David Paiva Martins, Aradas. Um olhar sobre a primeira metade do século XX (Da Junta de Parochia à Junta de Freguesia). 1ª ed., Aradas, Junta de Freguesia de Aradas, 2008, 268 pp.

3.19 – O vigário Daniel

Como se viu, o padre Daniel Correia Rama – vulgo Sr. Vigário – começou a arranjar problemas mal chegou à freguesia que iria pastorear ao longo de 50 anos!  

 

Não se sabe se no que relatam as actas que acabam de ser transcritas há ou não qualquer exagero: incontroverso é que houve problemas graves. Como os houve também na sua saída.

 

O povo, na sua sabedoria ancestral, costuma dizer que “por vezes há males que vêm por bem”. Será o caso aqui. Os problemas criados pelo Sr. Vigário, tanto na entrada como na saída, acabaram por ser úteis à freguesia.

Padre Daniel Correia Rama

 

Dos problemas na entrada resultou, como acabamos de ver, a nomeação da chamada Junta Militar, cuja acção foi extraordinária na promoção do progresso de Aradas; quanto aos problemas na saída, de certos acontecimentos desagradáveis adveio a forte união dum grupo alargado de pessoas em volta da Paróquia, de cuja acção resultou construir-se a nova Residência e o Centro Comunitário Paroquial e fazer-se o alargamento e modernização da Igreja.            

 

O Sr. Vigário era pessoa de características muito marcadas, que não passava despercebida em lado algum. Tomou posse da freguesia em 8 de Setembro de 1925. A acta respectiva é do seguinte teor: “Acta da posse do Reverendo Pároco Daniel Correia Rama – Aos oito dias do mês de Setembro do ano de mil nove centos e vinte e cinco, pelas nove horas da manhã, na Igreja paroquial desta freguesia de São Pedro das Aradas, sendo ali, na qualidade de delegado de S. Exa. Reverendíssima o Sr. D. Manuel, Bispo desta diocese de Coimbra, em minha presença compareceu acompanhado das testemunhas abaixo assinadas, o Reverendo Padre Daniel Correia Rama, Pároco desta freguesia, nomeado por Provisão (decreto) de S. Exa. Reverendíssima de oito de Agosto de mil nove centos e vinte e cinco e em acto seguinte procedi à leitura da referida Provisão (decreto) e introduzi o Reverendo nomeado na posse desta freguesia, observando o cerimonial prescrito. E para constar lavrei esta acta que assino com o novo Pároco e testemunhas designadas”. Seguem-se as assinaturas: Padre Daniel Correia Rama, Manoel Sarrico Deus, Manoel Dias Pereira, Manoel Lopes do Casal, Augusto Gonçalves Andril, Manoel Mendes Leal, Manoel Nunes Bastos, José Maria Rezende Bastos, Abel João Branco, Joze da Cruz Garrido, Manoel de Matos Ferreira, Manoel Nunes da Rocha, O Delegado, Padre João Pinto Rachão”.

 

 

 

Tendo começado em 8 de Setembro de 1925, pastoreou a nossa freguesia até 20 de Maio de 1975, data em que foi substituído pelo pároco actual, reverendo padre Júlio da Rocha Rodrigues. Cerca do início da década de 1970, atendendo à sua idade avançada, ao estado precário da sua saúde e ao facto de a população da freguesia ter crescido muito, o Bispo de Aveiro, D. Manuel de Almeida Trindade, decidiu dar-lhe um coadjutor e mandou para cá o jovem padre Augusto Marques da Costa, que acabara de ser ordenado.

 

Envelhecido como estava, forçado a comer só peixe e legumes, mas mantendo intacta a lendária voracidade do seu apetite, o Sr. Vigário via na criada doméstica uma espécie de salvadora, sem a qual não poderia viver. Esta, que era uma mulher rude, usava e abusava desse seu ascendente para “reinar” na Residência Paroquial.

 

Jovem e inexperiente, o padre Augusto começou a ser cilindrado logo que chegou. Rapidamente desmoralizado, esteve cá muitíssimo pouco tempo e mudou de paróquia mal  surgiu a primeira oportunidade.

 

Quando o padre Júlio chegou e tentou mudar as coisas, a vivência na casa paroquial começou a ter certa turbulência, que   transpirou para o exterior e passou a ser do domínio público.

 

O PREC (Processo Revolucionário em Curso), que se seguiu à revolução de 25 de Abril de 1974 e despoletou enorme agitação social em todo o País, também se fez sentir aqui. Os problemas da residência paroquial, que entretanto se agravaram quando o Sr. Vigário perdeu a qualidade de pároco, passaram a ser tema dessa agitação pública, conduzindo à necessidade de serem tomadas medidas de que as actas do Conselho Paroquial que se transcrevem dão nota.

 

 

Acta nº 1:

 

“Aos vinte de Abril de mil novecentos e setenta e seis, reuniram nesta Paróquia de S. Pedro de Aradas, em sessão extraordinária, o Conselho Paroquial, do qual estavam presentes os Srs. Padre Júlio da Rocha Rodrigues, António Rangel dos Santos Capela, Manuel Maia Neto, José Novo, Manuel Pereira, Manuel Branco Génio, Silvério Madaíl e David Paiva Martins, e ainda os Srs. Padre Daniel Correia Rama e Padre José Camões, este na qualidade de moderador, a fim de, a sugestão do Sr. Bispo Auxiliar da Diocese, reflectir a decisão a tomar em relação à empregada da Casa Paroquial em exercício, D. Isabel de Brás Escaroupa.

 

A reunião foi provocada pelo facto de o Pároco não encontrar na dita empregada as qualidades necessárias ao cabal desempenho das suas funções, essencialmente a nível paroquial.

 

A começar a reunião acordou-se na seguinte agenda de trabalhos: primeiro: reflexão sobre o que deve ser uma empregada paroquial; segundo: apresentação do problema segundo os ângulos de visão dos Srs. Padre Daniel e Padre Júlio; terceiro: conclusões.

 

Quanto ao primeiro ponto da agenda, vários intervenientes disseram do que, em seu entender, deve ser uma empregada paroquial. Entrando no número dois da agenda, usou da palavra o Sr. Padre Daniel que, tomando a defesa da empregada, disse ir embora com ela caso o Pároco, Sr. Padre Júlio, mantivesse a sua decisão de a despedir. Afirmou, por outro lado, que esta sua decisão “deixaria o Padre Júlio em maus lençóis”. Dada a palavra ao Sr. Padre Júlio, este, em resposta, declarou manter a sua opinião de que a empregada não reunia as qualidades mínimas indispensáveis ao cabal desempenho das funções de empregada paroquial.

 

Após reflexão sobre a dimensão paroquial do problema, acordou-se que a empregada deveria ser ouvida pelo Conselho, que procuraria sensibilizá-la para que fizesse um esforço com vista a um melhor cumprimento das suas funções, o que foi aceite pelo Sr. Padre Júlio. Não obstante essa intenção, o Conselho ficou com a liberdade de, ouvida a empregada, caso a julgasse incapaz de uma recuperação aceitável, tomar sobre a sua situação a decisão que entendesse, mesmo a de a despedir, comprometendo-se o Sr. Padre Daniel a aceitar essa decisão sem abandonar a Casa Paroquial, como inicialmente disse ser sua intenção nesse caso.

Nada mais havendo a tratar…”

Seguem-se as assinaturas de todos os citados.

 

 

 

Acta nº 2

 

 

“Aos vinte e um de Abril de mil novecentos e setenta e seis, reuniram-se nesta Paróquia de S. Pedro de Aradas, em sessão extraordinária, o Conselho Paroquial, do qual estavam presentes os Srs. António Rangel dos Santos Capela, Manuel Maia Neto, José Novo, Manuel Pereira, Manuel Branco Génio, Silvério Madaíl e David Paiva Martins, o Sr. Padre José Camões, na qualidade de moderador, e ainda D. Isabel de Brás Escaroupa, empregada da Casa Paroquial em exercício, em cumprimento do estabelecido na reunião extraordinária do dia vinte de Abril e mil novecentos e setenta e seis a que se refere a Acta nº 1.

 

Aberta a sessão, tomou a palavra o moderador, Padre José Camões, que explicou à referida empregada paroquial os motivos da presente reunião. Deu-se então a palavra à D. Isabel, que expôs as suas razões contra o Sr. Padre Júlio, as quais incidiram em questões domésticas de somenos importância, relativas à alimentação, barulho no corredor e casa de banho, lavagem de roupa, etc. Na sua exposição, a referida Senhora usou modos incorrectos, que feriram profundamente o Conselho Paroquial por porem constantemente em causa a sua isenção e sentido de justiça. Outro tanto se verificou relativamente ao Sr. Padre Júlio, que não estava presente, o que se exemplifica pela circunstância de, a dada altura da reunião, a referida Senhora ter sugerido que o Sr. Padre Júlio poderia estar a espreitar o que se passava. Convidada a certificar-se se tal se verificava, não hesitou em levantar-se e ir à porta ver se haveria alguém nas proximidades. Ao acaso, uma afirmação da empregada em causa, referindo-se à hipótese de ser despedida: “saio quando quiser!”.

 

No decurso da reunião, alguns dos presentes chamaram a atenção de que era possível que, por vezes, a empregada não atendesse com a devida delicadeza as pessoas que, por qualquer motivo, se dirigiam à Residência para tratar de assuntos paroquiais. A esta questão respondeu a D. Isabel que algumas vezes ouve tocar à porta e não atende, justificando esta sua atitude com a alegação de que, se for atender, não sabe o que dizer às pessoas, porque o Sr. Padre Júlio, se estiver no seu quarto, não lhe responde ao chamamento. Disse também que outras vezes está ocupada em trabalhos de cozinha e que, portanto, não seria descabido o Sr. Padre Júlio ir atender à porta, porque está mais perto.

 

Reflectindo sobre estas questões, o Conselho chamou a atenção da referida empregada paroquial para a circunstância de ela ser empregada da Paróquia e não empregada particular do Sr. Padre Daniel, ou sequer do Sr. Padre Júlio. Frizou-se-lhe a necessidade de ela atender com igual delicadeza todas as pessoas que se dirijam à Residência a tratar de quaisquer assuntos, sejam essas pessoas sacerdotes ou leigos. Que não obstante reconhecer-se existir entre ela e o Sr. Padre Daniel uma certa afinidade que não existe relativamente ao Sr. Padre Júlio, isso não exclui que ela deva tratar este último com toda a delicadeza.

 

Postas estas recomendações, que ela aceitou, prometendo um esforço de aperfeiçoamento, o Conselho Paroquial decidiu dar-lhe a oportunidade de concretizar esse esforço, exortando-a nesse sentido, e prometeu fazer recomendações correspondentes ao Sr. Padre Júlio.

Nada mais havendo a tratar…” 

 

 

 

Acta nº 3

 

 

“Aos cinco de Maio de mil novecentos e setenta e seis, reuniu o Conselho Paroquial desta Paróquia de Aradas, em sessão extraordinária, a fim de tomar conhecimento do resultado da diligência que o Pároco, Sr. Padre Júlio, a incumbência do Conselho, fizera junto da empregada da Casa Paroquial em exercício, D. Isabel de Brás Escaroupa, com vista a obter a sua assinatura na Acta nº 2.

 

Aberta a sessão, tomou a palavra o Sr. Padre Júlio, que informou o Conselho Paroquial que a referida empregada se recusara a assinar aquela Acta, alegando que, em seu entender, o que nela se encontra exarado não corresponde ao que se passou na reunião a que diz respeito.

 

Após larga troca de impressões entre todos os membros do Conselho, este Órgão Paroquial decidiu, por unanimidade, exarar em Acta a sua surpresa e desagrado pela atitude assumida pela referida empregada da Casa Paroquial, por nada a justificar. O que, pelo que acima fica dito, se considera cumprido.

 

Decidiu ainda o Conselho, e também por unanimidade, que oportunamente se voltará a debruçar sobre este problema.

 

Nada mais havendo a tratar, encerrou-se a sessão, cuja acta, escrita por mim, David Paiva Martins, que servi de Secretário, vai ser assinada pelos presentes depois de lida e aprovada”. Seguem-se as assinaturas de: Padre Júlio Rocha Rodrigues, Manuel Branco Génio, José Francisco Gonçalves Novo, Manuel da Silva Pereira, Silvério Joaquim Madaíl, António Rangel dos Santos Capela, David Paiva Martins, José Simões Ratola, Manuel Martins Rodrigues, Manuel Ferreira e Manuel Maia Neto.

 

 

Houve depois cerca de ano e meio de acalmia relativa dos conflitos. Até que um dia, a pedido do Sr. Vigário, o Conselho reuniu extraordinariamente para ouvir a comunicação que ele anunciou ter a fazer. É do que trata a acta que se segue:

 

 

Acta nº 8:

 

“Aos cinco de Outubro de mil novecentos e setenta e sete, reuniram os membros abaixo assinados do Conselho Paroquial, em sessão extraordinária, tendo nessa altura o Conselho a oportunidade de ouvir uma comunicação que o ex-Pároco, Reverendo Padre Daniel Correia Rama, adiante referido por Senhor Vigário, anunciou ter para lhe fazer. Sendo-lhe dada a palavra, o Senhor Vigário teceu diversas considerações sobre o seu actual estado de saúde que, sucintamente, se traduzem no seguinte: o Senhor Vigário disse sentir a sua saúde a decair e temer que, caso adoeça gravemente, não tenha aqui a possibilidade de ser assistido do melhor modo. Entende que, em tal eventualidade, estaria melhor junto da sua família de sangue. Informou que fora há dias visitado pelos seus familiares e que decidira mudar-se da Residência Paroquial desta Paróquia para casa de uma sua irmã, na sua terra natal. Nessas condições, pedia autorização e o acordo do Conselho Paroquial para se mudar para casa dessa sua irmã.

 

Colhido de surpresa por tal declaração de intenções, o Conselho Paroquial, depois de ter perguntado ao Senhor Vigário se ele lá teria condições de assistência médica, em caso de necessidade, ao que o Senhor Vigário respondeu ter a plena aquiescência do seu médico assistente para se mudar, fez sentir ao Senhor Vigário a sua mágoa de o ver partir. Disse o Conselho Paroquial, através de intervenções de alguns dos seus membros, que, no plano humano, compreendia perfeitamente a sua vontade de se juntar aos seus familiares de sangue e que o Senhor Vigário, como homem livre que era, tinha o pleno direito de decidir da sua vida como melhor entendesse. Foi-lhe, contudo, chamada a atenção para a possibilidade de a sua atitude ser aproveitada no exterior do Conselho para se tecerem considerações de que teriam sido o Pároco actual, ou o Coadjutor, ou mesmo o Conselho Paroquial a pressioná-lo para que se retirasse da nossa Paróquia. O Senhor Vigário reforçou a afirmação, já anteriormente feita, de que o que decidira fora por sua livre, espontânea e inteira vontade, sem pressões de quem quer que fosse. Foi-lhe também chamada a atenção para a necessidade e conveniência de se despedir da Comunidade Paroquial, explicando-lhe os motivos da sua atitude. O Senhor Vigário concordou com esta ideia, tendo ficado combinado que alguém o iria buscar no próximo dia quinze do corrente, a fim de, às missas desse dia e do dia seguinte, falar ao Povo. Assentes estes pontos, o Conselho, frisando de novo a tristeza de o ver partir, declarou solenemente ao Senhor Vigário que, embora se mudasse agora para casa de sua irmã, teria sempre o seu lugar em aberto na nossa Casa Paroquial e que seria com muita alegria que o teríamos entre nós sempre e em qualquer altura que para cá quisesse voltar, quer de visita passageira quer a título definitivo. Foi ainda decidido por unanimidade, e disso dado conhecimento ao Senhor Vigário, que enquanto vivesse e onde quer que estivesse, o Conselho Paroquial faria chegar até ele o valor da pensão de velhice que em decisões anteriores já lhe fora atribuída (pensão essa que acrescenta às outras que recebe doutras proveniências) em reconhecimento dos altos serviços prestados à Paróquia ao longo de mais de cinquenta anos, o que nunca poderá, nem deverá, ser esquecido por todos os que com ele tiveram a honra de conviver.

 

Nada mais havendo a tratar, deu-se por encerrada a sessão, cuja acta, escrita por mim, David Paiva Martins, que servi de Secretário, vai ser assinada pelos presentes depois de lida e aprovada”.

 

Seguem-se as assinaturas de: Padre Júlio Rocha Rodrigues, uma assinatura ilegível, Manuel da Maia Neto, David Paiva Martins, Manuel da Silva Pereira, Isaías dos Santos, outra assinatura ilegível, Carlos Lourenço Neves, Manuel Branco Génio, Silvério Joaquim Madaíl, António Rangel dos Santos Capela, Padre Daniel Correia Rama.

 

 

 

E o Sr. Vigário partiu para casa da irmã. Levou a criada consigo. A família, porém, é que não esteve com contemplações… e despediu-a. 

 

 

Claro que a partida do Sr. Vigário trouxe os esperados problemas ao Conselho Paroquial. Numa manhã, havia em todas as casas da freguesia um panfleto, que alguém distribuíra durante a noite, a dizer as maiores barbaridades. Quando o Conselho reuniu, um grupo ululante irrompeu na sala, gritando impropérios. Assumindo o comando da turba para lhe impor alguma ordem, uma pessoa importante (cujo nome aqui se omite propositadamente, em sinal de consideração) dirigiu-se ao Conselho pedindo que explicasse o que se tinha passado. A resposta foi dada com a leitura em voz alta da acta que antecede, convidando-se as pessoas a verificarem as assinaturas. Ao ver no livro a assinatura inequívoca do Sr. Vigário, a pessoa fez cara de quem de repente se apercebe da ratoeira em que tinha caído e disse: – “Face a isto, nada mais há a acrescentar”. E retirou-se da sala.

 

 

O Sr. Vigário faleceu em casa da irmã, na Carapinheira do Campo, em 11 de Agosto de 1978. O corpo veio para cá e o funeral realizou-se na Paróquia. A Junta de Freguesia, então da presidência de Manuel Simões Madaíl, homenageou-lhe a memória ao dar o seu nome a uma rua e mandando executar a campa em que está sepultado no nosso cemitério.

 

 
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