Eu moro muito perto da Escola
Secundária Mário Sacramento. Daquela que está lá hoje com obras de
transformação que foram interrompidas com explicações rotas que, a
serem verdade, deveriam ter sido devidamente ponderadas antes do
camartelo ter começado a trabalhar.
Conheci relativamente bem o
edifício que foi inaugurado por volta de 1955 para albergar a então
designada EICA, acrónimo de Escola Industrial e Comercial de Aveiro. A
minha mãe matriculou-me num ciclo preparatório de dois anos, pensado
para deixar desabrochar os talentos dos jovens cujas famílias não
tinham posses para frequentar o Liceu. Eu tive a sorte, enquanto
frequentei o ensino técnico, de ter encontrado sempre excelentes
professores. Eu matriculei-me no segundo ano da vida de uma reforma
desse ensino técnico que visava dotar, com uma sólida base
profissional eminentemente prática, os jovens cujas famílias careciam
de os lançar no mercado do trabalho o mais precocemente possível.
Concluído o Ciclo Preparatório, que
englobava as cadeiras de Português, Matemática, Desenho, Trabalhos
Manuais e Moral, os alunos eram avaliados segundo as capacidades que a
frequência dessas cadeiras permitia revelar. E um conselho de
professores indicava aos encarregados de educação dos jovens qual o
curso para eles mais adequado, não só ponderando as respectivas
classificações, mas também as apetências que uma avaliação continuada
deixava adivinhar.
Comigo passou-se até uma coisa
curiosa, que não resisto a lembrar. Concluído o Ciclo Preparatório, a
minha mãe foi chamada à Escola e, na reunião havida, o director, o Dr.
Amadeu Eurípedes Cachim, comunicou-lhe que o Conselho recomendava a
minha matrícula no Curso de Pintura Cerâmica, pois tinha sido o mais
bem classificado a Desenho. A resposta pronta de minha mãe foi
negativa, argumentando que o seu filho, eu, também tinha obtido
iguais classificações a Português e a Matemática. Portanto, era a ela
que cabia a responsabilidade última para decidir quanto ao destino de
seu filho. E foi assim que eu fui matriculado no Curso Geral de
Comércio, sem apelo nem agravo.
Mas voltemos ao Ciclo Preparatório
que eu frequentei numa casa que ficava na rua Direita, por cima da
Ourivesaria Ayres. Tinha sido uma habitação normal. Nós ocupávamos o
primeiro andar e o sótão, numa adaptação precaríssima. O recreio tinha
sido um quintal com umas casinhas de arrumos encostadas a um muro,
oportunamente convertidas em duas salas, uma de trabalhos manuais e
outra em cantina.
A cozinha da casa converteu-se em
sala de aulas. Estou a ver o lar e a chaminé a enquadrar a secretária
dos professores; a sala de jantar, a mais ampla, comportava uma
espécie de estiradores e era a sala de desenho: de desenho subjectivo
espontâneo, de desenho à vista e de desenho geométrico. Não era pela
falta de nomes bonitos que não tínhamos aulas de desenho, aliás bem
servidas por dois excelentes professores: o sr. Júlio Sobreiro (que
diziam não ter concluído o seu curso de Arquitectura, mas que foi o
autor da elegante mota da Costa Nova, onde antigamente atracavam os
mercantéis que levavam à “Bruxa”) e o pintor Porfírio de Abreu, exímio
no seu jogo de cores.
É aqui, no desenho geométrico, que
surge a razão de ser do título deste arrazoado: o meu primeiro
tira-linhas. Tive, hoje, o cuidado de perguntar à minha neta Raquel se
ela sabia o que era um tira-linhas. Ela respondeu-me que já tinha
ouvido falar nisso, mas que nunca tinha utilizado nenhum. Pois bem: no
meu tempo, anos cinquenta, o tira-linhas era fundamental para passar a
limpo o desenho geométrico. Os colegas, cujos pais tinham mais
possibilidades, tinham um estojo, com um ou dois compassos, um
tira-linhas, alguns até com um pequeno transferidor. E mais uma
pequena caneta que servia para desenhar e encher de tinta-da-china o
tira-linhas. Ora eu não tinha nada disso, o que me obrigava a andar
sempre a “cravar” os meus companheiros. Um dia, vinha eu a sair da
sala de trabalhos manuais, olhando para o chão poeirento, dei com um
objecto ferrugento que me parecia ser um tira-linhas. E era! Cheio de
ferrugem, mas era. Apanhei-o e a primeira coisa que fiz foi subir as
escadas de cimento que levavam à varanda onde pontificava o sr. Brito,
chefe dos contínuos e marido da Dona Adélia, que era quem velava pela
cantina. E perguntei-lhe se achava que eu podia ficar com aquele
objecto de tão mau aspecto. «Fica com isso Albino. Já não serve para
nada.» Fiquei radiante.
Com um pouco de lixa fina que se
usava para afiar formões nos trabalhos manuais, tanto poli que o
tira-linhas voltou a ter formas adequadas. A rosca não estava
danificada, a rodela de afinação funcionava, a ponta do tira-linhas
estava afinada. Com um pouco de óleo fino, limpei o que restava da
ferrugem. Enfim: já não me faltava tudo. Tira-linhas já tinha. E as
linhas que eu conseguia tirar com ele eram tão perfeitas como aquelas
que os tira-linhas novos faziam.
Da frequência desse Ciclo
Preparatório da Rua Direita restam-me muito mais memórias que me
marcaram pela vida fora e que me foram garantindo valores que nunca
ninguém será capaz de mos destruir.
Certo é que contei sempre com os
meus companheiros para suprir os livros e os materiais que eu não
tinha. Mais: nunca ninguém se atreveu a menosprezar-me pelo facto de
eu comer graciosamente na cantina, pois que, em contrapartida, quem
cobrava as senhas dos colegas que a frequentavam era eu. A Dona Adélia
era como se fosse uma segunda mãe que velava por todos nós.
A Dr.ª
Cecília
Sacramento, minha saudosa professora de Português, ensinou-me a
declinar o “rosa, rosae”, a escalpelizar as palavras, a saber o
que queria dizer étimo, etc., etc..
Para mim, assim como não é
essencial uma catedral pomposa para simplesmente rezar, aquela casa da
rua Direita, por cima da ourivesaria Ayres, foi verdadeiramente a
minha primeira escola de ensino secundário. Casa de habitação,
arremedo de escola, sim, mas escola.
Até porque a EICA tem muito mais que se lhe diga… E direi…
Gaspar Albino
Aveiro, 06 de Agosto de 2013 |