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N.º 26/28

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

1979/1980

PORTO DE AVEIRO

Um Porto das Beiras (1)

Por Eduardo Cerqueira

Subimos, de lá da terra de ao rez-do-mar, que a água na preia-mar rasa e em certos ensejos invade e cobre, até Viseu. Para Viseu, efectivamente, quem vem de Aveiro, como eu – como nós – e, por maioria de razão, se é de Aveiro, sobe-se. Por imperativo orográfico, porque ascendemos de uma terra que se estende numa horizontalidade sem mais altitude que um ondulado suave, à serra altaneira, e por essa circunstância subjectiva, mas não menos real, de virmos saudar a irmã mais robusta de compleição, medida por estalão mais elevado.

Trazemos-lhe o abraço fraterno – fraterno e como que quase filial – e a mão afectuosa estendida para que no-la aperte com a simpatia familiar, beirã – que para nós também ufanamente reivindicamos –, com carinho e vigor. Vimos ao encontro da amizade, como amigos que se abrem em afecto e no apoio fraterno buscam estímulos para prosseguirem, mais seguros e confiantes, e, numa companhia estimada e alentadora, os caminhos mais longos e promissores que nos propomos calcorrear.

Temos uma estirada rota a perseguir, um caminho sem meta que se vislumbre, e que sabemos com etapas sucessivas, como os horizontes que se afastam a cada avanço parcelar, mas de que conhecemos os rumos convenientes e certos, e vamos encontrando sucessivas perspectivas.

Aveiro, como contributo dos materiais desta zona da serra, carreados pelo rio que aqui brota e nos vincula indestrutivelmente a genetrizes factores de hereditariedade, é uma urbe de características lagunares. É mesopotâmica – ela ou a zona envolvente – e o seu solo empapado da água doce do Vouga, que na ria se mescla com a do mar, salgada, que reluta em não abandonar espaços que a terra lhe conquistou.

Aveiro, na exalção de diminutas cotas, de origem aluvionar fixou-se e medrou à beira do oceano. Caracterizada e irremissivelmente, por sua sina e sua fortuna, nasceu subsidiária do mar, sob cuja égide e suserania perpetuamente se encontra, e para ele voltada e aberta, porta larga para expansão dos anseios, e pólo de atracção suscitador e acalentador.

Em cada uma das nossas ascensionais visitas a Viseu e seu alfoz, há um efectivo remontar a uma das origens, a uma «fons-vitae» da nossa existência e da nossa persistência. Porque para persistirmos nós precisamos do mar, como elemento primordial, do rio como factor complementar, e, na sequência do que ambos operaram e mantêm com alguma volubilidade, da nossa perseverança – ia dizer da nossa contumácia – em aproveitar-lhes os favores e nos preservarmos das suas negaças.

Em todos os ensejos nos acode à lembrança o Vouga genitor – de que Aveiro chamam, a acentuar-lhe a louçania feminil, e uma feição inalteradamente moça, a princesa. O Vouga, pela sua prestante acção efectiva, representa para nós um símbolo e uma inspiração, um estímulo e um motivo de preito, de vinculadora cativação. Em todos os ensejos.

Um rebocador não representa, no seu prosaísmo utilitário, senão uma unidade de apetrechamento, um utensílio para práticas e objectivas funções – um barco que conduz consigo embarcações de maior porte, um

barco para utilizar onde os barcos de distintas características pululam, e vogam a remos, à vela e a motor, e navegam em todos os sentidos da roda dos ventos, à feição destes ou ao seu revés, para fins de comércio, de específicas funções do arranque de moliços, para a pesca lagunar, para recreio nas horas feriadas ou para práticas desportivas.

Um rebocador é como que um esteio que se desloca e flúi. É um dar um braço que conduz com a prévia familiarização, com o itinerário conveniente, / 6 / como que um guia experimentado para o caminho sem escolhos. É como um extrínseco «governalho» – segundo o termo usado no tempo dessa apaixonante figura aveirense do século de quinhentos, que foi o Padre Fernando Oliveira, erudito e errabundo aventureiro, clérigo com laivos de irreverência, diplomata, gramático e tratadista de construção naval.

Pois agora, quando à entidade responsável pela administração portuária, surdiu a obrigação de baptizar, ou mais propriamente, de recrismar uma unidade dessa feição, que adquiriu, logo, imediata e clara, ia dizer fulmínea – porque cintilou e resplendeu, indiscutível como símbolo e inspiração, como preito filial e busca do que seja a essência sentimental de concretas realizações de fomento económico – uma denominação acudiu.

Nesta luta de tracção em que nos empenhamos para alcançar um objectivo de bem comum, e dilatar-lhe os benefícios por toda esta Beira, magnífica e carecida de suscitações e rasgadas vias perspectivantes de prosperidade crescente, para este quadrante volvemos a imaginação, o afecto, a confiança nos votos de bom vaticínio.

A Beira Alta, gémea da nossa do litoral – gémea e siamesa por indestrutível e congénita aliança corográfica e humana, nesta longuíssima e infinda batalha milenária, com triunfos e lauréis e proveitos, e desaires, desalentos e ruínas, neste combate que andamos inalienavelmente empenhados em traduzir por vitórias sucessivas – para nossa vantagem directa, e a vossa consequente, e a de um país que cada um de nós começa a estimar com devoção e fervor na sua «pátria-pequena», sempre contámos com o vosso solidário amparo.

De onde o Vouga nasce e na pena de água que brota entre rochas maciças, límpido e puro, e as rasga, e engrossa e se nos oferece para amenizar o travo salgado da laguna, vêm a água em discorrer de incontida propensão e o incentivo perpétuo.

Ficará pois o nosso rebocador sob a égide matricial da Serra da Lapa, num preito filial, como que numa evocação permanente e na readopção de um nome que atesta a genealogia que reivindicamos com todas as veras do sentimento afectivo.

*

Esta digressão a Viseu, todavia, ainda que a chamamento de penhorante generosidade, não visa apenas proferir, e em baça monocordia, o sentimento de cordialidade em que de cada vez mais se enlaçam os viseenses e os homens da minha terra, que no seu aveirismo lato e centrífugo tem como galardão a amizade de Viseu.

Membros do mesmo clã beirão, encostados e unidos, os nossos comuns interesses, permanentes, representam bens patrimoniais hereditários. Nós, lá em baixo – lá onde a ascensão se opera na horizontalidade –temos um porto. Naturalmente, se a vossa água nos avoluma a bacia lagunar, e com seu caudal – e, por essa circunstância, se esperou, quando os meios mecânicos ainda o não supriam, durante dilatados tempos, pela tarefa benfazeja do que simbolicamente se apelidava de «Engenheiro Vouga» – e com o seu caudal, ia dizendo, contribuía para que dispuséssemos de uma barra rasgada às solicitações da navegação marítima, – o nosso porto é o vosso porto. E disse, naturalmente, porque se trata de um ditame orográfico da Natureza.

O rio que nesta serras beneméritas mana e serpenteia, e incessante corre, lá busca o oceano. E o mar acode ao seu encontro, acolhe-o dentro da terra, em cuja formação ambos cooperaram com maior ou menor quota parte. O mar antecipa-lhe a foz como que na certificação de um propósito de devolver uma dádiva continuamente renovada.

Porto, ignoro se etimologicamente, sugere porta, e, assim, algo que a seu turno significa abertura, entrada e saída franqueadas, e um acolhimento. Porto é uma partida e um destino alcançado, ou, quando menos, o início ou o termo de uma longa rota parcelar de trocas comerciais, um entrosamento de vias marítimas com as terrestres, e um factor potencial e efectivo de estímulos económicos – pelo que propicia de movimentação intercambial de produtos que excedem os consumos locais ou suprem de carências.

Aveiro, quando ainda as comunicações terrestres eram rudimentares e escassas, dispôs de um porto que até ao último quartel da centúria de quinhentos satisfazia as exigências do tempo e constituía um fautor de ascendente prosperidade. Atingiu nessa quadra da nossa história o seu primeiro período de esplendor, com uma desafogada economia, e uma burguesia comercial marítima activa e empreendedora. Foi frequentada por navios estrangeiros de várias procedências, contando, por cálculos de estudiosos probos e esclarecidos (pouco propensos a exageros, para chamar à sua sardinha a brasa que lhe competia), catorze mil almas, alojadas em 2500 fogos.

Pioneiros, com os desde então dilectos amigos de Viana do Castelo, da pesca na Terra dos Bacalhaus, salineiros desde a insipiência do povoado de fundação mais que milenária, os aveirenses, marnotos e pescadores, em seguida volvem-se mareantes (já com sua confraria ou corporação florescente no século XIV, sob a égide de Nossa Senhora da Alegria). Concomitantemente, autóctones já ou atraídos pelas oportunidades que se lhes proporcionavam, radicando-se e integrando-se na vida local, os profissionais das actividades / 7 / mercantis em relações com mercados nacionais e externos sobem em número, capacidade e poder económico. Os homens de Aveiro foram então os agentes mais operosos e fecundos do transporte e distribuição de mercadorias de toda a Beira e, provavelmente, para toda ela.

Rocha e Cunha, que foi o mais arguto, consciencioso e esclarecido ensaísta da história económica aveirense, com a prudência de quem não avança um passo se não em solo firme, restringe a penetração do porto de Aveiro a um âmbito muito estreito. Concebe-a em relação com a precaridade do sistema de comunicações terrestres «que só a civilização do século XIX nos pôde dar» e cinge-a, praticamente às possibilidades que lhe proporcionava a laguna.

Desestima a navegabilidade do Vouga, pelo menos até quase à zona de contacto dos dois distritos administrativos, que ainda dava uma prática relativamente intensa de tráfego fluvial nos nossos dias, já em plena florescência dos caminhos-de-ferro, agora em ocaso nesta zona, ou porventura apenas em eclipse.

Mas reconhece, desde esse período longínquo, que esse porto, de intenso movimento, e que chegou a armar quando se dobrava para o último quartel do século XVI, os seus 150 navios, possui atributos, se não de recíproco tráfego de bens de consumo, para uma atracção, mais ou menos forte, sobre os homens:

«Não podia procurar – isto é, ir ao encontro, dizia, reportando-se à corrente renovadora através de actualizações estrangeiras de valorização de ideias e iniciativas – as populações alheias, estimular a sua actividade, criar mais conforto e riqueza, e muito mais facilmente elas desciam ao litoral em sua procura, obedecendo às mesmas necessidades que hoje as impelem para Além-mar.» Para Além-mar, então, e agora, para além das fronteiras de terra.

Aliás, sabe-se que Luís Gomes de Carvalho, o lúcido técnico, de visão por vezes percursora a que se deve a ressurreição de Aveiro com a abertura e fixação da Barra Nova, em 3 de Abril de 1808 – eu repito esta data e o nome do benemérito engenheiro, sempre que se me oferece ensejo, porque mais do que nascer trata-se do renascer da minha terra e do taumaturgo que a possibilitou – sempre teve na mente a íntima correlação do Vouga com a Ria e o Porto de Aveiro.

Chegou mesmo a elaborar um projecto com a finalidade de tornar o rio navegável até S. Pedro do Sul, e a iniciar-lhe os trabalhos de construção. «Assim, a concepção moderna do porto regional – como se verifica algures e, claro, em relação às possibilidades do seu tempo e às premissas que se lhe apresentavam, aparece perfeitamente definida nos seus trabalhos». Aliás, estes visavam já então a criação também de condições de navegabilidade nos rios Águeda e Cértima, e a integração das respectivas áreas no conjunto da economia regional.

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Aveiro – Aspecto geral do porto bacalhoeiro.

Mas, agora mesmo, se revolvem de novo as atenções, com actualizado fito, no estudo e na proposição consequente de sugestões fundamentadas, para o aproveitamento do Vouga. E ao revés da marcha do rio / 8 / – como nós aqui viemos – de baixo para mais alto, mas beneficiando-lhe o vale, e a bacia, em três fases destrinçadas e caracterizadas, mas concatenadas e complementares.

Esse trabalho, onde a ambição não excede as viabilidades e cujas bases exegéticas concludentemente certificadoras de resultados não só justifica, mas como que impõe os investimentos requeridos. Que, na realidade, nem somos tão desdenhosamente ricos que desprezemos riquezas potenciais, enunciadas, calculadas e quase ao nosso alcance imediato, nem tão carecidos de meios, e ânimo e cívico espírito de construir um futuro mais desabafado, tão desprovidos de capacidade e sentido das conveniências e obrigações, que se nos tolham os anseios dos melhores prenúncios, traduzidos já em reprodutivas cifras, não apenas consideradas como prováveis, mas tidas como certas.

O Vouga impõe a presença física e, para além desta, tudo quanto desperta no âmbito das aspirações, mormente no domínio agro-pecuário, na florestação das zonas adjacentes ao curso alto, para além da barragem que se assentaria já em terras do aro administrativo visiense e desempenharia uma função de plurifacetados proveitos.

O relator do grupo de trabalhos da Comissão de Planeamento da Região Centro – o nosso companheiro João de Oliveira Barrosa, por tantos títulos prezado – revelou-nos, há pouco, numa palestra rotária que nos acordou para esses problemas fundamentais, com a minudência de sopesação e a exactidão global, o nível dos estudos a que procedeu.

E é remontando – como nós, os de Aveiro aqui chegamos para, fraternamente, conviver e conversar convosco – do Baixo Vouga lagunar, e a estrada-dique Aveiro-Murtosa, o que abraça, abraça ou beija, ou abraça e beija a Ria, pelo troço em que ele já tranquiliza a corrida para o mar salgado. E é grimpando até Ribeiradio, por onde se açuda, vivaz de irrequietude, por entre as rochas por ele próprio rasgadas, e saltita pelas pedras soltas. E é subindo até Ribeiradio, onde numa barragem de diversos objectivos prestadios, o quereríamos deter, quebrar-lhe os ímpetos moços, incontidos e por vezes desbordantes, que, por impaciências de chegar se submergem e derribam, e arrastam e alvorotam, e no nosso peito embatem com a violência que não sustentamos sem abalo, na terra branda e rasa que é a nossa.

Advoga-se, e com a solidez de argumentação que atesta a validade de um aproveitamento planificado do Vouga para a constituição de uma efectiva região integrada que o tome como corda dorsal e lhe abranja todas as vertebradas ramificações subsidiárias e complementares, advoga-se, dizia, a construção da barragem, entre outras resultantes, para regularização dos caudais.

Já mesmo agora que se lhes patrocina uma disciplinação, esses caudais têm uma função tendente ao dispiciendo no aludido mister desobstrutor da barra – que é, repito, a nossa e a vossa mais natural saída para o mar – a que outrora por aquela missão útil, periódica e indispensável, o vulgo o chamou, como disse, o «Engenheiro Vouga».

Processos mecânicos, com dragagens adequadas, que absorveram à Administração do porto, em 1971, mais de quatro milheiros de contos e em 1972, excederão a verba anterior, suprem e avantajam-se ao meio natural das águas engrossadas e velozes, que varram a entrada da barra de entraves, instáveis mas renitentes.

Nesse conjunto de obras que se apontam como convenientes e imperativas, e em que do meu ponto de vista, pessoal e de função, encontro mais uma estrutura a consolidar os condicionalismos propícios a um porto que recresce, avaliam-se os investimentos em 481 600 contos e o acréscimo de produto bruto por elas alcançado em 120 900. Vale a pena cuidar desse manancial de riqueza.

Mas já antes desses empreendimentos, tão vantajosos no aspecto financeiro, tão úteis no âmbito económico, nós temos um porto. Ainda não o nosso porto, aquele que vislumbramos e pelo qual anelamos, sem fantasias superlativantes, sem grandezas miríficas, mas com aquela dose de imaginação que os concretos factores sabidos e as suas lógicas resultantes exigem em todo o rasgar de sendas com finalidades porvindouras.

Nós temos, ainda não esse, que sistematicamente terá sempre o termo para além do que obtivermos, mas um porto renascido, numa nova fase de progresso.

Ao cabo, Aveiro tem no porto, como que o pulmão por onde respira, anfíbia que é, quando a boca da barra lhe traz o elemento revivificante e saneador.

É nela, no período áureo de quinhentos, a vila em que, pela actividade útil a gente do mar, e das profissões a ele adstritas, e uma burguesia diligente, esclarecida na própria experiência local, aberta de espírito contra o entorpecimento rotineiro pelo contacto com gentes que a par da troca de mercadorias, deixavam novidades, ideias, sugestões de diferentes estilos e ritmos de vida, – tomavam sobre as demais classes a primazia do desenvolvimento, da riqueza, do desenvolvimento que não do mero fruimento, e da caracterização do aveirense, que um dia seria quintessenciado em José Estêvão. Nesse período de prosperidade armou centena e meia de navios, do porte próprio das naves oceânicas da época, como é óbvio. / 9 /

Visitavam-no, na mera cabotagem ou provindos de portos estrangeiros, ingleses, franceses, flamengos. Recebia e servia de centro de distribuição, para uma área de maior ou menor perímetro, ferro e chumbo, aduela e madeiras, linho e tecidos manufacturados, breu e esparto, papel, vinhos, pólvora.

Por seu lado, veiculava, para os portos metropolitanos nortenhos, onde as salinas de precário amanho haviam deperecido, e para o exterior, o seu sal – que, entre os fins utilitários de tempero e salga, teria, por algumas centúrias, a correspondente participação quase exclusiva, concreta e espiritualizada, como que num privilégio, no baptismo cristão dos portugueses da parcela do país setentrional do Vouga. E, além desse, que constituía a primordial riqueza aveirense, formava um centro importante de exportação de peixe salgado e de bacalhau.

Uma série de maléficas vicissitudes, resultantes do próprio processo evolutivo do cordão litoral (e, assim, da infixidez da barra, de fundos sem coesão), reduziu-lhe as possibilidades e repercutiu-se no solidário depauperamento da própria vila – Aveiro só obteve o grau de cidade com o Marquês de Pombal, em 1759 – que quase foi arrastada ao aniquilamento.

Os 14000 residentes de 1575, entre os quais se contavam numerosos estrangeiros, – e que levaram o bispo de Coimbra, D. João Soares, a instituir quatro freguesias, quando até então se mantinha apenas a dos recuados tempos do foral velho, com S. Miguel por orago, ainda cento e dez anos mais tarde, não obstante o retrocesso, não haviam descido para menos de 10000 almas, ainda não penadas, mas já pelas circunstâncias adversas a penar e a tremer das mal agouradas perspectivas futuras.

Já todavia em 1736, a população aveirense não ultrapassava os 5300 habitantes. E o declínio acentuou-se, quase vertiginosa, quase catastroficamente, pois três decénios depois já se computavam em apenas 4400, e chegaram ao extremo de decadência, nos finais do século XVIII, com uns escassíssimos 3500, o que representa uma emagrecida quarta parte de pouco mais de dois séculos antes.

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Aveiro – Um aspecto do porto comercial

Para não entrar em pormenores – aliás incompatíveis com o tempo que me prescrevem para uma síntese necessariamente fugaz e saltitante – e pois que estamos voltados para o futuro e do passado não buscamos os temas pela predilecção desinteressada que deles mesmos emane, mas a lição orientadora e incentivadora, insistimos, partamos da obra renascedora de Luís Gomes, que venceu com sagacidade e aplicação profícuas, as adversidades, cegas e inclementes da Natureza, (que com uma mão dera, com longanimidade maternal e, com outra tirava e punia, insensível e violenta).

Data daí, como tem sido repetidas vezes apontado, a reconstituição económica da estiolada Aveiro. Haviam ficado infrutíferas todas as tentativas regenerativas que se sucederam desde 1756, no consulado pombalino, tão atento a Aveiro, em variados aspectos que lhe pudessem promover a prosperidade.

Malograram-se, sucessivamente, até ao dobrar para / 10 / o século de oitocentos, os trabalhos de engenheiros da mais alta qualificação, nacionais ou chamados de países estranhos, como Mardel, Pochet, Allincourt, Eldsen, Cabral e Isepi – mais exactamente designado, nos diplomas oficiais, por arquitecto hidráulico, denominação que hoje nos parecerá desprovida de rigor lógico.

O século XIX, com Luís Gomes e igualmente com um dos seus sucessores, o categorizado Eng.º Silvério Pereira da Silva, é o do renascimento portuário. Efectivamente, pode considerar-se como o início de uma era nova da vida de Aveiro. O recrescimento, a recuperação, o regresso ao mar e à vida mais intensa e desafogada, a reconstrução e o gizar da expansão, não se desenvolvem em curva de regular continuidade, no tráfego marítimo, no reavivamento da agricultura e outras actividades e na correspondente projecção urbana.

Verificam-se momentos, momentos ou períodos dilatados, de pausa e de retrocesso, por vezes desalentador; mas esse renascer de Fénix, das próprias cinzas, ou de escombros, e do saber ganho na experiência, e da tenacidade do íncola, essa potência ressurgente nunca mais caiu na inanidade.

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Aveiro – Outro aspecto do porto comercial

Os pretéritos quatro decénios representam o período do efectivo recrescimento, mercê das duas executadas fases de melhoramento da barra e dos empreendimentos interiores que se vêm sucedendo – pontes-cais no porto bacalhoeiro; instalações com satisfatórios requisitos para a pesca costeira; um cais de 240 metros, no porto comercial, recém-criado, provido de apetrechamento que corresponde em eficiência e brevidade de operações às necessidades imediatas e próximas, e que já se encontra em vias de acrescentamento para os quatro hectómetros; a utilização progressiva da zona industrial, e das suas largas reservas de espaço; uma almejada doca seca já em construção; a constituição de acrescentadas áreas de terraplenos, antecipando a instância de renovadas solicitações; o equipamento a visar uma crescente eficiência e com maior garantia de presteza de serviço; as sistemáticas dragagens dos canais de navegação.

Na década de vinte deste nosso século, quando da reencetada luta pela regeneração desse fautor primacial do progresso da região aveirense, um outro técnico insigne que ao saber do estudo e da experiência aliava a inspiração desvendadora das soluções capazes, o Eng.º João Henriques Von Hafe – que Homem Cristo, pondo de parte antagonismos políticos atraíra ao serviço prestadio da sua terra – ao encarar a função regional do porto de Aveiro, parece contentar-se com um tráfego comercial de 100000 toneladas anuais.

Essa tonelagem, que, naquela altura, aos espíritos mais rasgados e positivos se afiguram uma ambição merecedora de uma luta denodada, já se encontra excedida. Tardámos a alcançá-la. Ainda em 1957, por conseguinte há três lustros, se cifrava o movimento de mercadorias no nosso porto nas 9 134 toneladas. A barreira da centena de milhares só a passaríamos em 1966. Para exceder as 200000 bastaram apenas mais dois anos. E agora o crescimento tem-se verificado com um ritmo mais lento. Mas já em 1971 atingimos as 239102, e chegamos / 11 / ao fim dos três primeiros meses do ano que decorre com esse montante mais que prenunciado. Chegaremos, assim, com todas as probabilidades, ao quarto de milhão.

Aliás, sem exageros de optimismo, mas com previsão resultante do que já está requerido, registar-se-á só através da entrada em laboração de uma grande unidade produtora de adubos químicos – que interessa a toda a Beira e a todo o Norte do País – uma súbita subida que não deverá tardar em exceder as 100000 toneladas.

Durante longuíssimos anos, nem um só navio estrangeiro demandou a barra de Aveiro. Em 1971 puderam já contar-se 264.

Poderia citar-se o género de mercadorias importadas ou exportadas, mencionar concludentes cifras demonstrativas de uma ascensão de cada vez mais promissora e incentivante: ferro e aço; bacalhau e peixe congelado, carburantes líquidos, gesso cru, bananas, carga geral, sei lá o que mais, que entraram e a partir daqui se dispersaram; e exportaram-se: papel e pasta de papel (na sua acentuada predominância), aguarrás, conservas de peixe, vinhos, madeira, automóveis, bicicletas, artigos de plástico, ferragens e similares, e poderia alongar o rol, talvez com a menção de colchões, para que todos mais tranquilamente se sintam no direito de conciliar um sono bem merecido.

Podia ajuntar cifras comprovativas da função económica que este porto, que apenas subiu mais um degrau na sua progressão, está a cumprir, já que o valor atribuído às exportações ultrapassou, no ano transacto, um montante de 850000 contos e o das mercadorias recebidas subiu a mais de 180000 contos.

Mas, nem nas mercadorias importadas há os perfumes, ou as novidades atraentes de tecidos macios e gráceis, os atavios que realcem a beleza de quem os ostente e me possam fazer absorver pelas senhoras tão gentilmente benévolas, que desejaria enfadar no mínimo possível, nem um relatório fastidioso, um rol e uma cegarrega são consentâneos com esta reunião de amizade, e que requer amenidade cortês e afectuosa.

Parto de uma convicção, certo de que todos a comungamos: a de que o porto de Aveiro, como nunca na sua história, agora que o progresso das comunicações lhe abre perspectivas mais vastas, está sendo uma realidade válida, com perspectivas ainda incalculáveis.

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Aveiro – Porto comercial em actividade.

O meu propósito incide em recordar, na senda do que Rocha e Cunha e outros aveirenses pioneiros e beneméritos, com o apoio dos mais lídimos intérpretes do pensamento e predilecções visienses do tempo, que esse nosso porto, como aquele culto homem público se incumbiu de evidenciar há quarenta e quatro anos, apresenta «pontos essenciais de solidariedade com os interesses económicos da Beira Alta».

Sem exclusivismos, sem descabidas intenções monopolizadoras, mas com a irrefragável primazia que a geografia e os factores humanos, a tradição e as suscitações da distância e dos acidentes geográficos prescrevem à acção futura, / 12 / o mesmo autor – e hoje com maioria de razão, já que passamos da fase das aspirações à das primeiras realidades proporcionáveis – acentuava então, que o desenvolvimento do porto de Aveiro deveria considerar-se «intimamente ligado ao progresso das Beiras, não só pela situação geográfica, mas também pelo predomínio de factores económicos que estabelecem a comunidade de interesses da maior parte da população de entre Douro e Mondego».

Essa comunidade não só subsiste, mas com as novas circunstâncias e exigências reforça-se dia a dia. Os vossos minérios, as vossas madeiras, quiçá os vossos vinhos de alto apreço, os produtos dos vossos empreendimentos actuais e daqueles a que a vossa iniciativa venha a dar corpo, tem a expansão aberta pelo porto que pretendemos cada vez mais apto.

Não os leva o rio, mas indica o caminho. Todos sabemos que, «dentro de certos limites, o preço do transporte marítimo é independente da distância a percorrer», ou praticamente, reduzidissimamente onerado por ela. E que, ao contrário, o frete dos transportes terrestres está em relação com a distância a vencer.

E essa é concretíssima, com coordenadas relativamente exactas, e a mais propícia à movimentação da vossa mercadoria, que obviamente procurará o trajecto mais directo e menos dispendioso.

Viseu, por esses motivos – Viseu e a região que lhe fica a leste – sempre propendeu para o porto de Aveiro. Em todos os ensejos em que buscamos alentos para uma luta que não cessa, para uma caminhada pertinaz a que não podemos atribuir um termo, mas apenas etapas concatenadas a vencer parcelarmente e em série continuada, encontrámos compreensão e amparo, espírito de comunidade estreita e coesa e o estímulo vigoroso e acalentador.

Na época que venho a reportar-me, a articulação da Beira Alta e de uma parca parcela da Beira Baixa com o porto de Aveiro, preconizava-se através do caminho-de-ferro existente e da sua penetração em zonas dele desprovidas. Sobre o tema se debruçam, em particular, com entusiasmo apostolizador e as previsões possíveis no tempo, propondo traçados e definindo-lhe funções, o Eng.º Tristão Ferreira de Almeida, autorizado especialista nos problemas dessa feição – e que viria a ser dedicado e operoso presidente da vossa Câmara Municipal.

A política mais desempoeirada do tempo em matéria de transportes e distribuição produzia-se, então, necessariamente em termos ferroviários. O transporte automóvel, particularmente o de viaturas pesadas de carga encontrava-se ainda fora dos previsões mais penetrantes.

Entretanto, a estrada, se não matou a ferrovia, desferiu-lhe um profundo golpe e alterou os termos em que se equaciona a distribuição terrestre das mercadorias e do comércio interno, e mesmo internacional. Subverteu-os.

Há, assim, que rever o problema de modo a que conduza a uma solução francamente benéfica para que a potencial comunidade de interesses de Aveiro e Viseu, creio bem que da Guarda, atrevo-me a supor, mais longinquamente, de uma zona espanhola que tem em Aveiro a mais curta distância para o Atlântico, se realize na plenitude que as evidências recomendam.

A rodovia ampla, de moderno traçado, que possibilite e comodize a circulação de veículos pesados e grandes tonelagens de carga de Aveiro a Viseu, de Viseu à Guarda, da Guarda à fronteira de Vilar Formoso – por um traçado mais consentâneo com as exigências actuais e as que se prenunciam, representa, não uma obra restrita, de carácter regional, mas inteira, inequivocamente, um melhoramento que o interesse nacional reclama.

Sem a estrada desafogada, que anime e assegure o êxito às iniciativas, drenando excedentes, programando para o comércio externo, estabelecendo as correntes de vaivém que um torcicolo raquítico empecilha, a Beira Alta queda, tolhida e isolada. Tem motivos para querer e não pode querer. Vê, lá para as bandas do mar, como o Malhadinhas, quando uma madrugada procurava um álibi para ludibriar a incrédula e paciente Brízida, o rubro crepúsculo vespertino, a anunciar bonança e abundosa pesca. Mira os caminhos que ao mar conduzem, mas não pode, já que os tempos, os meios, as exigências e as economias de tempo são muito mais prementes, utilizar as veredas flexuosas e de via reduzida, como o comboio, a que obstinadamente se recusa uma possível actualização.

Para nós, os de Aveiro, que imaginamos as dificuldades desanimadoras que os imensos camiões «TIR», que da aduana estrangeira nos transportam, seladas, até aos nossos serviços alfandegários mercadorias de diversa proveniência e natureza, experimentarão na estrada sinuosa e raquítica que no-los conduz da raia de Espanha, é como se tivéssemos um braço paralítico.

Para nós, os de Aveiro, que temos o porto com maiores disponibilidades de área de todo o país, e vislumbramos, com exequibilidade, a mais ou menos longo prazo, um terminal de contentores, procedentes de algures de aquém ou de além Pirinéus, é prender-nos as rémiges aos largos voos que estão ao nosso alcance.

Para vós, os de Viseu, significaria estagnação, insulamento, um imperativo preservar num tempo / 13 / ultrapassado, um sofrear de energias regurgitantes, o regateio de meios com profícuos fins à vista. Semanticamente já artéria significa estrada e a que actualmente nos liga bem pode já tomar-se por capilar, secundária e esclerosada.

O porto de Aveiro é uma escola de luta, por uma meritória causa. Proporcionou-se e recusou-se. Veio ao nosso encontro e depois de prometer e dar, furtou-se-nos. O ânimo dos aveirenses caldeou-se no combate de o manter ao seu, ao vosso, ao serviço da Nação.

O porto de Aveiro, tanto como dos canais tentaculares da ria que abraçam as terras marinhoas, frustraria a sua realização em plenitude sem a rede das estradas que tomem e conduzam produtos da terra e da indústria.

A que nos aproxime de Viseu, e a que me não compete sugerir o traçado, mas tão-somente relevar a necessidade, é uma das primaciais para a nossa escala de valores.

Aqui estou – aqui estamos pois, em Viseu, que mais não seja por aveirismo. Querer por Viseu, e quando ainda os interesses coincidem, é querer por simpatia fraternal. É satisfazer uma inclinação do sentimento.

E não é dar mas retribuir. E nem retribuir, porque na circunstância, ao alcançardes esta reivindicação tão limpidamente justa, ela reverterá, meio por meio, em nosso proveito.

Vizinhos fraternos temos vindo de mãos dadas. Apertemo-las com renovado vigor. Por sentimento e por interesse mútuo que o reforça. E certamente, nós que na nossa comunidade, aprendemos a lição da luta no combate pelo porto, por ele e por vós, estaremos, fiéis e firmes, na comum tarefa de ganhar esta batalha. 

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(1) – Palestra proferida, em 1972, numa reunião do Rotary Clube de Viseu. Trabalho elaborado, há quase dois lustros, a que assistiram as mais representativas entidades viseenses e aveirenses, e, assim, para uma fraterna jornada Viseu-Aveiro, encontra-se, nas vésperas de decisivos progressos do porto de Aveiro, sobretudo em dados estatísticos, flagrantemente desactualizado. No essencial, todavia, redobra de motivações válidas. – E. C.

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páginas 5 a 13

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