Quem tem uma vida longa e
olhos para ver o mundo, é senhor de uma grande riqueza. Se a tais dons
se acrescentar a cultura e a vocação literária, será, seguramente, um
escritor-memorialista.
Costa e Melo, meu velho
Colega e Amigo, reúne todos esses predicados, e mais outro: a capacidade
de comunicar, ou seja, de tornar comum, de partilhar com os outros as
suas vivências, a sua mundividência.
Estou certo de que tais
qualidades lhe advieram, em parte, da condição de advogado, que foi
durante longos e fastos anos, por causa de uma outra condição
conjuntural: impedido, por motivos políticos, de seguir uma carreira
pública, foi obrigado a enveredar pela actividade liberal e a trocar a
beca pela toga.
Há males que vêm por bem,
como diz o povo. Se Costa e Melo não tivesse sido advogado e colhido na
barra dos tribunais e da vida, a experiência ímpar que só a advocacia
proporciona, não seria, certamente, o escritor de palavra escorreita e
fluente que a sua vasta obra − de poeta, de contista e memorialista −
nos revela. É que o autor deste livro foi um advogado no verdadeiro
sentido da função: a de defensor-orador, que é chamado
(ad-vocatus) para defender uma causa, e que, para além do seu saber
jurídico, usa a palavra como instrumento privilegiado dessa função. A
denominação" defensor
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orador" precede, historicamente, a de advogado, justamente porque, nos
tempos antigos, apenas se exigia que quem tomasse a defesa de outrem
soubesse arrazoar capazmente. E esta virtude, hoje tão rara, é ainda um
dos segredos do êxito forense, que Costa e Melo soube usar, como poucos,
na sua "faina de pedidor de justiça".
Este livro é a prova do que
fica dito. São crónicas ou "estórias" de gente de toga, beca e capinha
que, como o título sugere, tem como figurantes advogados, magistrados e
funcionários judiciais.
É, aparentemente, um livro
fácil de escrever, como parecem ser os livros de memórias, que não
implicam o recurso à imaginação criadora. Contudo, para que uma obra
deste género ascenda à categoria de obra literária, é preciso qualquer
coisa semelhante ao fio invisível que torna um punhado de pérolas num
colar, para usar uma expressão de
António Sérgio.
Ora, o fio invisível é aqui a tal virtude de que falo acima, esse dom
adestrado pela experiência de advogado, que sabe usar a palavra exacta
para comunicar, para persuadir.
"Gente de Toga, Beca e
Capinha", a que o autor deu o subtítulo de "Fogachos da Lareira
Forense", lê-se de uma assentada com o prazer divertido que nos dá esta
prosa saborosa, intercalada de alguma "versalhada", tecendo o manto
pouco diáfano da vida forense, em episódios sisudos e picarescos, que
são as duas faces do ofício de fazer e pedir justiça.
Por aqui passam tipos
castiços, verdadeiros protótipos literários, como o Grijó, escrivão de
direito, "com a sua figura magricela, seus sapatos de tacão alto,
quase à senhora, e um chapéu de aba bem larga, à Mazantini."; o
professor
Rocha Saraiva, que entendia, na sua benevolência, contrariando
o exigente
Marcelo Caetano, que "todo o aluno que vem às aulas e,
depois, a exame, traz dentro de si, pelo menos 10 valores" e que "o
mérito está no examinador ser ou não capaz de os tirar cá para fora";
o
Vasco Mourisca, advogado-poeta, mais poeta que advogado que, quando
tinha de subir à barra do tribunal deixava "pairar
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alto demais o borbulhar da sua fantasia"; O Juiz
Abel Pereira
Delgado que, quando colocado no Minha "dançara e fizera dançar o vira"
e, por isso, foi um bom juiz, "no duplo sentido de conhecedor das
leis e dos Homens"; e tantos outros dessa vasta galeria onde figuram
nomes tão conhecidos como os dos advogados
Salgado Zenha,
Abranches
Ferrão,
Magalhães Godinho, infelizmente já desaparecidos, e ainda os de
Flávio Sarda,
Sebastião Dias Marques,
Manuel Homem Ferreira e do Juiz-Conselheiro
Matos Fernandes, actual Secretário de Estado da
Justiça, que continuam, afortunadamente, a honrar-nos com o seu
convívio, todos ligados a Aveiro pelo nascimento ou pelos sentimentos,
tal qual o autor, que cultiva o "aveirismo" como forma de estar na vida,
e faz gala em trazer essa flor rebelde na botoeira do seu coração.
Um livro interessante, que
se lê com agrado, e que acrescenta ao seu irmão mais velho, "Gente de
Toga e Beca", novos episódios da vida forense, urdidos daquela
experiência que só um advogado-escritor ou um escritor-advogado, é capaz
de transformar num belo testemunho literário. Ad perpetuam rei
memoriam...
ANTÓNIO ARNAUT
Dedicatória
Ao Germano, ao Pinto da
Costa, ao Zé VidaI, ao Melo, ao Matos Fernandes e ao Homem Ferreira,
sinais vivos de um passado, que me ajudaram a recordar.
Obrigado! |