XVIII
(...) A ânsia de
realização do nosso povo não se esgotou na tradição teatral. (...) Com
ela coexistiram outras formas de representação, umas de carácter
religioso e outras profanas, algumas com grande impacto popular e
assinalável êxito. Estão neste caso os cortejos de
Reis Magos,
manifestação dramático-religiosa que se fez em Verdemilho até cerca de
1933, no Bonsucesso até à volta de 1935 e em Aradas até
aproximadamente 1940. Na Quinta do Picado, os Reis Magos começaram a
representar-se por volta de 1944 e duraram até cerca de 1984.
Até aproximadamente
1930 houve em Verdemilho, como também em Aradas e na Quinta do Picado,
a tradição de
pedir para as almas. Esse peditório era
feito por grupos de 10 a 12 rapazes, que, à noitinha, durante o tempo
da Quaresma, iam de porta em porta representando um drama em verso,
que era cantado. Nele pediam-se esmolas, cujo produto era utilizado
para se pagar a celebração de missas e outras cerimónias litúrgicas —
como semanas de pregação, por exemplo — em intenção das almas do
purgatório. Era, portanto, uma manifestação de cariz marcadamente
religioso.
No plano profano, em Aradas, havia as "cegadas",
que se faziam pelo Carnaval. As "cegadas" eram uma manifestação
satírica, um modo de, nessa época específica do ano, se "lavar a roupa
suja" do lugar... Eram compostas por grupos de rapazes e raparigas,
que, ao som de música, cantavam versos escritos propositadamente para
o efeito, nos quais se glosavam (e gozavam!...) as pessoas, as coisas
e os acontecimentos da terra nesse ano. Era, como está bom de ver, uma
actividade "quente". A coisa era tão intensamente vivida pela
rapaziada, que, um dia, ao
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preparar-se a "cegada” desse ano, surgiram desinteligências dentro do
grupo, que ficou dividido em dois, segundo os modos como cada um deles
pretendia atacar os podres da terra. Nasceram assim a Tuna Velha e a
Tuna Nova, que rivalizavam entre si, fazendo cada qual a sua "cegada".
Embora, dentro do
lugar, seguissem trajectos diferentes, por vezes tinham forçosamente
de se cruzar. Mas nunca houve problemas...
Outro costume interessante, igualmente de
carácter profano e teor satírico, que também desapareceu cerca de 1930
ou pouco depois, era a "serração da velha".
Foi comum a todos os lugares da freguesia.
Na quarta-feira do
meio da Quaresma (Micareme) a rapaziada nova, eles e elas, munidos com
um serro te e uma lata (para que a lata, ao ser serrada, fizesse muito
barulho), percorriam as portas das pessoas mais idosas do lugar,
cantando-lhes uma melopeia satírica de convite à reflexão, porque a
morte estava próxima.
Costumes daquele
tempo! Visto por nós, hoje, isto tem um cunho mórbido que arrepia!
Também na altura as reacções não eram iguais; e eram extremadas: havia
velhinhos que ficavam todos contentes por terem podido ser "serrados"
mais um ano — era sinal de que ainda estavam vivos! — e convidavam a
rapaziada para entrar e beber um copo; e havia os outros, os que
ficavam fulos por lhes estarem a chamar velhos... Muitos desses tinham
o cuidado de ir guardando o conteúdo dos bacios dos últimos dias... e
era com essa "artilharia” que procuravam atingir e "perfumar" os
cantores!
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XIX
Outro momento solene
da vida anual da família era o dia da
matança do porco.
Naquele tempo, todas
as casas de lavrador remediado criavam o seu porco da ceva. As mais
ricas criavam e matavam mais do que um. A importância do porco da ceva
era vital na economia doméstica: era a sua carne, conservada em sal, na
salgadeira, que ia garantir a alimentação da família ao longo do ano
inteiro. Cevar o porco, saber aproveitar ao máximo a alimentação que se
lhe dava para que ele tivesse toucinho alto, febra e gordura suficientes
para o consumo da família era, portanto, questão de importância suprema.
Fazia-se tudo para que ele não gastasse energias em nada que não fosse
crescer e engordar: capava-se, para que não tivesse apetite sexual; para
que não pudesse fossar, colocavam-se-lhe vincos. Os vincos são uma
espécie de anéis em arame, retorcidos, que se colocam na ponta das
narinas do porco, que para isso se perfuram. Se o porco tentasse fossar,
os vincos magoavam-no e ele desistia. Assim se procurava garantir que
cada grama de alimento que se desse ao porco se tornasse em carne.
A matança era um
ritual que envolvia toda a família. Fazia-se no tempo frio do início do
Inverno. Ainda antes do despontar do sol, trazia-se o porco do curral.
Com ele sempre a berrar, como se adivinhasse o destino que o esperava,
tínhamos de o içar para cima de um carro de bois, onde o deitávamos à
força, com a cabeça e pescoço mais baixos do que o resto do corpo (para
que o sangue corresse melhor), pousados sobre os varais do carro. Então,
enquanto as demais pessoas seguravam o porco, o matador, com um facalhão
muito comprido, enterrava-lho no pescoço, procurando atingir-lhe o
coração. Atingir o coração era
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muito importante: assim, o porco morria instantaneamente, sofrendo
menos, ao mesmo tempo que sangrava melhor. Era a capacidade de conseguir
habitualmente esse desiderato que fazia a reputação dos bons matadores.
Depois de morto e sangrado, o porco era chamuscado com caruma,
raspavam-se-Ihe os pelos e era lavado. Ficava então pronto para se
dependurar. Punha-se-Ihe o chambaril nas patas traseiras e, com um
adival, içava-se até ficar na vertical, com a cabeça para baixo. Era
então amanhado, retirando-se-Ihe do interior todas as vísceras. Ficava
dependurado, a escorrer e arrefecer, até à manhãzinha do dia seguinte.
Isto tudo era
trabalho dos homens. Entretanto, as mulheres também tinham entrado em
acção: enquanto umas coziam o sangue e o fígado, com que se faria o
sarrabulho para a ceia desse dia — para a qual o matador seria convidado
— outras iam para o rio lavar e esgrumar com sal as tripas. Parte das
tripas iriam ser transformadas em torresmos, que seriam servidos à ceia,
com o sarrabulho; as restantes seriam utilizadas para os enchidos, o
chouriço e a morcela.
À noitinha, os
vizinhos e os amigos vinham ver o porco. Era um acto social. O lavrador
tinha orgulho do tamanho do seu porco e da altura do toucinho e gostava
que os amigos o vissem e o gabassem...
No dia seguinte, mal
estivesse a romper o alvor da manhã, a equipa da matança reunia-se de
novo, para desmanchar o porco. O animal era arriado e, no chão, partido
em peças, segundo o interesse de cada casa. Com a febra faziam-se os
rojões, que eram conservados em pingue, para serem consumidos ao longo
do ano todo, nas ocasiões especiais; preparavam-se as febras para os
chouriços e as morcelas; o resto — o toucinho, os ossos, a cabeça, a
focinheira, a orelheira, os pés, o rabo — eram acondicionados em sal, na
salgadeira.
No geral, o matador
era também quem se encarregava de desmanchar o porco, seguindo as
instruções da dona de casa. Como disse, a matança fazia-se no Inverno; o
tempos estava frio; a carne do animal estava também gelada pelo frio da
noite; então, para que as pessoas pudessem ir aquecendo as mãos de vez
em quando, havia normalmente ao lado um fogareiro aceso, com
carvão a arder. O matador ia cortando uns pedacitos de febra, passava-os
pelo sal e punha-os sobre as brasas. O aroma que se desprendia dessa
carne fresca a grelhar na brasa, o ambiente que esse aroma criava e o
sabor das febras em tal ambiente, são algo que não sei descrever por
palavras; sei só que, tantos anos volvidos, quando penso nisso ainda
sinto água na boca!...
Todo aquele
cerimonial, algo bárbaro, da matança — o porco que berra na madrugada,
os homens que lançam imprecações, a faca que se espeta, o sangue que
esguicha, o fumo e o cheiro de chamuscar, tudo isso provocava em mim
(como certamente também em todos os outros garotos) uma excitação tão
intensa que, na noite anterior, nem eu dormia nem deixava que os meus
pais dormissem: de cinco em cinco minutos estava ao alto com a cama
deles a perguntar se ainda não eram horas!
Na noite do dia do
desmancho, à ceia, era o momento mais solene: reunia-se a família, a
equipa da matança e um ou outro amigo especial que se quisesse
obsequiar. Comia-se então uma febralhada (pedaços de febra guisados com
batatas e nabo), bifes e rojões. Era o encerrar da festa. No dia
seguinte, tudo voltava à rotina. |