No constante dobrar do tempo, os
acontecimentos de maior ou menor importância que outrora ocorreram vão
desaparecendo da memória dos vivos e caminharão depressa para o total
esquecimento, se não houver documentos que os registem e que permitam às
gerações seguintes conhecê-los.
Quem não ouviu falar do grande
naufrágio de 1947 que vestiu de luto a Murtosa e outras povoações
piscatórias, em que se perderam 4 traineiras de Matosinhos e a vida de
152 tripulantes, na fatídica madrugada de 2 de Dezembro?
O que muitos não sabem é que esse
trágico incidente, amplamente documentado, acabaria por se cruzar com
outras vidas, em pequenas histórias, mas não menos dignas de registo.
Não sabem, porque muitas dessas histórias se perderam no arrastar dos
anos e das vidas, sem que alguém as quisesse registar.
Naquele tempo, as varinas murtoseiras
atravessavam na Bateira do Manuel Galinha, da Cova do Chegado para o
outro lado, seguindo depois a pé, pelos campos de Sarrazola, até ao
Areal da Angeja, local de paragem para os camiões carregados com o peixe
de Matosinhos, onde elas enchiam as canastras e tomavam cada uma o seu
rumo, pelas ruas de Frossos, Loure, São João de Loure, Eixo... e por
onde mais as pernas as levassem, apregoando o que o mar dera.
Num rancho de mulheres e cachopas iam
a Francisca Carôla, a Celeste Carôla, a Maria do Rosário Pinho, a
Isméria Pinho, a Generosa Cunha, a Maria do Carmo Borras, a Maria do
Rosário Carôla, a Ana Chanuca, a Lurdes Lamarôa, a Ana Iria, a Maria
José Lélinha, a Rosalina Meleôa – já falecidas – a filha Celeste Iria e
a Angelina Lélinha – minha mãe – as irmãs Maria Augusta e Ana Rosa
Campeiras, estas últimas ainda meninas. De todas, a Ti Rosalina Meleôa
era a que caminhava até mais longe, por ter a venda em Macinhata do
Vouga.
Na véspera do naufrágio já o camião não tinha ali parado. E elas, sem
peixe para vender e para não fazerem a mesma viagem no dia seguinte,
decidiram esperar. Perto do Areal de Angeja havia o palheiro da Maria
Joaquina "Louceira", apelidada assim por vender louça: canecas, pratos,
travessas e assadeiras de barro vermelho. Quando não faziam venda e
resolviam ficar para o outro dia, era no palheiro da "Ti Joaquina" que
pernoitavam. A canastra virada de fundo ao ar servia de cabeceira e o
oleado de cobrir o peixe, estendido por cima das pernas, amparava alguma
goteira que caísse das telhas de fontela, na sua maioria partidas, de
tão velhas.
Ao fim da tarde do primeiro de Dezembro, decididas que estavam a esperar
pelo peixe da manhã seguinte, falou-se no que haveriam de jantar. Sem a
venda desse dia, as algibeiras estavam tão vazias quanto o estômago e a
noite prometia ser longa e penosa. Angelina, uma das mais novas e por
isso mais afoita, resolveu-se a ir procurar o que comer pelas
redondezas. Na entrada de Angeja, na beira do "Rio Velho", havia uma
pequena tasca (hoje a Casa dos Leitões) que vendia também algumas
mercearias, mas que já se encontrava fechada àquela hora. E que aberta
estivesse, compraria o quê, se o dinheiro tinha ficado por ganhar?
Mas a fome apertava e o estômago dava
sinais de impaciência. À porta da loja havia uma velha dorna onde se
podiam ver uns rabos de sardinha salgados, amarelados, que o comerciante
tinha deitado fora, provavelmente por já não estarem em condições de
vender. Para ali atirava também a fruta apodrida e as folhas de
hortaliças secas, que seriam depois dadas aos porcos.
Angelina não pensou duas vezes, pegou
no peixe e levou-o consigo para o palheiro onde estavam as colegas. Se
umas se recusaram a comê-lo, outras houve que se juntaram a ela e os
rabos salgados, depois de lavados no Vouga, foram ali mesmo assados, com
uns ramos secos que conseguiram esgravatar nas redondezas. Comeram o
peixe só, sem pão, sem uma batata, sem uma pinga de água potável, que
bem falta lhes fez durante a noite, depois de ingerirem tanto sal. E com
esse jantar se deitaram e sentiram o temporal que toda a noite abanou o
palheiro, sem saberem que ali bem perto, a metros da costa, tantos
lutavam com as vagas e muitos perderiam a vida.
Na manhã seguinte esperaram pelo
camião, que uma vez mais não apareceu.
Sem notícias, resolveram então
regressar a casa, mas para não pagarem a travessia ao (;alinha, fizeram
o percurso todo a pé, por Fermelã, Canelas e Estarreja, até à Murtosa.
Foi na descida da Ladeira de (:anelas que souberam da desgraça que se
tinha abatido sobre Matosinhos e correram para casa, aflitas por saber
quantos filhos da terra tinham desaparecido nesse dia. Da Murtosa
morreram treze. E mais não foram. porque o homem que viria mais tarde a
ser sogro de Angelina, o Manuel Rito – meu avô – e os filhos, que tinham
sido dispensados da Traineira São Salvador, por ser fim de safra e por
terem ganha-pão na Ria, desobedeceram às ordens do Mestre, e não
responderam à chamada...
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