Estávamos
em 1961, o ano exacto quando começou a Guerra do Ultramar, em Angola, e
trabalhava eu no Francisco dos Santos Piçarra, na rua Comandante Rocha e
Cunha.
Era meu
chefe de electricidade o Sr. Gamelas, um cagaréu do Bairro da Beira-Mar,
antigo colega do meu pai, segundo creio, na Escola Industrial Fernando
Caldeira, em Aveiro, onde tiraram o Curso de Desenho Industrial.
Escola Industrial Fernando
Caldeira, segundo um postal ilustrado da época. In «Aveiro
e Cultura».
Manuel
Gamelas nasceu em 1923. Além dos dotes técnicos no ramo da
Electrotecnia, tinha de se refugiar de uma profissão altamente
desgastante. A solução que encontrou foi o recurso à fotografia como
hobby, desejando com ela contribuir para divulgar a sua terra, que
ele considerava como que um enorme clarão de beleza natural, um universo
cheio de luz e de cor, realçando-lhe a Ria, os seus barcos, o seu
casario e as suas gentes. Metia-lhe impressão a pintura abstracta.
Gostava de coisas concretas. Alguém lhe disse um dia que aquilo era como
o canto dos passarinhos: – ou se admira ou não se gosta de ouvir! Foi
galardoado com o 1º prémio a cor no IV Salão Ibérico.
O senhor
Gamelas idolatrava os moliceiros, únicos no mundo, onde até as pás da
borda, em riste, servem para acrescentar às velas e para navegar à
bolina. Velas que por vezes era preciso rizar.
Lembro-me
bem dele! Andava sempre com um banquinho para o Sr. Carlos Roeder se
sentar, quando começou a ir ao Piçarra, com a intenção de transformar
esta Empresa na Frapil, o que veio a acontecer. A fabricar Aparelhagem
de Medida eléctrica e Alternadores, que, por ironias do destino, eu
haveria de reparar, perto de São Salvador do Congo, hoje M’Banza Congo,
na Província do Zaire, no norte de Angola.
Queixava-se ao meu Pai que eu era um bom rapazinho, com 16 anos, mas
muito distraído; e dizia-me sempre: – Despacha-te senão nunca mais é
meio-dia!
Esta
expressão apareceu em 1743, quando o relojoeiro suiço Jungan fez um
relógio em que o ponteiro das horas tinha a figura de uma mulher; e o
ponteiro dos minutos a figura de um homem. Obviamente que há aqui um
cariz sexual evidente!
Com ele
aprendi a construir máquinas eléctricas, copiadas do fabricante alemão
Hansa. Não eram muito perfeitas, mas eram os conhecimentos que tínhamos.
Construíamos os ventiladores para as casas das máquinas dos navios,
chamados Sirocos, palavra que eu desconhecia e que designa um tipo de
vento proveniente do norte de África, que sopra no deserto do Saará;
Sirenes, para navios, que ainda hoje estão no navio museu Santo André, e
ara antiga Policia de Viação e Trânsito; e motores para os Carrinhos
Eléctricos que andavam na Feira de Março. E tinham também uma equipa de
electricistas para reparar navios, no cais dos bacalhoeiros, na Gafanha
da Nazaré.
Mais
tarde, quando em 1963 saí para a EPA, vinha ter comigo e ficava admirado
pelas oficinas que tínhamos na Gafanha da Nazaré. Até porque me tinha
começado a especializar no controlo electrónico de máquinas eléctricas.
Parece-me que ainda o estou a ver de bigodinho branco.
Numa dada
altura, mandou-me levar um pacote de lâmpadas a uma Draga, que estava a
trabalhar junto à EPA, a norte da ponte cais n.º 3, mas a uma distância
de uns duzentos metros. Não eram lâmpadas quaisquer, já que nos navios
havia diversos tipos de trepidações: eram de baioneta e casquilho B22.
Então lá
fui eu, numa bicicleta de cor alaranjada, para a Gafanha, olhando para o
Lago do Paraíso e para as marinhas de sal, que tão bem conhecia. Era uma
águia a conduzir! Metia as mãos nos bolsos e só pedalava, deixando livre
o guiador. Andava por brincadeira aos ziguezagues. Só não sabia “sacar
cavalos” que isso são modernices deste século.
Bem
chamava pelo Mestre, para entregar as lâmpadas, mas ninguém me ouvia.
Como a maré estava vazia, reparei que assentavam na lama uns enormes
tubos de descarga; e resolvi começar a caminhar por eles. Mas à medida
que me ia aproximando da Draga, os tubos iam ganhando água e com a
marola da ria. Eu era ainda uma criança, mas não era parvo e até sabia
nadar. Não me apeteceu tomar banho e atirei com o pacote das lâmpadas à
água e retornei quase de gatas até terra. Esta foi a minha Prioridade.
E afinal onde estão as lâmpadas? Com a preia-mar devem ter saído pela
Barra de Aveiro e foram dar à costa, sabe lá Deus onde!
Recordando a Prioridade, dei comigo a pensar que na rotunda da
Mainga, ali para os lados da rua António Barroso, em Luanda, quando
estive na Guerra do Ultramar, em Angola. O meu sogro teve um “Quid
pro quo” com outro condutor que circulava na rotunda e percebeu que
não tinha prioridade. Mas deu a volta ao texto e respondeu-lhe à letra:
– prioridade tenho eu que vivo aqui há 30 anos!
Afinal,
até no código das estradas a antiguidade é um posto.
Aveiro 18
de Janeiro de 2021 |