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O MAJOR LEBRE
ANTÓNIO TAVARES LEBRE
(1882-1966)
O Dr. António Tavares
Lebre, médico-veterinário e oficial de cavalaria, nasceu na Quinta do
Picado em 21 de Março de 1882. Residiu em Verdemilho, na Quinta de Nossa
Senhora das Dores, de que era proprietário. Faleceu em 11 de Fevereiro
de 1966.
Como oficial de
cavalaria esteve colocado em diversas unidades militares e fez parte da
Comissão Técnica de Remonta, tendo realizado o trabalho "Produção do
Cavalo em Portugal". Fez parte duma comissão que foi à Argentina
adquirir 500 cavalos para o Exército Português. Essa viagem
propiciou-lhe a publicação dum livro intitulado "Facetas Argentinas —
Remonta Portuguesa”.
Como
médico-veterinário foi contratado pelo Governo de Angola, em 1914, tendo
desempenhado, até 1930, funções de elevada responsabilidade, como as de
director dos Serviços de Pecuária e Indústria Animal, director de vários
estabelecimentos zoo técnicos e chefe de missões de estudo e combate a
doenças animais. Organizou o Regulamento de Sanidade Pecuária de Angola
e os regulamentos dos matadouros das cidades de Luanda, Malange, Lobito
e Benguela. |
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Em Verdemilho, a 25
de Novembro de 1949, promoveu uma grande festa comemorativa do
centenário do nascimento de Eça de Queirós, em cuja organização
participaram também o Dr. Alberto Souto e Acácio Rosa. Embora o
centenário tivesse efectivamente ocorrido quatro anos antes, em 1945, e
a festa se tenha realizado tão tarde, porventura por só nessa altura
haver dinheiro para suportar os gastos
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vultosos da sua concretização, foi um acontecimento memorável que trouxe
a Verdemilho milhares de pessoas e alguns vultos importantes da nossa
cultura nesse tempo, cuja presença o Major Lebre aproveitou para
inaugurar, na sua Quinta de Nossa Senhora das Dores, a Sala Eça de
Queirós. Foi nessa festa que, como ele próprio confessa, se inspirou
para escrever o livro Eça em Verdemilho e a sua Vida, que mandou
imprimir a expensas próprias na Tipografia Lusitânia, em Aveiro, e
editou em 1962.
No tempo do Major
Lebre, a Quinta de Nossa Senhora das Dores, muito cuidada, era duma
beleza extraordinária. Para se chegar à capela, espaçosa e linda, com um
grandioso retábulo simulando a colina do Gólgota, com as personagens em
esculturas de gesso, quase no tamanho natural, representando a paixão de
Cristo, transpunha-se o grande portão de ferro e atravessava-se o parque
fronteiro, que a separava da rua. Delimitado a sul pela casa solarenga,
com as suas largas escadarias de pedra nos dois extremos, os corrimões
de ferro forjado entrelaçados por ramos de buganvília, e um alto
fontanário ao centro, incrustado na parede, com um grande tanque em
forma de meia lua, o parque, muito aprazível, era constituído por
renques de acácias, pinheiros mansos e frondosos plátanos, sob os quais,
do lado norte, havia mesas redondas de granito, com bancos de pedra,
onde os peregrinos podiam repousar. A parte cultivável da Quinta era
também um recanto do paraíso: havia roseiras de todas as cores,
buganvílias, cameleiras, canas da Índia... Uma rua ladeada por seculares
árvores de buxo, altíssimas, com a ramagem a fazer dossel: era a famosa
rua de buxo. Os talhões de terreno agrícola estavam delimitados por
arruamentos perpendiculares, todos bordejados de árvores de fruto,
cruzando-se no interior em túnel de largas construções em alvenaria, de
base quadrangular e parte superior em forma de pirâmide, que davam um
toque de nobreza ao belo conjunto e constituíam apetecidos locais de
lazer, porque as
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suas paredes interiores formavam bancos onde podíamos sentar-nos a
conversar. Nos fundos da Quinta havia outro parque, sombreado por
grandes cedros, com um tanque largo e uma fonte. No conjunto, a Quinta
de Nossa Senhora das Dores constituía um verdadeiro hino à acção
criteriosa do homem sobre a natureza e à harmonia que ela pode criar.
Era um local de encanto, onde, no verão, os rapazes e as raparigas
casadoiras de Verdemilho adoravam passear e comer as suas merendas.
Todos os domingos
havia pessoas de fora que vinham à Capela de Nossa Senhora das Dores
pagar promessas. Para nós, garotos, isso constituía uma apreciada fonte
de receitas. A promessa normal era a de rezar uma novena a Nossa
Senhora, ou seja a recitação do terço feita
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pertença do Major, onde hoje existe o ringue de patinagem e a parte nova
do cemitério. As pessoas dormiam agora no largo, ao relento, ou nos
pátios das casas da vizinhança.
No domingo havia
Missa Solene, com música e pregação, na Capela. Os peregrinos pagavam as
suas promessas. Depois... era a debandada. Com o passar do interior da
Quinta para o exterior, após 1945, a romaria perdeu algum do seu encanto
específico. Mas continuou a ser uma festa espantosa até finais da década
de 1960. Com o falecimento do Major Lebre os festejos, que ele
organizava, deixaram de se realizar. O afluxo de romeiros, a pagar as
suas promessas, ainda se manteve intenso durante uns anos. Depois, a
pouco e pouco, foi-se extinguindo. Hoje não passarão de algumas centenas
aqueles que cá vêm todos os anos, mormente no dia da festa da Costa
Nova, para pagar as suas promessas. Da extraordinária romaria de outrora
resta a saudade.
Só conheci o Major
Lebre em idade já relativamente avançada. Quando nasci ia ele fazer 56
anos. Velho e solteirão tinha duas paixões notórias: os cavalos e as
raparigas. O seu gosto pelos cavalos materializava-se nos belos
exemplares que possuía sempre e adorava exibir nas feiras da
especialidade; o seu gosto pelas raparigas... bem, o gosto pelas
raparigas, que era decerto o seu fraco, dava lugar àquilo que vou
contar.
Conjugado com a
cultura, o gosto pelas raparigas levou o Major Lebre a ser um grande
impulsionador do Grupo Arte e Cultura do Clube Recreativo Verdemilhense,
que, como já referi, constituiu a mais conseguida experiência da
tradição teatral da nossa freguesia.
Conjugado com os
cavalos, o gosto pelas raparigas resultava naquela coisa espantosa de,
no Verão, pelas tardes de domingo, a gente ver passar, rua abaixo, com a
campainha dim-dim-dim a tilintar, uma luxuosa carruagem puxada por uma
parelha de garbosos cavalos engalanados. Às rédeas, o Major Lebre,
rigorosamente vestido para a função: jaqueta preta justa, camisa branca,
com peitilho e punhos
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de folhos, bordados,
calça justa, preta, com barra de cetim ao longo da costura lateral
exterior, botas pretas de tacão alto, na cabeça um chapéu preto, rígido,
de copa baixa, fita preta por debaixo do queixo a segurá-lo.
Pavoneando-se a seu lado, toda empoada, uma bela rapariga
esplendidamente vestida de dama antiga. Atrás deles, sentadas nos bancos
laterais, quatro outras lindas raparigas também ricamente vestidas e
enfeitadas à antiga. De pé, no estribo posterior da carruagem, dois
criados rigorosamente uniformizados de libré castanha; na cabeça um
quico, castanho também, seguro com uma fita por debaixo do queixo. Um
espectáculo notável!... Vão passear à Costa Nova.
Era também esse seu
acrisolado gosto pelas raparigas que motivava uma outra cena curiosa,
relativamente frequente. Sempre que houvesse qualquer festa cá na terra,
o Major Lebre não faltava. Normalmente as festas destinavam-se a
angariar fundos para qualquer actividade ou iniciativa de interesse
colectivo. Sabendo como ele era, as raparigas mais atrevidotas levavam,
de propósito, qualquer coisa para leiloar. Ora era um pano bordado, ora
um guardanapo, ou uma saca para o pão, coisas simples assim. Quem
arrematasse a prenda, além de a levar para casa, tinha como prémio o
direito de dançar um número musical com a rapariga ofertante. A
rapaziada presente, cúmplice, começava logo a fazer ofertas, picando os
lances... que o Major Lebre se apressava a cobrir. Claro que era ele que
arrematava sempre a prenda. Galante, oferecia-a à rapariga... e tratava
de cobrar o prémio. Todo o pessoal se arredava. O Major e a rapariga
dirigiam-se ao centro do salão e a dança começava, com toda a gente em
volta a aplaudir. Havia só um probleminha: é que o Major Lebre não sabia
dançar!
Embora no trato
caseiro tivesse o seu feitiozinho apertado, como acontece com muito boa
gente, a começar por mim, no relacionamento social o Major Lebre era um
verdadeiro fidalgo. Porém, esse trato
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fino com que distinguia as pessoas, por ser uniforme, sem atender às
circunstâncias, originava por vezes situações verdadeiramente caricatas.
Se o pessoal da quinta andasse a fazer um trabalho e fosse
momentaneamente necessária uma peça de determinada ferramenta, nada mais
natural do que ir pedi-la emprestada a um vizinho. Como o meu pai era o
vizinho mesmo da frente, eles eram amigos e até se tinham encontrado em
Moçambique na guerra, esses pedidos eram normalmente feitos em nossa
casa. Só que a coisa não era assim tão simples quanto possa parecer à
primeira vista. Tinha o seu cerimonial próprio. Um dia, por exemplo, o
pessoal andava a limpar a abegoaria. Verificaram que era preciso mais um
engaço. O Major decidiu que o fossem pedir ao meu pai. Então, estava eu
entretido a brincar no pátio quando, para meu espanto, vejo entrar o seu
maioral, suado, descalço, de calças arregaçadas, com pernas, braços e
roupa todos sujos, borrados da sujidade específica do tipo de trabalho
que andava a fazer... de bandeja de prata na mão. Na bandeja um envelope
branco, de papel de qualidade, forrado, com o timbre de "Solar de Nossa
Senhora das Dores" e endereçado "Ao prezado vizinho, Sr. António da Rosa
Martins". Dentro, um cartão de papel idêntico, também timbrado e
manuscrito como segue: "Caro vizinho, peço-lhe a fineza de me emprestar
um engaço. Os meus penhorados agradecimentos. Cumprimentos do António
Lebre.”
E o nosso homem lá
foi com o engaço. Cena sublime! Era assim o Major Lebre...
O Dr. António Tavares
Lebre repousa no nosso cemitério, em mausoléu de família. O seu nome é
recordado na nossa toponímia pela Rua Capitão Lebre, em Verdemilho.
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