAP para Luanda, eu só levei para Luanda duas vezes
ovos-moles, quando viajei na TAP de Lisboa para Luanda e então a festa
era no Baleizão, no Largo Infante D. Henrique. Hoje apenas existe o
Largo, como que a homenagear a terra do velho Tárique Aparício, natural
de Beja, do lugar do Baleizão, ficando no nosso imaginário a ceifeira
Catarina Eufémia, que morreu pela sua dignidade!
Porque Angola era a Província (agora Colónia) mais portuguesa da
África e da Ásia, muitas pessoas passavam por Aveiro, para deixar e
levar encomendas. Recorda-me de comer enguias de escabeche e ovos-moles,
num restaurante nas proximidades da Maianga, ali para os lados da rua
António Barroso, numa esplanada com umas trepadeiras a dar sombra. Não
me recordo do nome, como é evidente.
Nestas coisas de doces conventuais, há dois ingredientes comuns que são
os ovos e o açúcar. Se os primeiros exigem cuidados básicos de
qualidade, o açúcar transporta-me para a Rota do Açúcar, de África para
as Caraíbas e para o Continente Americano, onde o Brasil era o primeiro
produtor mundial da cana-de-açúcar, logo para a História da África
Negra, nesta tragédia mundial que foi a escravatura. Se é verdade que os
portugueses se distinguiram pela negativa, pelo seu transporte, não é
menos verdade que os ingleses até criaram a Lloyds Bank, uma seguradora
de mercadoria, que era carne humana. Bem conheci a Lloyds Bank e sei que
pressionavam os comandantes dos navios negreiros, porque trabalhei com
eles 30 anos. Sorte tive pois a minha mercadoria eram máquinas
eléctricas. No entanto, sendo eu europeu e português, no meu País tanto
é ladrão aquele que rouba, como o que fica à porta. Se com a Revolução
Industrial no Século XVIII os ingleses aboliram a escravatura, não foi
numa lógica humanitária, mas puramente comercial, porque verificaram que
o ser humano, independente do pigmento da pele, é mais produtivo sendo
livre!
Então, depois destas introduções, que são retalhos do meu livro, na
hora de votar, todo o Distrito de Aveiro, deve-se orgulhar de sermos
aveirenses e ainda mais, os Concelhos que têm o privilégio de serem
beijados pelas águas da nossa Ria. E se Aveiro é conhecida pela Veneza
Portuguesa, então é porque não falta água, que é também um dos
ingredientes da receita dos ovos-moles, além do muito saber.
O ser de Aveiro
«Que ser especial, ser de Aveiro!
Nascido junto à proa ou mesmo à ré
duma bateira ou barco moliceiro,
Baptizado com água da maré.»
In:
Amadeu de Sousa, poeta aveirense.
Para eleger «Um doce conventual,
como não há outro igual».
Aveiro, 18 de Agosto de 2019
João Pires Simões
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