Rangel de Quadros, Aveirenses Notáveis. Aveiro, 1ª edição, Aveiro, Câmara Municipal de Aveiro, 2000, (Revisão de J. Gonçalves Gaspar), pp. 316-321.


Jerónimo de Morais Sarmento
(1810-1899)

Nasceu em 18 de Janeiro de 1810 e foi baptizado na igreja do Espírito Santo, demolida em 1858. Frequentou as primeiras letras com Custódio José Baptista, conhecido pela alcunha de Cossoia.

Era filho de Manuel Sebastião de Morais e de D. Maria Máxima Miquelina, casados na Vila da Feira, em 17 de Maio de 1754.

Manuel Sebastião de Morais era filho de José António de Morais, bacharel em direito canónico, natural do Porto, e de D. Luísa Francisca, filha do tenente-coronel João Pires de Lima e de D. Maria Teresa de Saavedra, também da mesma cidade. D. Maria Máxima Miquelina era filha de Francisco José dos Reis e Silva e de D. Luísa Rosa Lizarda de Lima, naturais da Vila da Feira e de famílias de elevada posição.

Do consórcio de Manuel Sebastião de Morais nasceram três filhas e seis filhos, que sempre se mostraram afectos ao Regime constitucional e à Dinastia do senhor D. Pedro, primeiro imperador do Brasil, e de sua Augusta filha, a senhora D. Maria da Glória, que em 1834 subiu ao trono português sob a denominação de D. Maria II, havendo tido naquele país o título de princesa do Grão-Pará.

Todos esses indivíduos sofreram muito pela causa política, que entusiasticamente haviam abraçado. Um perdeu a vida no cadafalso; outro, na batalha da ilha Terceira. Os outros obtiveram posições elevadas ou na classe militar ou em empregos civis, o que foi devido aos trabalhos pela causa que defenderam.

Em 1820, houve em todo o país uma sincera manifestação política, para que fosse mudado ou modificado o antigo Regime. Disso resultou a Constituição de 1821, abolida em 1823 por outra manifestação em sentido contrário.

A Carta Constitucional, mandada do Brasil em 1826 pelo seu primeiro imperador, foi aceite em Portugal por alguns dos que haviam abraçado os princípios, proclamados em 1820. Mas, em 1828, havendo completamente mudado as coisas políticas, não faltou quem se manifestasse pelos princípios, proclamados em 1826, do que resultaram perseguições e prisões em grande número e não poucos pagaram com a vida as suas manifestações, que nem sempre foram pacíficas e ordeiras. Outros tiveram de emigrar, ou como simples particulares ou empunhando as armas, com que então e mais tarde haviam de pelejar pela causa, a que se haviam devotado.

Jerónimo de Morais Sarmento, assim como seus irmãos, foi um dos que emigraram, fugindo com os seus companheiros para a Espanha, onde, como muitos desses companheiros, marchou até Ferrol, sofrendo as inclemências do tempo, a falta de alimentos e uma longa jornada, que fez sucumbir a alguns e desistir não poucos. Em / pág. 317 / alimentos e uma longa jornada, que fez sucumbir a alguns e desistir não poucos. Em fins de Agosto desse ano, depois de haver atravessado a Galiza, chegou a Ferrol, onde embarcou para a Inglaterra com alguns dos seus companheiros de infortúnio. Em 10 de Setembro, chegaram a Falmouth, onde sofreram não poucas contrariedades e donde foram para Plymouth, em que se organizou um depósito de emigrados políticos.

Aí, como todas as praças de pret, recebia uma ração diária de pão, carne e arroz, e catorze shillings mensais. Ele e outros estiveram recolhidos num barracão, de que muito fala a história daqueles tempos. E a história daqueles tempos também conta o que passaram os principais partidários do primeiro imperador do Brasil. Nesta parte pode-se dizer que a história de Jerónimo de Morais Sarmento é, guardadas as devidas diferenças, a mesma dos seus companheiros de armas e dos seus correligionários políticos, que, tendo sido obrigados a deixarem a pátria, se refugiaram em diversos países, especialmente na Inglaterra.

Depois de várias peripécias, que será escusado contarem-se, pois cada historiador as tem narrado ao sabor das suas opiniões partidárias, aqueles emigrados e outros, que seguiram as mesmas opiniões, foram para a ilha Terceira, onde com as armas na mão trataram de defender a causa a que se haviam devotado e muito especialmente no combate da Praia.

Com os seus companheiros, havia saído de Plymouth em 24 de Fevereiro de 1829 e, em 8 do mês seguinte, desembarcara naquela ilha. Aí combatendo, faleceu Evaristo Luís de Morais, irmão de Jerónimo de Morais, o que foi para este um grave desgosto e não menos o foram as notícias de que seu irmão Clemente morrera no cadafalso e que algumas pessoas da sua família e da sua amizade estavam sofrendo perseguições, ou nas cadeias ou refugiadas, em diversos sítios.

Jerónimo de Morais, com o primeiro imperador do Brasil e com o exército que este havia podido organizar, composto de portugueses e de estrangeiros, desembarcou, em 8 de Julho de 1832, no sítio ou perto da Arenosa de Pampelido, a que depois se chamou a Praia do Mindelo.

Deu-se depois o cerco do Porto, cuja história é bem conhecida, onde Jerónimo de Morais e seus irmãos, alguns aveirenses e outros companheiros não se mostraram menos denodados e estratégicos. Pode dizer-se que a história de todos esses indivíduos é também a mesma, guardadas algumas diferenças, cuja narração não será mister fazer-se. Coadjuvados pelas tropas estrangeiras e em virtude da quádrupla aliança, puderam o primeiro imperador do Brasil e os seus correligionários ficar completamente vitoriosos em Maio de 1834, depois da batalha da Asseiceira.

Após a convenção de Évora-Monte, o príncipe D. Miguel, que representava o partido tradicional, foi obrigado a expatriar-se e os seus correligionários houveram de depor as armas.

/ pág. 318 /  Jerónimo de Morais Sarmento, em virtude de seus serviços, fora um dos dezoito militares que, em 28 de Julho de 1832, haviam sido condecorados com a medalha da Torre e Espada, sendo então considerado cadete. Em 6 de Agosto desse ano, foi elevado ao posto de alferes e, em 24 de Julho de 1834, foi elevado a tenente.

A família Morais havia sofrido muito pela causa, a que se dedicara, e tinha muitos motivos de queixa contra alguns dos seus adversários. Estes não deixavam de recear as represálias e as vindictas. Não poucas se deram, mas, passados alguns anos, sossegaram os ânimos e os vencidos viveram menos receosos. Para isso não concorreram pouco as uniões conjugais entre famílias de ideias completamente contrárias e as dissenções, que logo começaram a lavrar entre os correligionários do partido vencedor.

Jerónimo de Morais, pouco depois de 1834, casou com D. Maria Emília de Almeida Maia, filha de Fernando António de Almeida Coelho. Seu irmão Bento Augusto de Morais Sarmento casou com D. Guilhermina de Almeida, filha de Joaquim António de Almeida Coelho, irmão do mesmo Fernando e ambos acérrimos partidários do antigo Regime e do príncipe desterrado, que o representava.

Em Setembro de 1836, isto é, pouco mais de dois anos depois de proclamada a Carta Constitucional e de ser elevada ao trono a Dinastia que a representava, manifestou-se a revolução, que do mês tomara o nome. Isso deu ensejo a que os partidários do antigo Regime pudessem viver com menos receio, porque os seus contrários intrépidos, hostilizando-se mutuamente, não procuravam ocasiões de vindictas nem de represálias. E muito daqueles, que diziam que tinham dado o sangue pela Carta e que por ela eram livres, empunhavam então contra ela as mesmas armas, com que a haviam defendido. Assim como não poucos haviam jurado em 1821 a Constituição Portuguesa e depois juraram e proclamaram a Carta, em 1836 não faltou quem se mostrasse desafecto à Carta, e quisesse aquela Constituição com uma ou com duas Câmaras. Incoerências da política e dos políticos, como frequentes vezes sucedem e como ainda hoje se estão vendo!...

Jerónimo de Morais tomou o partido dos setembristas e nessa parte conservou-se, com a firmeza que pôde e assim se manifestou em todas as revoluções que se deram até 1851, nas quais a Regeneração pacificou aparentemente o país. Muitos ficaram vencidos, mas não convencidos; tiveram de sujeitar-se, ou porque reconheceram a inutilidade dos seus esforços ou porque as intervenções estrangeiras directa ou indirectamente a isso os obrigaram.

As revoluções, que se deram desde 1836 a 1851, são bem conhecidas; escusado será falar delas, pois são factos genéricos.

Em 1846, estava no poder António da Costa Cabral, que, tendo sido um político exaltado e muito popular, havia-se tornado intransigente, procurando a todo o custo conservar-se no Ministério e consentindo que se praticassem excessos e violências / pág. 319 / contra aqueles que não perfilhavam as suas ideias ou procuravam, nas eleições, manifestar-se contra o procedimento do Governo. Este era puramente cartista e os contrários eram geralmente setembristas e, nessa ocasião, também contavam com o auxílio do partido legitimista, que então ainda era forte, numeroso, disciplinado e aguerrido. Esta circunstância serviu de pretexto para que a intervenção estrangeira novamente viesse em auxílio da augusta filha do primeiro imperador do Brasil, assegurando-lhe o trono, tão ameaçado, até por alguns daqueles que haviam cantado: 

«Às armas, ó lusos,
o ferro empunhemos.
Maria segunda
ao trono elevemos.»

Ficaram bem na memória as eleições, feitas nessa época; ainda hoje se fala nas eleições à cabrilina. É verdade que os Cabrais nem de tudo eram culpados; mas como lhes imputavam todos os males, que os seus contrários sofriam, não faltou quem, por ironia, repetisse estes estribilhos:

«Se nos campos há pardais,
é por culpa dos Cabrais.
Se as coisas não correm bem,
os Cabrais as culpas têm.»

E ainda outros semelhantes.

Então, por quase todo o país, se levantou a revolução chamada da Maria da Fonte. E os que, até 1834, haviam confraternizado, mutuamente se hostilizavam, espancavam e perseguiam.

Jerónimo de Morais achava-se no Porto em 1847, já no posto de capitão, quando, em 12 de Dezembro, ali foi barbaramente espancado por alguns dos partidários cabralistas. Os ferimentos foram quase mortais e dos seus efeitos sempre mais ou menos se queixou. Levado para uma botica, aí recebeu os primeiros curativos e, quando as suas forças lho permitiram, protestou contra aquela violência, praticada por indivíduos seus correligionários, pois todos se diziam liberais. Outras considerações ainda fazia, mas, decerto, os que o espancaram nenhum castigo tiveram.

Jerónimo de Morais, como muitos do seu partido, figurara mais ou menos naquelas revoluções. E, se é para admirar que ele e outros se manifestassem contra o Governo, composto de indivíduos adversos ao antigo Regime e de que era chefe aquela senhora, a quem os liberais chamavam um anjo de bondade e de clemência, também é para admirar a sua valentia no campo da batalha e a coragem com que sofreu tantas contrariedades e perseguições e principalmente a sua deportação para a África. Daí o livrou, a ele e aos seus companheiros, a intervenção inglesa e a ela deveram o não serem tratados tão cruelmente como receavam.

Vencidos na batalha de Torres Vedras, foram obrigados a embarcar em 27 de Janeiro de 1847 para aquelas paragens e, sofrendo não só as inclemências do tempo, mas outros incómodos, chegaram a Luanda em 25 de Março. Em 21 de Maio, foi assinado em Londres um protocolo, pelo qual aqueles revoltosos deveriam ser transportados à Europa. Para isso, uma fragata inglesa foi mandada a Luanda, aí aportando em 23 de Agosto desse ano; os deportados chegaram a Lisboa em 10 de Setembro. As manifestações de regozijo pela sua chegada foram pacíficas, mas sinceras.

/ pág. 320 / Com os deportados, veio Jerónimo de Morais Sarmento, que já era capitão desde 4 de Julho de 1842 e que, em virtude das suas manifestações contra o Ministério, foi no ano seguinte colocado na inactividade, tendo servido em Caçadores 4, desde que fora elevado àquele posto.

Em virtude dos acontecimentos a que dera causa a Revolução de Setembro, havia estado em Aveiro, no Regimento de Caçadores 28, aqui estacionado, para o qual fora transferido de Infantaria 9, pela ordem do Exército de 1 de Agosto de 1838. Também aqui fizera parte da guarda de segurança. E, se nos cargos militares, aqui exercidos, não tinha mais vantagens do que noutra localidade, tinha ao menos o prazer de estar perto de sua mãe, que muito respeitava, e de seus parentes, que estimava não menos, e dos seus conterrâneos, que não deixavam de estimá-lo, apesar de nem todos seguirem as suas opiniões políticas. Mas os acontecimentos políticos de 1840 concorreram para que ele houvesse de fixar a sua residência no Porto.

A revolta, chamada Regeneração, em 1851, tão incoerente como as outras, não seria mister, se aquelas se não tivessem dado. Teve, porém, as vantagens de pacificar o país, ainda que aparentemente, a de unir muitas famílias com laços de nova amizade, a de se efectuar sem grande derramamento de sangue e, finalmente, a de não ser precisa a intervenção estrangeira, para que ao país fosse restituído o sossego. Também, ninguém com isso sofreu graves prejuízos, nem perseguições, nem vinganças e castigos, a que as revoluções dão causa. No entanto, Jerónimo de Morais sofreu preterição no posto de acesso, a que se julgava com direito.

Em 27 de Janeiro de 1852, foi despachado major, mas adido à classe dos veteranos. Muito se desgostou com esse facto e queixava-se de que, tendo prestado tantos serviços à causa da augusta filha do primeiro Imperador do Brasil e havendo feito sacrifícios nas revoluções, que se efectuaram depois de 1834, não houvesse tido maiores vantagens nem continuasse a servir no Exército.

Em 29 de Março de 1853, sofreu um desgosto ainda mais grave. Foi a perda de sua carinhosa mãe, que ainda o pôde ver e abraçar pouco antes de falecer, como pôde ver e abraçar os outros filhos, que então aqui se reuniram e acompanharam o Sagrado Viático, que a moribunda espontaneamente havia pedido. Depois fixou Jerónimo de Morais a sua residência em Lisboa e definitivamente aí ficou até à sua morte.

Como era amigo de José Estêvão e de Mendes Leite, que em 1840 haviam fundado o jornal intitulado “A Revolução de Setembro”, ficou administrando o mesmo jornal desde os fins de 1858, até que cessou aquela publicação. Também dela foi o revisor e o noticiarista e para ela escreveu não poucos artigos políticos.

Em 10 de Maio de 1878 e em virtude do projecto da lei de 23 de Março nesse mesmo ano, foi reformado no posto de coronel, mas tendo direito ao respectivo soldo só desde a data do despacho em diante.

/ pág. 321 / Em 3 de Julho de 1893 perdeu a esposa, acontecimento que muito o contristou.

Não deixaram de o contristar muitos actos da política portuguesa, que de dia para dia lhe traziam novos desenganos.

Creio que depois, por uma nova classificação e reforma do Exército, foi elevado ao posto de general de Brigada.

Vivendo nos últimos anos pacificamente e só para a sua família e esquecendo antigos motivos de agravos, recebia em sua casa pessoas de todas as opiniões políticas e, se algumas vezes falava nas suas antigas desventuras, era só para mostrar que nisso tinha glória e para dar as suas demonstrações de perdão às famílias daqueles contra quem mais poderia queixar-se. O mesmo fizeram seus irmãos, especialmente João António de Morais. Em Agosto de 1889, satisfazendo a um convite, veio a Aveiro assistir à inauguração da estátua de José Estêvão Coelho Magalhães.

Pelas seis horas da tarde de 14 de Março de 1899, faleceu em Lisboa Jerónimo de Morais Sarmento, mostrando até ao último momento da sua vida uma grande lucidez de espírito.


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