Honra-me o Dr. Manuel da
Costa e Melo com o convite para
participar na apresentação da sua "Gente de Toga e Beca".
Concede-me, sem que seja essa a sua intenção, o ensejo há muito
perseguido de lhe prestar pública homenagem pelas suas notáveis
qualidades de cidadão e de advogado.
Meu Colega no Conselho Superior da Magistratura no triénio de 1985 a
1988, conheci Costa e Melo há quase 30 anos, quando, como Delegado do
Procurador da República, fui servir para a sua comarca natal de Águeda.
Desde então, com as vicissitudes de uma carreira que até hoje me obrigou
a mudar de casa e a carregar com os livros por uma dúzia de vezes, de
Valença a S. Vicente, no norte da Madeira, tenho-me enriquecido com uma
convivência amiga, a que muito devo.
Era impossível permanecer indiferente perante a lição viva do seu
profissionalismo, do seu zelo na defesa dos interesses que lhe eram
confiados, como também, e principalmente, da sua coragem Cívica, da sua
tenacidade, do seu desassombro, da sua coerência, do seu espírito de
sacrifício, tudo ingredientes que durante largo tempo fizeram parte do
difícil amor pela Liberdade.
Se com ele aprendi a igual dignidade e a interdependência entre
magistrados e advogados na administração da justiça, aprendi também que
só está à altura de intervir na realização do Estado de Direito quem
acreditar nos valores da Democracia e os converter em prática
quotidiana.
Aceite, Costa e Melo, a expressão da minha admiração e do meu
agradecimento, sem que o dispense de prosseguir o seu magistério.
Em compreensível divisão de tarefas, a gente de toga coube ao
Dr. Manuel Homem Ferreira, cabendo-me a gente de beca.
Compreensível a divisão de tarefas, mas já não tanto a referência a um
painel de antigos juízes em que, confesso, me não revejo a não ser no
aspecto acessório da veste profissional.
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Sou de uma geração posterior, a das crises académicas dos anos 60 e da
guerra colonial, que já não encontrou a vida nos tribunais centrada à
volta de um juiz esfíngico, metido numa redoma, confundindo a
independência e a imparcialidade com a rejeição de quaisquer contactos
sociais e a frequência de lugares públicos − excepto a ida a banhos, de
chapéu e fato completo, à Figueira da Foz − atravessando o Largo da
terra com ar "taciturnus et secretus", "gravis", "severus", "solitarius"
e até "castus et pudicus", cinco dos vinte e quatro atributos que Paiva
e Pona, na sua velha "Orfanologia prática" exigia aos juizes. Era o
tempo em que ainda se ouviam os ecos do Livro 10 das Ordenações, que
impunha que o juiz dos órfãos tivesse de 30 anos para cima com a
justificação de que" nessa idade tem já desaparecido o fogo das
paixões".
Lembro-me de uma figura assim impressionante, que se perde nas minhas
leituras da adolescência, a de "O Juiz" do escritor inglês Hall Caine.
Recordo-me, ainda, de uma das primeiras lições de Deontologia
que ingenuamente me deu um juiz dessa escola, ao gabar-me o exemplo de
um colega que mandou a criada pagar três ou quatro rebuçados que o
merceeiro oferecera ao filho do meritíssimo, quando a criança tinha ido
às compras, ao colo da empregada. Como me recordo, e cheguei a
conhecê-lo, do juiz que, em interpretação literal da
norma do Estatuto Judiciário que proibia os magistrados se ausentarem da
comarca, mesmo aos domingos e feriados, estacava todas as noites, como
uma mula espantada, junto do mesmo marco quilométrico da estrada para
onde ia digerir a ceia e dava meia volta. É que ali era a fronteira
entre a sua comarca e a comarca vizinha.
A minha é já uma geração de transição, em que o juiz foi deixando de ser
apenas "la bouche de la loi" na expressão de Montesquieu, tomou
consciência do absurdo de uma "Dura Lex sed Lex", se atreveu timidamente
a desmontar o artifício de uma decisão
/ 155 / construída mediante a pura lógica formal do chamado silogismo
judiciário.
Para tanto, e entre outros factores
− de que saliento a pedagogia da
palavra e do exemplo de alguns grandes homens de toga, como os que Costa
e Melo recorda, com justiça − contribuiu a profunda modificação
sociológica que se verificou no campo do recrutamento dos magistrados,
que deixou de se situar, prevalentemente, nas classes mais elevadas e se
alargou a uma pequena burguesia, aos filhos de modestos funcionários
públicos e de proprietários rurais.
Esbateu-se, necessariamente, a barreira entre o juiz e a gente humilde
que frequentava os tribunais, aquele mais sensível, porque mais próximo,
às desigualdades e aos dramas do penoso dia-a-dia dos seus concidadãos.
De resto, nos finais dos anos 60 batia no fundo o processo de gradual
"proletarização" da magistratura, com vencimentos que se situavam em
níveis vexatórios e indignos, situação que despoletou o primeiro
movimento colectivo da classe contra o poder e se traduziu numa
representação ao Ministro da Justiça, em Fevereiro de 1970, por
iniciativa dos juízes e delegados do procurador da República sediados na
comarca do Porto.
Éramos cerca de 50 e só três magistrados se recusaram a subscrever a
representação, em que se sublinhava que a independência dos juízes
arrancava da sua independência económica.
Honra seja à Ordem dos Advogados e ao então Bastonário Pedro Pitta, que
nesse espaço de liberdade que era a Revista, publicou, na íntegra, o
documento (R.O.A. Ano 31-II, páginas 228 e seguintes) sem o que ele teria
até hoje permanecido inédito.
E fez mais. Em nota da redacção esclareceu que à representação vieram a
aderir os juízes e os delegados dos círculos de Aveiro, Braga, Faro,
Lamego, Guimarães, Portalegre e Viana do Castelo.
Por curiosa coincidência − ou talvez não
− no mesmo número da Revista,
outro dos aqui lembrados por Costa e Melo, o Advogado
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Artur Santos Silva, publicava um notável e corajoso artigo sobre "A
Constituição e a independência do poder judicial" ainda hoje de
flagrante actualidade.
Não quero, longe de mim, dizer que rejeito o trato sucessivo da evolução
dos quadros mentais do pensamento, da conduta, dos preconceitos e dos
tiques dos homens da beca.
Também aqui "natura non facit saltus".
O que acontece é que as modificações outrora ao ritmo pacato
da malaposta, se passaram a fazer à velocidade de um "fórmula 1".
Reconheço, com lúcida melancolia, a minha dificuldade em acompanhar a
evolução dos fenómenos sociais e das mentalidades, eu que ingressei numa
profissão reservada aos homens e que só o 25 de Abril abriu às mulheres.
Os notários e os conservadores do registo predial, substitutos legais
aos delegados e dos juízes, deixavam de o ser se fossem de sexo
feminino, proibição que só foi abolida em 1970. Convivi ainda, com
institutos como o de depósito da mulher casada, como preliminar ou
incidente da acção de divórcio; o da sua entrega judicial ao marido,
espécie de execução para entrega de coisa
certa; o do seu recebimento coercivo pelo cônjuge varão, arremedo
de execução para prestação de facto positivo. Testemunhei, entusiasmado,
a querela doutrinária e jurisprudencial sobre a qualificação do "error
virginitatis" causa da anulação do casamento, para uns baseada na
"ignorância do estado da noiva" pelo noivo, para outros fundada em
"ignorância de defeito físico irremediável" da nubente.
Como tudo parece de ontem! Como tudo tresanda a bafio!
Costa e Melo ressuscita, quase em sentido literal
− a maioria já
não pertence ao número dos vivos − um punhado de juízes com quem
trabalhou ao longo da sua carreira, não para lhes captar a biografia ou
delinear o carácter, mas para lhes dar o "retrato de uma só pincelada, o
nariz em vez do perfil, o gesto em vez do gestual, a frase
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que sublinha um temperamento" como agudamente observa o Dr. Almeida
Santos na peça de antologia que é prefácio do livro.
Sem a macieza da pena de feltro do prefacia dor, eu diria que,
aqui e além, o perfil dos juízes, mais do que um nariz de cavalete, é
uma verruga na face, uma pelada na cabeça, se não uma inestética
marreca. Mas tudo isso sem maldade, antes com uma indisfarçada ternura
cheia de incompreensão e de indulgência de quem rememora, à distância,
com a bonomia de um filósofo de 80 anos.
Costa e Melo não ajusta
contas, porque não tem contas a ajustar. Por quanto conheço dele, por
quanto lhe vi, nunca esteve muito tempo na situação de credor, porque o
que tinha a dizer, por mais desagradável ou até violento que fosse,
dizia-o logo, sem eufemismos, sem vergar a cerviz, sem temor
reverencial.
Não transporta, por isso, no seu repouso de guerreiro, o rancor dos
humilhados e ofendidos que, desfeiteados pela prepotência ou pela
grosseria de certos juízes − que os houve e continua a haver assim,
desgraçadamente − lhes lançam pragas à distância, sem coragem de os
afrontarem cara-a-cara.
Aceitando o repto do
Dr. Almeida Santos,
que denuncia a escassez de registo de tantos episódios risonhos em que a
vida judiciária é fértil, tomo a liberdade, para terminar, de relatar um
entre mil dos que guardo memória.
Era em Águeda, há cerca de 10 anos.
Presidia eu, corregedor de círculo de Aveiro, ao Tribunal Colectivo que julgava um homicídio.
O réu, um homem idoso, que por uma questão fútil, de
estremas abatera, a tiro de caçadeira, outro velhote, seu vizinho.
Defesa a cargo de um ilustre experiente advogado, senhor de
um estilo vivíssimo e por vezes truculento.
A produção de prova foi rápida, o crime ficou mais que visto,
atenuantes só a da provecta idade do acusado.
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Com a lotação da sala de audiências esgotada, as alegações da defesa
−
um bico-de-obra − volveram-se para um genro da vítima, o Xiola, sobre
quem o advogado procurou desviar as culpas do seu cliente.
O Xiola − apostrofava o defensor, refinando a sua agressividade
− é que
foi a alma negra da tragédia. Se houvesse justiça, ele é que devia estar
sentado no banco dos réus. Esse salafrário incitando o sogro a mudar as
estacas da vedação dos prédios, incendiou as relações entre os vizinhos,
que até se davam bem. O Xiola, esse malandro, esse intriguista...
Os meus colegas juízes estranhavam a minha passividade.
A verdade é que eu observava o Xiola, sentado na primeira fila
do público, e via-o imperturbável.
Tem poder de encaixe, pensei.
O defensor, em girândola, lá acabou as alegações.
Senti então que era meu dever desagravar o alvo inocente da
peça oratória.
− Senhor Xiola, faça favor de se levantar!
O Xiola, nada.
− Senhor Xiola, insisti, levante-se que tenho uma coisa para lhe
dizer.
O Xiola, moita.
− Senhor Xiola, berrei, exasperado, levante-se, já lhe disse. Ergueu-se,
enfim, o Xiola, no alto dos seus quase dois metros.
− Senhor Xiola, o senhor foi injustamente tratado pelo sr. Advogado, que eu só não interrompi porque o crime que estamos a julgar é
muito grave, a pena da lei é muito pesada, o direito de defesa é sagrado
e eu não quis que, depois, viessem censurar o tribunal por ter
prejudicado o réu. Quero, no entanto, que fique a saber que o senhor
entrou nesta sala como um homem de bem e sai daqui como
um homem de bem.
O Xiola, que me olhava fixamente, ao ver que eu me tinha calado, disse,
então, implorativo:
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− Ó Senhor Dr. Juiz, sou surdo como um tamanco! Fale mais
alto se faz favor!
Enquanto falava desejei que os presentes, por uns minutos, fossem como o
Xiola. Ter-se-iam poupado às palavras de quem, por profissão, nasceu
mais para ouvir do que para ser ouvido.
Muito obrigado. |