Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 151 a 159.

Palavras de José Manuel Matos Fernandes

Honra-me o Dr. Manuel da Costa e Melo com o convite para participar na apresentação da sua "Gente de Toga e Beca".

Concede-me, sem que seja essa a sua intenção, o ensejo há muito perseguido de lhe prestar pública homenagem pelas suas notáveis qualidades de cidadão e de advogado.

Meu Colega no Conselho Superior da Magistratura no triénio de 1985 a 1988, conheci Costa e Melo há quase 30 anos, quando, como Delegado do Procurador da República, fui servir para a sua comarca natal de Águeda.

Desde então, com as vicissitudes de uma carreira que até hoje me obrigou a mudar de casa e a carregar com os livros por uma dúzia de vezes, de Valença a S. Vicente, no norte da Madeira, tenho-me enriquecido com uma convivência amiga, a que muito devo.

Era impossível permanecer indiferente perante a lição viva do seu profissionalismo, do seu zelo na defesa dos interesses que lhe eram confiados, como também, e principalmente, da sua coragem Cívica, da sua tenacidade, do seu desassombro, da sua coerência, do seu espírito de sacrifício, tudo ingredientes que durante largo tempo fizeram parte do difícil amor pela Liberdade.

Se com ele aprendi a igual dignidade e a interdependência entre magistrados e advogados na administração da justiça, aprendi também que só está à altura de intervir na realização do Estado de Direito quem acreditar nos valores da Democracia e os converter em prática quotidiana.

Aceite, Costa e Melo, a expressão da minha admiração e do meu agradecimento, sem que o dispense de prosseguir o seu magistério.

Em compreensível divisão de tarefas, a gente de toga coube ao Dr. Manuel Homem Ferreira, cabendo-me a gente de beca.

Compreensível a divisão de tarefas, mas já não tanto a referência a um painel de antigos juízes em que, confesso, me não revejo a não ser no aspecto acessório da veste profissional. / 154 /

Sou de uma geração posterior, a das crises académicas dos anos 60 e da guerra colonial, que já não encontrou a vida nos tribunais centrada à volta de um juiz esfíngico, metido numa redoma, confundindo a independência e a imparcialidade com a rejeição de quaisquer contactos sociais e a frequência de lugares públicos − excepto a ida a banhos, de chapéu e fato completo, à Figueira da Foz − atravessando o Largo da terra com ar "taciturnus et secretus", "gravis", "severus", "solitarius" e até "castus et pudicus", cinco dos vinte e quatro atributos que Paiva e Pona, na sua velha "Orfanologia prática" exigia aos juizes. Era o tempo em que ainda se ouviam os ecos do Livro 10 das Ordenações, que impunha que o juiz dos órfãos tivesse de 30 anos para cima com a justificação de que" nessa idade tem já desaparecido o fogo das paixões".

Lembro-me de uma figura assim impressionante, que se perde nas minhas leituras da adolescência, a de "O Juiz" do escritor inglês Hall Caine.

Recordo-me, ainda, de uma das primeiras lições de Deontologia que ingenuamente me deu um juiz dessa escola, ao gabar-me o exemplo de um colega que mandou a criada pagar três ou quatro rebuçados que o merceeiro oferecera ao filho do meritíssimo, quando a criança tinha ido às compras, ao colo da empregada. Como me recordo, e cheguei a conhecê-lo, do juiz que, em interpretação literal da norma do Estatuto Judiciário que proibia os magistrados se ausentarem da comarca, mesmo aos domingos e feriados, estacava todas as noites, como uma mula espantada, junto do mesmo marco quilométrico da estrada para onde ia digerir a ceia e dava meia volta. É que ali era a fronteira entre a sua comarca e a comarca vizinha.

A minha é já uma geração de transição, em que o juiz foi deixando de ser apenas "la bouche de la loi" na expressão de Montesquieu, tomou consciência do absurdo de uma "Dura Lex sed Lex", se atreveu timidamente a desmontar o artifício de uma decisão / 155 / construída mediante a pura lógica formal do chamado silogismo judiciário.

Para tanto, e entre outros factores − de que saliento a pedagogia da palavra e do exemplo de alguns grandes homens de toga, como os que Costa e Melo recorda, com justiça − contribuiu a profunda modificação sociológica que se verificou no campo do recrutamento dos magistrados, que deixou de se situar, prevalentemente, nas classes mais elevadas e se alargou a uma pequena burguesia, aos filhos de modestos funcionários públicos e de proprietários rurais.

Esbateu-se, necessariamente, a barreira entre o juiz e a gente humilde que frequentava os tribunais, aquele mais sensível, porque mais próximo, às desigualdades e aos dramas do penoso dia-a-dia dos seus concidadãos.

De resto, nos finais dos anos 60 batia no fundo o processo de gradual "proletarização" da magistratura, com vencimentos que se situavam em níveis vexatórios e indignos, situação que despoletou o primeiro movimento colectivo da classe contra o poder e se traduziu numa representação ao Ministro da Justiça, em Fevereiro de 1970, por iniciativa dos juízes e delegados do procurador da República sediados na comarca do Porto.

Éramos cerca de 50 e só três magistrados se recusaram a subscrever a representação, em que se sublinhava que a independência dos juízes arrancava da sua independência económica.

Honra seja à Ordem dos Advogados e ao então Bastonário Pedro Pitta, que nesse espaço de liberdade que era a Revista, publicou, na íntegra, o documento (R.O.A. Ano 31-II, páginas 228 e seguintes) sem o que ele teria até hoje permanecido inédito.

E fez mais. Em nota da redacção esclareceu que à representação vieram a aderir os juízes e os delegados dos círculos de Aveiro, Braga, Faro, Lamego, Guimarães, Portalegre e Viana do Castelo.

Por curiosa coincidência − ou talvez não − no mesmo número da Revista, outro dos aqui lembrados por Costa e Melo, o Advogado / 156 / Artur Santos Silva, publicava um notável e corajoso artigo sobre "A Constituição e a independência do poder judicial" ainda hoje de flagrante actualidade.

Não quero, longe de mim, dizer que rejeito o trato sucessivo da evolução dos quadros mentais do pensamento, da conduta, dos preconceitos e dos tiques dos homens da beca.

Também aqui "natura non facit saltus".

O que acontece é que as modificações outrora ao ritmo pacato da malaposta, se passaram a fazer à velocidade de um "fórmula 1".

Reconheço, com lúcida melancolia, a minha dificuldade em acompanhar a evolução dos fenómenos sociais e das mentalidades, eu que ingressei numa profissão reservada aos homens e que só o 25 de Abril abriu às mulheres. Os notários e os conservadores do registo predial, substitutos legais aos delegados e dos juízes, deixavam de o ser se fossem de sexo feminino, proibição que só foi abolida em 1970. Convivi ainda, com institutos como o de depósito da mulher casada, como preliminar ou incidente da acção de divórcio; o da sua entrega judicial ao marido, espécie de execução para entrega de coisa certa; o do seu recebimento coercivo pelo cônjuge varão, arremedo de execução para prestação de facto positivo. Testemunhei, entusiasmado, a querela doutrinária e jurisprudencial sobre a qualificação do "error virginitatis" causa da anulação do casamento, para uns baseada na "ignorância do estado da noiva" pelo noivo, para outros fundada em "ignorância de defeito físico irremediável" da nubente.

Como tudo parece de ontem! Como tudo tresanda a bafio!

Costa e Melo ressuscita, quase em sentido literal − a maioria já não pertence ao número dos vivos − um punhado de juízes com quem trabalhou ao longo da sua carreira, não para lhes captar a biografia ou delinear o carácter, mas para lhes dar o "retrato de uma só pincelada, o nariz em vez do perfil, o gesto em vez do gestual, a frase / 157 / que sublinha um temperamento" como agudamente observa o Dr. Almeida Santos na peça de antologia que é prefácio do livro.

Sem a macieza da pena de feltro do prefacia dor, eu diria que, aqui e além, o perfil dos juízes, mais do que um nariz de cavalete, é uma verruga na face, uma pelada na cabeça, se não uma inestética marreca. Mas tudo isso sem maldade, antes com uma indisfarçada ternura cheia de incompreensão e de indulgência de quem rememora, à distância, com a bonomia de um filósofo de 80 anos.

Costa e Melo não ajusta contas, porque não tem contas a ajustar. Por quanto conheço dele, por quanto lhe vi, nunca esteve muito tempo na situação de credor, porque o que tinha a dizer, por mais desagradável ou até violento que fosse, dizia-o logo, sem eufemismos, sem vergar a cerviz, sem temor reverencial.

Não transporta, por isso, no seu repouso de guerreiro, o rancor dos humilhados e ofendidos que, desfeiteados pela prepotência ou pela grosseria de certos juízes − que os houve e continua a haver assim, desgraçadamente − lhes lançam pragas à distância, sem coragem de os afrontarem cara-a-cara.


Aceitando o repto do
Dr. Almeida Santos, que denuncia a escassez de registo de tantos episódios risonhos em que a vida judiciária é fértil, tomo a liberdade, para terminar, de relatar um entre mil dos que guardo memória.

Era em Águeda, há cerca de 10 anos.

Presidia eu, corregedor de círculo de Aveiro, ao Tribunal Colectivo que julgava um homicídio.

O réu, um homem idoso, que por uma questão fútil, de estremas abatera, a tiro de caçadeira, outro velhote, seu vizinho.

Defesa a cargo de um ilustre experiente advogado, senhor de um estilo vivíssimo e por vezes truculento.

A produção de prova foi rápida, o crime ficou mais que visto, atenuantes só a da provecta idade do acusado. / 158 /

Com a lotação da sala de audiências esgotada, as alegações da defesa − um bico-de-obra − volveram-se para um genro da vítima, o Xiola, sobre quem o advogado procurou desviar as culpas do seu cliente.

O Xiola − apostrofava o defensor, refinando a sua agressividade − é que foi a alma negra da tragédia. Se houvesse justiça, ele é que devia estar sentado no banco dos réus. Esse salafrário incitando o sogro a mudar as estacas da vedação dos prédios, incendiou as relações entre os vizinhos, que até se davam bem. O Xiola, esse malandro, esse intriguista...

Os meus colegas juízes estranhavam a minha passividade.

A verdade é que eu observava o Xiola, sentado na primeira fila do público, e via-o imperturbável.

Tem poder de encaixe, pensei.

O defensor, em girândola, lá acabou as alegações.

Senti então que era meu dever desagravar o alvo inocente da peça oratória.

− Senhor Xiola, faça favor de se levantar!

O Xiola, nada.

− Senhor Xiola, insisti, levante-se que tenho uma coisa para lhe dizer.

O Xiola, moita.

− Senhor Xiola, berrei, exasperado, levante-se, já lhe disse. Ergueu-se, enfim, o Xiola, no alto dos seus quase dois metros.

− Senhor Xiola, o senhor foi injustamente tratado pelo sr. Advogado, que eu só não interrompi porque o crime que estamos a julgar é muito grave, a pena da lei é muito pesada, o direito de defesa é sagrado e eu não quis que, depois, viessem censurar o tribunal por ter prejudicado o réu. Quero, no entanto, que fique a saber que o senhor entrou nesta sala como um homem de bem e sai daqui como um homem de bem.

O Xiola, que me olhava fixamente, ao ver que eu me tinha calado, disse, então, implorativo: / 159 /

− Ó Senhor Dr. Juiz, sou surdo como um tamanco! Fale mais alto se faz favor!

Enquanto falava desejei que os presentes, por uns minutos, fossem como o Xiola. Ter-se-iam poupado às palavras de quem, por profissão, nasceu mais para ouvir do que para ser ouvido.

Muito obrigado.

 

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