David Paiva Martins, Fragmentos de Vida. A Minha Terra. 1ª ed., Aradas, ACAD (Associação Cultural de Aradas), 2005, 170 pp.

Ernesto Nunes de Paiva

LII

O DR. PAIVA

ERNESTO NUNES DE PAIVA (1904-1982)

O Dr. Paiva (ou Dr. Piolho, como alguns também lhe chamavam) era, como já disse, na nossa terra e não só, uma verdadeira instituição viva.

O seu pai, meu tio-avô, que era o matador oficial dos porcos da família, ofício em que veio a ser substituído pelo filho David e depois pelo neto Alberto, era para mim o tio João velho. Embora tivesse morrido quando eu tinha apenas cinco anos, recordo-o perfeitamente, na sua figura, no seu modo de comer, de andar, de falar, como se o tivesse neste momento à minha frente. Ao chamar-lhe tio João velho distinguia-o do meu outro tio João, o irmão mais novo da minha mãe. Com efeito, há na / 139 / minha família do lado materno uma situação curiosa, que não é muito vulgar. O tio João velho e o meu avô eram irmãos. As suas mulheres, portanto a mãe do Dr. Paiva e a minha avó, eram irmãs também. Os pais do Dr. Paiva tiveram três filhos; os meus avós seis. Com dois irmãos casados com duas irmãs, houve nove crianças que foram nascendo, ora dum casal ora doutro, uns irmãos e outros primos, tendo todas o mesmo conjunto de apelidos. Como na família havia o costume de repetir exaustivamente os nomes próprios, foi um sarilho para baptizar as crianças sem que houvesse nomes absolutamente iguais. O resultado foi que, nestes seis irmãos para um lado e três para o outro, não há dois que tenham o mesmo conjunto de apelidos. São todos diferentes. Contudo, há primos com eles rigorosamente iguais...

Mas deixemo-nos de divagações familiares e voltemos ao Dr. Paiva. Filho de lavradores relativamente modestos, com parcos recursos, o pequeno Ernesto manifestou desde criança o desejo de ser médico. Com tal intensidade que os pais, embora a custo, acabaram por decidir fazer tudo o que fosse necessário para que ele pudesse estudar. A vida era então muito difícil. Por isso, o Ernesto teve de partilhar os sacrifícios dos pais e irmãos, trabalhando na lavoura após as aulas, bem como nas férias, mesmo quando já era universitário. E foi assim que se formou, em Coimbra, em 1930.

Foi um médico de clínica geral extremamente competente, com áreas em que era tido por verdadeiro especialista, como por exemplo na cura da dor ciática, doença de que lhe chegavam pacientes de todo o País em busca de alívio. Não foi nunca um comerciante da medicina. Por isso, não enriqueceu com ela. Era, acima de tudo, um Homem Bom!

Generoso e simples, esteve toda a vida disponível, em qualquer dia, fosse semana ou domingo, a qualquer hora, fosse dia ou noite, estivesse frio ou calor, chovesse ou ventasse, para acorrer à cabeceira de quem necessitasse do seu auxílio. Fosse rico ou pobre. Vivesse num palácio ou / 140 / numa choupana. Fosse longe ou perto. Fosse alguém importante, que pudesse pagar os seus serviços, ou, pelo contrário, alguém tão pobre que, além dos seus cuidados, ele ainda tivesse de dar os medicamentos para que a pessoa pudesse tratar-se! A sua disponibilidade, em qualquer caso, era sempre a mesma: era total! As pessoas tinham por ele verdadeira e justa veneração. Chamavam-lhe o médico dos pobres. Não é exacto. Ele era, por igual, o médico de todos: pobres e ricos, poderosos ou humildes; era, tão simplesmente, Médico!

As circunstâncias da vida possibilitaram que tivesse relações de intimidade com alguns dos poderosos do País no seu tempo. Não obstante, manteve-se sempre o homem simples que convivia com todos, percorria toda a nossa região visitando os seus doentes, primeiro a cavalo, depois e durante muitos anos de bicicleta, mais tarde de moto, depois de lambreta e só muito mais tarde de carro, sujeitando-­se a comer o que lhe dessem e onde lhe dessem — numa palavra, um Homem... duma envergadura tal que as pessoas de hoje, que não o tenham conhecido, terão muita dificuldade em imaginar que possa sequer ter existido! Com os ilustrados, falava linguagem ilustrada; com o povo, falava a linguagem popular. Com a maior naturalidade. Um dia foi chamado a uma casa onde o dono, pessoa de meia idade, se sentia muito mal, cheio de dores. Era um problema gastro-intestinal. O Dr. raiva receitou, fez à mulher as recomendações de como proceder e prometeu voltar no dia seguinte. Assim fez. Chegou, bateu à porta, a mulher abriu e, enquanto entrava, o Dr. raiva foi-lhe perguntando:

— "Então como se sente hoje o nosso doente, está melhor?"

— "Sim, Sr. Dr., está melhorzinho!" — respondeu a mulher.

— "E olhe lá" — tornou o Dr. raiva, "ele já obrou?" A mulher olhou-o com o ar assarapantado de quem não percebe patavina...

— "Ele já cagou?" — explicitou então o Dr. Paiva. A mulher ficou aflita. — "Oh! Desculpe!" — disse ela, pesarosa. "Eu não sabia que obrar era cagar, na boca do Sr. Doutor!..."

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O Dr. Paiva era um excelente garfo. Se o cumprimento da sua missão o levasse a casa de alguém que tivesse matado o porco e estivesse a fazer rojões, se o convidassem para comer ele não se fazia rogado. Então, as pessoas punham-lhe à frente os rojões e, para acompanhar, batatas cozidas com pele. Ele comia só os rojões. Batatas dizia que as comia em casa. E sem abusar, porque faziam sono... Alto, magro, com a figura esguia dos Piolhos que não engordam com a idade, fumou — e muito! — durante a maior parte da sua vida. Não cigarros de fábrica, mas sim feitos por ele próprio com tabaco de onça e mortalha. Eram famosos os seus cigarros: muito fininhos e mal embrulhados, podia-se dizer sem exagero que mais pareciam grosseiros palitos dos dentes. Fumavam-se em fracções de segundo. Isso mantinha-lhe as mãos sempre ocupadas, porque mal acabava um tinha de fazer outro. Recordo ainda os seus dedos nodosos, finos e muito longos, de pontas amarelecidas pela nicotina, rijos como aço, que magoavam à brava quando ele nos carregava algures para saber se era aí que doía...

Nos tempos da minha infância, com a falta de meios que havia, o médico tinha muitas vezes que improvisar o modo de exercer a sua missão. Eu próprio tive oportunidade de sentir na pele o peso desse circunstancialismo. Um dia, tinha eu cinco anos, ao brincar descalço num campo de onde o milho tinha sido recentemente cortado, um canoilo esgalhou-me a parte de baixo do dedo grande dum pé. A ferida cicatrizou mas formou-se, sob o dedo, um grande monte de carne esponjosa, que cheirava muito mal e não me deixava pousar o pé no chão para andar. A minha mãe ficou muito preocupada. No domingo à tarde foi visitar o tio, pai do Dr. Paiva, que estava muito doente, a poucos dias de falecer, e levou-me com ela, ao colo. Quando chegou, como o doutor também lá estava, mostrou-lhe o meu dedo. "Isto resolve-se já' — disse ele. "Emprestem-me uma tesoura”. A minha mãe nem quis ver! Foi para o aido. A Maria do António Uno colocou-me / 142 / no seu regaço, o Dr. Paiva passou a tesoura de costura pelo lume que ardia na lareira, para a desinfectar, e ali mesmo, sem mais, a sangue frio, cortou a excrescência esponjosa do meu dedo. Um pouco de tintura de iodo, para queimar a ferida... e o dedo ficou bom até hoje. Dizem-me que gritei muito. É natural que sim. Mas não me recordo se gritei. Lembro-me só da operação.

Ernesto Nunes de Paiva nasceu em Verdemilho, em 3 de Janeiro de 1904. Faleceu em 17 de Julho de 1982. Licenciado em Coimbra, em 1930, montou consultório em Verdemilho, que manteve até ao fim dos seus dias. Além do consultório e das visitas domiciliárias que fazia, que eram tantas quantas lhe solicitassem, também deu consultas, durante muitos anos, no Centro de Saúde de Aveiro, na Casa do Povo de Aradas e no Centro Paroquial de S. Bernardo. Em 1980, aquando das Bodas de Ouro da sua licenciatura, foi objecto de sentidas e merecidas festas de homenagem que lhe foram prestadas pela Segurança Social, em Aveiro, pelo povo de S. Bernardo, cuja Junta de Freguesia deu o seu nome a uma rua da localidade, e pelas gentes de Aradas. Entre nós, a festa, promovida pela Junta de Freguesia da presidência de Manuel Simões Madail, foi no dia 20 de Dezembro de 1980, contando com a presença massiva do nosso povo e de altas individualidades suas amigas. Constou do descerramento do seu busto, no Largo Acácio Rosa, a que se seguiu uma Missa de Acção de Graças, na Igreja Paroquial, e um jantar-convívio num dos maiores restaurantes da freguesia.

Pela sua devotada acção em favor do povo, ao longo de mais de meio século, sem outro interesse que não fosse o de ser útil e aliviar o sofrimento do seu semelhante, o Dr. Paiva foi um ser humano de eleição que honra a terra que o viu nascer. A gratidão da nossa gente foi-lhe expressa em vida pelo busto e pelo seu nome dado a uma rua da freguesia, no lugar de Aradas.

A Junta de Freguesia mandou erigir a / 143 / campa em que está sepultado no nosso cemitério. Penso, contudo, que se justificava ainda que o seu nome fosse dado a uma rua ou praceta do lugar de Verdemilho, que ele tanto amava. É uma proposta que tenho em mente fazer à Assembleia de Freguesia logo que surja oportunidade adequada.

 

 
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22-04-2018