Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 9 a 13

Prefácio

Quem tem uma vida longa e olhos para ver o mundo, é senhor de uma grande riqueza. Se a tais dons se acrescentar a cultura e a vocação literária, será, seguramente, um escritor-memorialista.

Costa e Melo, meu velho Colega e Amigo, reúne todos esses predicados, e mais outro: a capacidade de comunicar, ou seja, de tornar comum, de partilhar com os outros as suas vivências, a sua mundividência.

Estou certo de que tais qualidades lhe advieram, em parte, da condição de advogado, que foi durante longos e fastos anos, por causa de uma outra condição conjuntural: impedido, por motivos políticos, de seguir uma carreira pública, foi obrigado a enveredar pela actividade liberal e a trocar a beca pela toga.

Há males que vêm por bem, como diz o povo. Se Costa e Melo não tivesse sido advogado e colhido na barra dos tribunais e da vida, a experiência ímpar que só a advocacia proporciona, não seria, certamente, o escritor de palavra escorreita e fluente que a sua vasta obra − de poeta, de contista e memorialista − nos revela. É que o autor deste livro foi um advogado no verdadeiro sentido da função: a de defensor-orador, que é chamado (ad-vocatus) para defender uma causa, e que, para além do seu saber jurídico, usa a palavra como instrumento privilegiado dessa função. A denominação" defensor / 10 / orador" precede, historicamente, a de advogado, justamente porque, nos tempos antigos, apenas se exigia que quem tomasse a defesa de outrem soubesse arrazoar capazmente. E esta virtude, hoje tão rara, é ainda um dos segredos do êxito forense, que Costa e Melo soube usar, como poucos, na sua "faina de pedidor de justiça".

Este livro é a prova do que fica dito. São crónicas ou "estórias" de gente de toga, beca e capinha que, como o título sugere, tem como figurantes advogados, magistrados e funcionários judiciais.

 

É, aparentemente, um livro fácil de escrever, como parecem ser os livros de memórias, que não implicam o recurso à imaginação criadora. Contudo, para que uma obra deste género ascenda à categoria de obra literária, é preciso qualquer coisa semelhante ao fio invisível que torna um punhado de pérolas num colar, para usar uma expressão de António Sérgio. Ora, o fio invisível é aqui a tal virtude de que falo acima, esse dom adestrado pela experiência de advogado, que sabe usar a palavra exacta para comunicar, para persuadir.

"Gente de Toga, Beca e Capinha", a que o autor deu o subtítulo de "Fogachos da Lareira Forense", lê-se de uma assentada com o prazer divertido que nos dá esta prosa saborosa, intercalada de alguma "versalhada", tecendo o manto pouco diáfano da vida forense, em episódios sisudos e picarescos, que são as duas faces do ofício de fazer e pedir justiça.

Por aqui passam tipos castiços, verdadeiros protótipos literários, como o Grijó, escrivão de direito, "com a sua figura magricela, seus sapatos de tacão alto, quase à senhora, e um chapéu de aba bem larga, à Mazantini."; o professor Rocha Saraiva, que entendia, na sua benevolência, contrariando o exigente Marcelo Caetano, que "todo o aluno que vem às aulas e, depois, a exame, traz dentro de si, pelo menos 10 valores" e que "o mérito está no examinador ser ou não capaz de os tirar cá para fora"; o Vasco Mourisca, advogado-poeta, mais poeta que advogado que, quando tinha de subir à barra do tribunal deixava "pairar / 11 / alto demais o borbulhar da sua fantasia"; O Juiz Abel Pereira Delgado que, quando colocado no Minha "dançara e fizera dançar o vira" e, por isso, foi um bom juiz, "no duplo sentido de conhecedor das leis e dos Homens"; e tantos outros dessa vasta galeria onde figuram nomes tão conhecidos como os dos advogados Salgado Zenha, Abranches Ferrão, Magalhães Godinho, infelizmente já desaparecidos, e ainda os de Flávio Sarda, Sebastião Dias Marques, Manuel Homem Ferreira e do Juiz-Conselheiro Matos Fernandes, actual Secretário de Estado da Justiça, que continuam, afortunadamente, a honrar-nos com o seu convívio, todos ligados a Aveiro pelo nascimento ou pelos sentimentos, tal qual o autor, que cultiva o "aveirismo" como forma de estar na vida, e faz gala em trazer essa flor rebelde na botoeira do seu coração.

Um livro interessante, que se lê com agrado, e que acrescenta ao seu irmão mais velho, "Gente de Toga e Beca", novos episódios da vida forense, urdidos daquela experiência que só um advogado-escritor ou um escritor-advogado, é capaz de transformar num belo testemunho literário. Ad perpetuam rei memoriam...

ANTÓNIO ARNAUT


Dedicatória

Ao Germano, ao Pinto da Costa, ao Zé VidaI, ao Melo, ao Matos Fernandes e ao Homem Ferreira, sinais vivos de um passado, que me ajudaram a recordar.

Obrigado!

 

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