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LII
O DR. PAIVA
ERNESTO NUNES DE
PAIVA (1904-1982)
O Dr. Paiva (ou Dr.
Piolho, como alguns também lhe chamavam) era, como já disse, na nossa
terra e não só, uma verdadeira instituição viva.
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O seu pai, meu
tio-avô, que era o matador oficial dos porcos da família, ofício em que
veio a ser substituído pelo filho David e depois pelo neto Alberto, era
para mim o tio João velho. Embora tivesse morrido quando eu tinha apenas
cinco anos, recordo-o perfeitamente, na sua figura, no seu modo de
comer, de andar, de falar, como se o tivesse neste momento à minha
frente. Ao chamar-lhe tio João velho distinguia-o do meu outro tio João,
o irmão mais novo da minha mãe. Com efeito, há na / 139 / minha família
do lado materno uma situação curiosa, que não é muito vulgar. O tio João
velho e o meu avô eram irmãos. As suas mulheres, portanto a mãe do Dr.
Paiva e a minha avó, eram irmãs também. Os pais do Dr. Paiva tiveram
três filhos; os meus avós seis. Com dois irmãos casados com duas irmãs,
houve nove crianças que foram nascendo, ora dum casal ora doutro, uns
irmãos e outros primos, tendo todas o mesmo conjunto de apelidos. Como
na família havia o costume de repetir exaustivamente os nomes próprios,
foi um sarilho para baptizar as crianças sem que houvesse nomes
absolutamente iguais. O resultado foi que, nestes seis irmãos para um
lado e três para o outro, não há dois que tenham o mesmo conjunto de
apelidos. São todos diferentes. Contudo, há primos com eles
rigorosamente iguais...
Mas deixemo-nos de
divagações familiares e voltemos ao Dr. Paiva. Filho de lavradores
relativamente modestos, com parcos recursos, o pequeno Ernesto
manifestou desde criança o desejo de ser médico. Com tal intensidade que
os pais, embora a custo, acabaram por decidir fazer tudo o que fosse
necessário para que ele pudesse estudar. A vida era então muito difícil.
Por isso, o Ernesto teve de partilhar os sacrifícios dos pais e irmãos,
trabalhando na lavoura após as aulas, bem como nas férias, mesmo quando
já era universitário. E foi assim que se formou, em Coimbra, em 1930.
Foi um médico de
clínica geral extremamente competente, com áreas em que era tido por
verdadeiro especialista, como por exemplo na cura da dor ciática, doença
de que lhe chegavam pacientes de todo o País em busca de alívio. Não foi
nunca um comerciante da medicina. Por isso, não enriqueceu com ela. Era,
acima de tudo, um Homem Bom!
Generoso e simples,
esteve toda a vida disponível, em qualquer dia, fosse semana ou domingo,
a qualquer hora, fosse dia ou noite, estivesse frio ou calor, chovesse
ou ventasse, para acorrer à cabeceira de quem necessitasse do seu
auxílio. Fosse rico ou pobre. Vivesse num palácio ou
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numa choupana. Fosse longe ou perto. Fosse alguém importante, que
pudesse pagar os seus serviços, ou, pelo contrário, alguém tão pobre
que, além dos seus cuidados, ele ainda tivesse de dar os medicamentos
para que a pessoa pudesse tratar-se! A sua disponibilidade, em qualquer
caso, era sempre a mesma: era total! As pessoas tinham por ele
verdadeira e justa veneração. Chamavam-lhe o médico dos pobres. Não é
exacto. Ele era, por igual, o médico de todos: pobres e ricos, poderosos
ou humildes; era, tão simplesmente, Médico!
As circunstâncias da
vida possibilitaram que tivesse relações de intimidade com alguns dos
poderosos do País no seu tempo. Não obstante, manteve-se sempre o homem
simples que convivia com todos, percorria toda a nossa região visitando
os seus doentes, primeiro a cavalo, depois e durante muitos anos de
bicicleta, mais tarde de moto, depois de lambreta e só muito mais tarde
de carro, sujeitando-se a comer o que lhe dessem e onde lhe dessem —
numa palavra, um Homem... duma envergadura tal que as pessoas de hoje,
que não o tenham conhecido, terão muita dificuldade em imaginar que
possa sequer ter existido! Com os ilustrados, falava linguagem
ilustrada; com o povo, falava a linguagem popular. Com a maior
naturalidade. Um dia foi chamado a uma casa onde o dono, pessoa de meia
idade, se sentia muito mal, cheio de dores. Era um problema
gastro-intestinal. O Dr. raiva receitou, fez à mulher as recomendações
de como proceder e prometeu voltar no dia seguinte. Assim fez. Chegou,
bateu à porta, a mulher abriu e, enquanto entrava, o Dr. raiva foi-lhe
perguntando:
— "Então como se
sente hoje o nosso doente, está melhor?"
— "Sim, Sr. Dr., está
melhorzinho!" — respondeu a mulher.
— "E olhe lá" —
tornou o Dr. raiva, "ele já obrou?" A mulher olhou-o com o ar
assarapantado de quem não percebe patavina...
— "Ele já cagou?" —
explicitou então o Dr. Paiva. A mulher ficou aflita. — "Oh! Desculpe!" —
disse ela, pesarosa. "Eu não sabia que obrar era cagar, na boca do Sr.
Doutor!..."
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O Dr. Paiva era um
excelente garfo. Se o cumprimento da sua missão o levasse a casa de
alguém que tivesse matado o porco e estivesse a fazer rojões, se o
convidassem para comer ele não se fazia rogado. Então, as pessoas
punham-lhe à frente os rojões e, para acompanhar, batatas cozidas com
pele. Ele comia só os rojões. Batatas dizia que as comia em casa. E sem
abusar, porque faziam sono... Alto, magro, com a figura esguia dos
Piolhos que não engordam com a idade, fumou — e muito! — durante a maior
parte da sua vida. Não cigarros de fábrica, mas sim feitos por ele
próprio com tabaco de onça e mortalha. Eram famosos os seus cigarros:
muito fininhos e mal embrulhados, podia-se dizer sem exagero que mais
pareciam grosseiros palitos dos dentes. Fumavam-se em fracções de
segundo. Isso mantinha-lhe as mãos sempre ocupadas, porque mal acabava
um tinha de fazer outro. Recordo ainda os seus dedos nodosos, finos e
muito longos, de pontas amarelecidas pela nicotina, rijos como aço, que
magoavam à brava quando ele nos carregava algures para saber se era aí
que doía...
Nos tempos da minha
infância, com a falta de meios que havia, o médico tinha muitas vezes
que improvisar o modo de exercer a sua missão. Eu próprio tive
oportunidade de sentir na pele o peso desse circunstancialismo. Um dia,
tinha eu cinco anos, ao brincar descalço num campo de onde o milho tinha
sido recentemente cortado, um canoilo esgalhou-me a parte de baixo do
dedo grande dum pé. A ferida cicatrizou mas formou-se, sob o dedo, um
grande monte de carne esponjosa, que cheirava muito mal e não me deixava
pousar o pé no chão para andar. A minha mãe ficou muito preocupada. No
domingo à tarde foi visitar o tio, pai do Dr. Paiva, que estava muito
doente, a poucos dias de falecer, e levou-me com ela, ao colo. Quando
chegou, como o doutor também lá estava, mostrou-lhe o meu dedo. "Isto
resolve-se já' — disse ele. "Emprestem-me uma tesoura”. A minha mãe nem
quis ver! Foi para o aido. A Maria do António Uno colocou-me
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no seu regaço, o Dr. Paiva passou a tesoura de costura pelo lume que
ardia na lareira, para a desinfectar, e ali mesmo, sem mais, a sangue
frio, cortou a excrescência esponjosa do meu dedo. Um pouco de tintura
de iodo, para queimar a ferida... e o dedo ficou bom até hoje. Dizem-me
que gritei muito. É natural que sim. Mas não me recordo se gritei.
Lembro-me só da operação.
Ernesto Nunes de
Paiva nasceu em Verdemilho, em 3 de Janeiro de 1904. Faleceu em 17 de
Julho de 1982. Licenciado em Coimbra, em 1930, montou consultório em
Verdemilho, que manteve até ao fim dos seus dias. Além do consultório e
das visitas domiciliárias que fazia, que eram tantas quantas lhe
solicitassem, também deu consultas, durante muitos anos, no Centro de
Saúde de Aveiro, na Casa do Povo de Aradas e no Centro Paroquial de S.
Bernardo. Em 1980, aquando das Bodas de Ouro da sua licenciatura, foi
objecto de sentidas e merecidas festas de homenagem que lhe foram
prestadas pela Segurança Social, em Aveiro, pelo povo de S. Bernardo,
cuja Junta de Freguesia deu o seu nome a uma rua da localidade, e pelas
gentes de Aradas. Entre nós, a festa, promovida pela Junta de Freguesia
da presidência de Manuel Simões Madail, foi no dia 20 de Dezembro de
1980, contando com a presença massiva do nosso povo e de altas
individualidades suas amigas. Constou do descerramento do seu busto, no
Largo Acácio Rosa, a que se seguiu uma Missa de Acção de Graças, na
Igreja Paroquial, e um jantar-convívio num dos maiores restaurantes da
freguesia.
Pela sua devotada acção em favor do povo, ao longo de mais de meio
século, sem outro interesse que não fosse o de ser útil e aliviar o
sofrimento do seu semelhante, o Dr. Paiva foi um ser humano de eleição
que honra a terra que o viu nascer. A gratidão da nossa gente foi-lhe
expressa em vida pelo busto e pelo seu nome dado a uma rua da freguesia,
no lugar de Aradas.
A Junta de Freguesia mandou erigir a
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campa em que está sepultado no nosso cemitério. Penso, contudo, que se
justificava ainda que o seu nome fosse dado a uma rua ou praceta do
lugar de Verdemilho, que ele tanto amava. É uma proposta que tenho em
mente fazer à Assembleia de Freguesia logo que surja oportunidade
adequada. |