Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 143 a 149.

Palavras de Manuel Homem Ferreira

O Autor destas preciosas linhas, já não poderá estar presente aquando do lançamento delas neste livro.

Sinceramente não tomo como abuso o deixá-las a enriquecer o volume e a servirem de saudade que todos os que o conheceram, por certo dele terão.

I

Há cerca de quarenta anos, fui encarregado de contestar uma Acção de Investigação de Paternidade Ilegítima patrocinada pelo Dr. Manuel da Costa e Melo, já, então, um Advogado de renome do fôro aveirense.

No articulado inicial, além dos elementos essenciais, alegava-se, como circunstância adjuvante que o menor investigante até tinha o nome de Manuel como o pretenso pai.

Lembro-me de ter respondido que o nome de Manuel era vulgar e muito comum na língua portuguesa.

E a tal ponto que era, também o nome próprio dos dois Advogados que intervinham no pleito...

Foi nesse primeiro e risonho embate judicial, que começou a nascer, entre mim e o Dr. Costa e Melo, uma amizade que o convívio, noutros processos, foi solidificando e que resistiu às variações dos tempos e às marés da vida, mesmo as mais dolorosas.

Creio ser essa o razão fundamental da participação da minha toga no lançamento do livro que, hoje, nos prende a atenção.

II

Haverá talvez, um outro motivo mais sombrio, pois radica na tradicional e generosa consideração pela antiguidade.

Eu devo ser, nesta zona aveirense, o mais antigo a exercer a Advocacia.

E se a fase terminal da minha carreira de Advogado pode despertar um clima de tolerância, acarreta, por vezes, como neste caso, um encargo desmedido e torturante.

Para suprir deficiências e falhas, invoco a atenuação especial da presença, a meu lado, do Magistrado Ilustre que é sem qualquer gota de favor, o Desembargador Dr. Matos Fernandes.

Estando aqui, unicamente por direito de amizade e por direito de antiguidade, esses títulos não me conferem a faculdade de agredir as pessoas com um discurso. / 146 /

Não cometerei essa infracção. À boa maneira do Tribunal reduzo o perímetro destas palavras a um apontamento breve e descarnado.

III

O Dr. Costa e Melo é uma figura curiosa da Advocacia.

Por fora uma imponência física e uma voz poderosa que constituíam um trunfo na sala de audiências.

Por dentro, uma sensibilidade poética apurada, uma cultura humanística de relevo, um coração de ouro.

Não pode ser Advogado quem não tiver um espírito sereno, nem quem tiver o coração gelado.

Costa e Melo nunca ficava na berma das emoções, ou nas margens da respiração humana dos processos.

Organizava e preparava meticulosamente as causas que lhe confiavam, vivendo-as e sofrendo-as com dedicação e de forma vibrante.

Sabia os momentos próprios da ironia ou da indignação.

No convívio era agradável. No duelo judicial era difícil de enfrentar, e, por vezes, difícil de aturar...

Em tudo, um verdadeiro Advogado.

IV

É sabido que por detrás das paredes de um escritório de Advocacia, perpassa e borbulha a vida do ser humano com a sua felicidade e a sua dor, com a sua bondade e a sua maldade, com a sua ambição e a sua generosidade, com a sede de justiça e a sede de vingança, com fatias de sublime e talhadas de miséria.

Tudo isto é a matéria viva e o panorama onde o Advogado, todos os dias, suja os olhos e procura não sujar a alma.

Uma das grandes aspirações do Advogado é conseguir ser ouvido pelos Juízes, o que se torna cada vez mais difícil. / 147 /

É um aspecto importante, pois decorre na audiência de julgamento que, pelo seu sabor a espectáculo, é a fase emblemática da profissão que tanto seduz e ocupa os meios de comunicação social.

Mas a parte mais humana do ofício do Advogado não é ser ouvido. É saber ouvir os que o procuram.

Quantas vezes nos surge uma angústia que é preciso amparar, um ridículo que é preciso esvaziar e esclarecer, um inocente que é preciso defender, um infeliz que é preciso consolar, uma tentação que é preciso afastar e, até, um patife que é preciso escorraçar.

É este universo de intensidades que, aos poucos, nos vai destroçando os nervos, fatigando o espírito e ferindo o coração.

V

O livro" Gente de Toga e Beca" aflora os contornos desta paisagem, em fragmentos escritos com um estilo literário requintado, por vezes florido, em que ressalta um nítido amor das palavras.

O Dr. Costa e Melo foi ao entulho das suas recordações e se leccionou uma colecção de figuras e episódios.

Sobre as figuras entornou umas gotas de ternura.

Sobre os episódios, espalhou uns grãos de sal de humor, ou umas pétalas de poesia.

Numa visão linear e impressionista, é esta a síntese do livro do Dr. Costa e Melo.

VI

Não escondo que a sua leitura despertou, no meu espírito, duas sensações contraditórias.

A primeira foi uma sensação de sorriso pelo pitoresco ou graça de alguns episódios e pelo ridículo de outros.

E quem considere qualquer brejeirice mais excessiva é porque não atinge o moderno humorismo lisboeta, representado por um Herman José ou um Pedro Abrunhosa, esquecendo, até, que Lisboa é a capital da nossa cultura... / 148 /

Mas estes "Fogachos da lareira forense" não abordam, apenas, casos risonhos e cenas ou respostas irónicas.

Desenham, ainda, momentos de grande carga dramática, como o julgamento, em Águeda, da mulher acusada de matar o marido.

Ou de grande sensibilidade poética, como o julgamento do Leonídio, na minha comarca de Albergaria, que é uma página de superior beleza.

VII

A outra sensação que sofri foi de comovida saudade pela maioria das figuras que o Dr. Costa e Melo evoca.

Li essas páginas com o sentimento amargo de quem percorre uma alameda de túmulos e sepulturas de Juízes que tanto ilustraram a Magistratura e de Colegas que tanto honraram a Advocacia.

Daqueles que conheci melhor, com quem trabalhei assiduamente e a quem me ligavam laços de verdadeira afectividade, relembro Magistrados de grande nível como os Drs. Bravo Serra, Fernandes Costa, João Vale e Nazareth Falcão.

E dos que trabalhavam na mesma vinha, recordo, num pequeno traço, os companheiros de toga.

Não esqueço o aprumo moral do Dr. Querubim Guimarães, a ironia subtil do Dr. António Pinho, a gentileza do Dr. Fernando Moreira, o patriarca Dr. Manuel das Neves, a solidez jurídica do meu conterrâneo Dr. Sousa e Melo e a heróica resistência profissional do Dr. Álvaro Neves, à doença que o ia devorando.

Saíram já todos da vida. Mas não saíram da nossa saudade e da nessa admiração. / 149 /

Minhas Senhoras e Meus Senhores

VIII

O salário da Advocacia nunca é a glória. Umas vezes será um momento leve e fugaz de simpatia; outras a indiferença e sempre a solidão e o esquecimento.

São livros como este, com retalhos graciosos ou dramáticos da vida forense, que poderão servir a pequena história do futuro, confortar, um pouco, as agruras da profissão e retardar esse jazigo definitivo do esquecimento.

Servirão, sempre, pele menos, para desanuviar o negro das nessas Togas e Becas.

 

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