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N.º 22

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1976 

Notas sobre a implantação da República

em Aveiro e seus antecedentes

Por Eduardo Cerqueira

O fermento dos ideais republicanos, em Aveiro, entrou na população autóctone de algum modo como o sal.

Terá vindo, antes mesmo de se sonhar com a mudança de regime, com a água que a trazia dissolvida do oceano, e, símbolo de sabedoria e agente espevitador, crepitante e excitante, embebia as margens, na vila aberta ao fluir das águas. O sal reparte os seus predicados, por vezes de sinal contrário: por bons augúrios e votos de malquistação. E é conservante, sem se demitir de excitador.

Precisamente a regular fluição de marés com águas vindas do oceano e imiscuições de ideias veiculadas pelas naves que dele vogavam pelas cales mais rasgadas até ao coração muralhado da vila mercantil, criava uma burguesia, com os defeitos e virtudes que lhe eram inerentes. Por um lado amealhando, e promovendo maior prosperidade e expansão à vida local. No outro aspecto, permeável a ideias, dispondo de elementos de informação e cotejo, criando em si, e em seu torno, um espírito mais receptivo.

A verificação – aliás, sem que o facto representasse senão uma penetração lenta, estratificada, que não subvertia as sedimentações de costumes e princípios de uma sociedade em equilíbrio estável – encontra-se, por exemplo, nessas peças essenciais da aveirografia que são os documentados e elucidativos trabalhos da história económica aveirense, do probo e lúcido Comandante Rocha e Cunha.

Bastará que nos abonemos com breves períodos das suas fundamentadas asserções, ao aludir ao modo como se explica a formação e progressivo crescimento da vila de Aveiro, e da sua especial psicologia colectiva, em qualidades e defeitos que a distinguiram de outras povoações da sua própria região: (1)

«Uma corrente comercial que se representa, materialmente, com intercâmbio de mercadorias, representa também, espiritualmente, um intercâmbio de ideias de civilizações diferentes. O contacto que essa corrente estabeleceu com os povos do Norte, sobretudo ingleses, flamengos e holandeses e a larga permanência de elementos destes povos na própria vila, imprimiu à burguesia aveirense um carácter e uma mentalidade diferentes das outras povoações, que a ensimesmou, alheando-a quase inteiramente do interior».

Noutro passo, consequente do raciocínio formulado, observa que «este aspecto da mentalidade da sua burguesia, dos séculos XV e XVI ainda hoje é um facto, como ainda hoje é um facto o amor pela ordem, pela liberdade, pela economia, a tolerância, a morigeração dos costumes, o asseio doméstico e o gosto pela pompa dos cortejos religiosos».

E, premindo a mesma tecla, põe em evidência as diferenças que desde recuados tempos se verificavam entre os agrupamentos urbanos litorais e agregados do interior:

«A importância social da burguesia marítima assegurava maior soma de liberdades, a sua riqueza multiplicava actividades e criava o desafogo e o conforto, e, assim, as vilas marítimas eram centros de aspiração das populações rurais – que sofriam uma vida dura de trabalho, servidão e privações.

As tendências liberais, que virão a ser um título da psicologia aveirense, numa população a que velhas radicações poderão conferir a qualificação de autóctone, ou assimilada e, assim, compartilhando de similares propensões e gostos, e anseios, remonta pois a termos dos tempos medievos. E, com o progresso do tráfego portuária, crescente até ao momento do auge no final do terceiro quartel da centúria de quinhentos, o contacto com estrangeiros, e com as ideias de que eles eram veículo, essas tendências ter-se-iam firmado, se não incrementado.

O germe latente, apto e pronto a desabrolhar, ao primeiro estímulo de efectivas potencialidades, para fecundos resultados, determinaria a conduta evidenciada / 16 / por Aveiro, já em 1820, já, como consabidamente é conhecido, na revolução, malograda, mas com fogo não extinto, de 16 de Maio de 1828. E nesta, em que, na velha Praça do Pão – depois chamada do Comércio e actualmente sob a égide de Joaquim de Melo Freitas, republicano desde os tempos de estudante, aveirense ilustre, múltiplas vezes fiel intérprete dos sentimentos mais genuínos e vivos dos seus conterrâneos – se solta, como reiteradamente se tem escrito, o primeiro brado público contra o miguelismo, facto histórico que, mais que nenhum outro, Aveiro tem apresentado como motivo de ufania.

A história deste acontecimento – um dos marcos históricos aveirenses, uma data cultuada e a que a gente de Aveiro, persistentemente liberal, liberal e individualista (que os dois conceitos se geminam) se tem mantido de viva memória preiteante – está escrita. E não só em letra morta, mas rediviva na recordação, quase se diria no sangue de cada aveirense, de raiz e espírito.

Sabem-se os nomes dos mártires, justiçados na forca da Praça Nova, do Porto, vítimas da fidelidade aos ideais, e da sentença cruel da alçada em que se admite terem exercido influências intolerantes e inumanas da última – no tempo, e talvez no entendimento das suas obrigações e prerrogativas das soberanas de «inauferíveis direitos», provindos do poder divino e a ele assimilados.

Os seus crânios – como que de santos lacaios, cujas relíquias são alvo de veneração e focos inexauríveis de inspiração – guardam-se no cemitério, onde repousam, na grande maioria, as figuras que desde esses tempos se distinguiram no dominante, quase poderíamos dizer intrínseco liberalismo da população de Aveiro. São poucos, mas cabe lembrá-los paradigmaticamente, com um sentido indeclinável de perpetuidade: o Desembargador Francisco Manuel Gravito da Veiga e Lima, Francisco Silvério de Carvalho Magalhães Serrão, Manuel Luís Nogueira, Clemente da Silva Melo Soares de Freitas, João Henriques Ferreira Júnior e Clemente de Morais Sarmento.

E, porque desses idealistas ficou o fermento e brotou ao impulso, não se devem olvidar os que, mais afortunadamente, não obstante terem tamanhas ou maiores responsabilidades na frustrada revolução contra o miguelismo, puderam furtar-se à pena capital, perseveraram na luta e vieram a desempenhar papéis de realce na vida pública local ou nacional.

Entre esses merece figurar à cabeça, sem dúvida, o desembargador Joaquim José de Queirós, o «façanhoso» chefe do movimento liberal aveirense, futuro ministro, discreto parlamentar, que se confinou aos trabalhos sem projecção pública das comissões, pai de um não menos íntegro magistrado, José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, e avô do romancista – o mais insigne das nossas letras – Eça de Queirós. Esse magistrado seria condenado a ser queimado em efígie, já que, escondido debaixo do junco de um pequeno barco conseguira furtar-se à perseguição dos esbirros, e, de Verdemilho, onde chegava um esteiro da Ria, tomar rumo a Ovar, e dali ao exílio. Cartista, da ala conservadora do liberalismo, entendia este, à maneira que, ao falar numa das cerimónias do centenário dessa mesma revolução, o considerava o insigne pensador aveirense Jaime de Magalhães Lima:

«O liberalismo vale pelo que promove em nosso ânimo, pela condição e elevação e alegria e saúde espiritual que determina, e alimenta; não é pelo que fabrica do nosso barro palpável que o liberalismo vale ou desmerece e é erro ou virtude, porque isso que do barro se fabrica, barro é e mais nada, em pó e cinza se dissolve, e poderá ser muito pouco ou nada, conforme as contingências do momento. O liberalismo fabrica homens, não é alfaia do fabrico das coisas, não serve para escudela de famintos nem para tonel de sibaritas, nem para degrau de potestades soberbas; é uma estrela do caminheiro».

E o tolstoiano ensaísta completa o seu pensamento, de algum modo e em Iarga extensão exprimindo o de Joaquim José de Queirós e seus companheiros na luta e nos sofrimentos pela liberdade:

«O liberalismo é o respeito mútuo entre os homens, na sua totalidade e indivisibilidade, por esse princípio guiando e aferindo a dignidade de cada qual – assim como o autoritarismo, que nos seus infinitos modos e dissimulações se opõe ao liberalismo e o aborrece, é a ablação radical da personalidade e do exercício da consciência, é a vida coada pela opressão e pela irresponsabilidade – à qual irresponsabilidade os sectários do autoritarismo chamarão tranquilidade, doçura, quietação majestosa, ordem e disciplina, moeda corrente do mercado moral e político com que o despotismo usa embalsamar a aviltante prostração sonolenta dos que por natural inércia se lhe submetem de boa mente e entre esses anestésicos se sonham no paraíso».

Largamente explanaria a sua concepção de liberalismo – sua e de muitos que o procederam naquele movimente que o tinha como lábaro e como mola impulsionadora – afirmando mais adiante:

«O liberalismo é o respeito mútuo entre os homens, tanto negando a legitimidade da opressão inquisitiva, como exigindo a tolerância de pensamento e deliberação e acção de cada qual; é o reconhecimento da intangibilidade e da fecundidade do princípio de autonomia da decisão e da vontade de cada homem, desencarcerando-nos daqueles estados de parasitismo mortal, nos quais o poder mental e toda a energia do homem / 17 / era unicamente instrumento cego e dócil da vontade, e não raro do capricho de um outro homem...».

Outros dos que conseguiram furtar-se à sanha punitiva dos miguelistas inclementes e cegos na revindicta, alguns condenados também à morte pela alçada, merecem também ser recordados. Entre eles o Visconde de Santo António, Rocha Colmieiro, o Dr. Luís Cipriano e, mais jovens, mas também forçados a homiziar-se, o próprio José Estêvão, filho primogénito daquele clínico, bondosamente paternal, e Manuel José Mendes Leite, o mais fraterno dos amigos do futuro tribuno empolgador.

Ponde de remissa, por inconsistente, um pretenso republicanismo, mesmo potencial, do intrépido apóstolo (2) dos princípios liberais e das, para o tempo, mais rasgadas regalias populares, que foi José Estêvão, dos prosélitos dessas ideias veio o levedar dos partidários da mudança de regime, já que a secular monarquia evidenciava de cada vez mais acentuadamente os esteios carcomidos e incapazes.

Só um acurado trabalho de rebusca através de jornais de há cerca de um século para cá – e em Aveiro, salvo de «O Povo de Aveiro» não há colecções ao alcance dos eventuais consultores com intuitos historiográficos ou de mera curiosidade pessoal – permitirá, mesmo lacunarmente, traçar as linhas gerais de reconstituição de um agrupamento republicano local, com características verdadeiramente de organização partidária.

Certamente já antes das comemorações do terceiro centenário da morte de Camões, que tiveram uma tão intensa influência na difusão e avigoramento dos ideais republicanos, havia adeptos mais ou menos sinceros, conscientes e ardorosos dos princípios e dos sentimentos que viriam a conduzir três decénios depois à mudança de regime. Mas eram isolados, desconexos, numa semi-clandestinidade.

Ao que parece, a primeira congregação de elementos com essas tendências partidárias, ficar-se-ia a dever à capacidade de organização e persuasão do então muito jovem oficial do exército que era Homem Cristo, o qual, não obstante as restrições que impendiam sobre os militares, vinha exercendo uma acção apostolizadora, pertinaz e animosa, de republicanismo. O veemente jornalista, democrata muito mais pelas ideias em si do que por solidariedade com quaisquer homens que se arrogassem a liderança delas em qualquer momento, recordá-lo-ia mais de meio século depois:

«No verão de 1881, antes, ainda, de ser colaborador efectivo do «Século», fundei, estando de licença em Aveiro, o Centro Eleitoral Republicano Aveirense. Meus irmãos reuniram umas dúzias de pessoas; fomos à noite para uma casa que o Joaquim Fernandes tinha na Rua do Alfena; disse-lhes umas coisas e constituiu-se o novo grémio político com os assistentes. Não que fossem todos republicanos. Na maior parte não eram nada, como sempre sucede em casos idênticos. Com eles, porém, se iniciou o movimento republicano em Aveiro».

Claro que um procedimento desta natureza, num oficial do Exército, mesmo com a brandura usada ao tempo pelos governantes e as autoridades em geral, tinha os seus riscos: – «Ia-me saindo cara a brincadeira! – escrevia em comentário ao facto o ardoroso polemista: – Um mariola qualquer escreveu uma carta anónima ao ministro da Guerra, contando-Ihe o caso e pintando-lhe, como fazem todos esses mariolas, mais feio do que ele era. O ministro mandou a carta ao Governador Civil pedindo-lhe informações. E eu tive a sorte de o governador civil tomar aquilo como uma rapaziada. (...) E o ministro, então, limitou-se a determinar que, por causa das dúvidas, fosse eu gozar o resto da licença para onde me agradasse, mas em Aveiro não podia continuar». Foi para Sever do Vouga, para Casa de Eduardo Arvins, «velho e convicto republicano» e para além dessa circunstância, um «belo coração e belo carácter, homem muito culto e viajado» e aí passou o seu «primeiro desterro político», pois foi-o na verdade, embora de um carácter especial» (3)

Não será hoje fácil – se não é mesmo impossível identificar essas «dúzias de pessoas», ainda que o número não fosse muito avultado. Algumas, todavia, deixaram rasto, que, embora mesmo num relance com as características de fugaz superficialidade de que este se reveste, permite fixar-lhes os nomes de precursores.

Com alguns deles fundaria Homem Cristo, em Maio de 1882, o «Povo de Aveiro», órgão dessa parcialidade, que pouco a pouco atrairia mais adesões. E ainda na criação do jornal alguns não tinham declaradas convicções republicanas. Os demais, segundo também informa o famoso panfletário, que nele ao longo de seis decénios exerceria a sua veemente acção de doutrinação e combate, «eram pessoas amigas e que por amizade nos acompanhavam, digamos, numa expectativa benévola. E cita-os. Entre os primeiros, convictos e dispostos, às claras, à luta proselítica, os dois irmãos, ambos mais velhos que ele, Manuel e Fernando, António Ponce Leão Barbosa, António Augusto Mourão, Francisco Rodrigues da Graça – o Francisco da Maurícia, como era geralmente conhecido, e que foi um dos mais devotados membros da comissão popular que tomou a seu cargo a erecção da estátua ao egrégio tribuno Aveirense José Estêvão Coelho de Magalhães. E, mais conhecido, um dos grandes paladinos da República, aveirense por ascendência paterna, Sebastião de Magalhães Lima, que geralmente se ignora / 18 / ter feito parte da sociedade constituída para fazer publicar o semanário, que, em pouco tempo, foi passando, gradualmente, a ser dominado pela personalidade de Homem Cristo, o qual acabaria por ficar seu exclusivo proprietário e quase seu redactor exclusivo em várias ocasiões.

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Homem Cristo

Os demais sócios da empresa eram João Simões Peixinho, Bernardo da Cruz Maia e Anselmo Ferreira, que, este pelo menos, se foram imbuindo dos ideais republicanos dos seus amigos. Mas, embora não participasse na sociedade fundadora do que haveria de tornar-se, graças à personalidade de jornalista medular do seu inspirador, um semanário de projecção nacional, com leitores ávidos, desencadeador de ataques a ídolos – com ou sem pés de barro – profligador de erros e dos que deles tirassem ou não proveito, o aludido Joaquim Fernandes, em cuja casa se decidiu formar o Centro Eleitoral Republicano, se o não era já efectivamente, era, sem dúvida, um republicano potencial. Mostrá-lo-ia, claramente, poucos anos depois, pela ardorosa atitude que evidenciou na luta política que se travou em Aveiro, na segunda metade de 1888, entre os adeptos do Manuel Firmino, então a exercer as funções de governador civil e que pretendia fazer entrar, no hospital da Misericórdia, irmãs da caridade, e um avultado número de aveirenses com tendências republicanas ou afins, que tomavam essa entrada de religiosas como uma intolerável afronta à memória de José Estêvão. A comissão que promoveu a elevação do monumento à sua memória, desta última feição, na generalidade, chegaria mesmo, por esse motivo, a protelar-lhe a inauguração. (4)

Joaquim Fernandes distinguiu-se pelo calor tomado nessa luta, que teve repercussão em todo o País. E tão ardorosas e abertas foram as suas atitudes que o padrinho de baptismo, Francisco António do Vale Guimarães, que desfrutava de larga influência pessoal e política, para poupar o afilhado a prováveis represálias no exercício da sua arte, única garantia que tinha de subsistência – a Rua do Alfena era vulgarmente chamada Rua dos Ferradores, que ali se concentravam, e essa era a sua, dele, profissão – conseguiu colocá-lo em Lisboa.

Aí chegou a sargento-ferrador da Guarda Municipal, e, cremos que ainda da Guarda Nacional Republicana. E, em Lisboa, o protegeram, por solidariedade política, naturalmente, e como patrícios, Sebastião de Magalhães Lima e Homem Cristo – dois amigos que as vicissitudes da política viriam a afastar, por vezes com acrimoniosos choques de atitudes e palavras, e com reatamentos mais ou menos consistentes.

Republicano até ao fim da vida, que não foi das mais curtas, Joaquim Fernandes manteve fidelíssima amizade por Homem Cristo. Quando este, primeiro três vezes por semana, e, mais tarde, duas, ia ao Porto dar as suas lições, professor catedrático que foi da respectiva Faculdade de Letras, aguardava-o sempre à chegada do comboio e à sua guarda ficavam os livros com que durante a viagem o professor de História da Universidade portuense dava os últimos retoques à preparação das lições que ia ministrar.

E, antes do comboio do regresso, não só os ia colocar no lugar que previamente marcara, juntos a agasalhos que Homem Cristo eventualmente levasse a mais para o percurso – pois as carruagens então ainda não eram aquecidas – mas comprava-lhe o bilhete com antecedência, pois a última, lição do austero professor terminava a hora que lhe não dava grande margem para chegar a tempo ao comboio.

Desses cuidados beneficiou o autor destas linhas, largo número de vezes, desde que um dia o simpático e prestimoso ancião descobriu que o estudante, ao tempo, daquela escola superior, era bisneto do padrinho dele, Francisco António do Vale Guimarães.

Mas de outros republicanos dessa época há notícia, ou, pelo menos, uma mera alusão, aqui ou além.

Sabe-se, por exemplo, que «antes da Revolução de 31 de Janeiro de 1890, se organizou em Aveiro um / 19 / comité revolucionário, a fim de proclamar a República, após o grito de revolta a soltar no Porto e que deveria ser secundado em todo o País».

Ora, neste comité, em que entravam além de alguns pioneiros já apontados – Francisco Manuel Homem Cristo, seu irmão mais velho Manuel Homem de Carvalho Cristo e António Ponce de Leão Barbosa –apareciam nomes novos, de alguns dos mais férvidos prosélitos da causa republicana: Francisco António de Moura, Dr. Manuel de Melo Freitas, Dr. Joaquim de Melo Freitas, Domingos José dos Santos Leite, José Gonçalves Moreira, Manuel Dias e José Gonçalves Gamelas.

Esta dezena de aveirenses, partidários da mudança do regime, abriu, entre si, e, assim, com sigilo, uma subscrição para a compra de armamento destinado à revolta. Cada um contribuiu com cem mil réis, sem dúvida uma avultada quantia para a época. E com outras importâncias subscreveram outros partidários das instituições republicanas, pois a subscrição, que prosseguiu, chegou a atingir cerca de 3 contos.

Numa primeira reunião, feita na Gafanha da Nazaré (5) então quase erma e, assim, em condições excelentes para, que os conspiradores não pudessem ser descobertos, surgem na fonte de que para esta particularidade nos socorremos dois outros aveirenses, Elísio Filinto Feio e Joaquim Fontes Pereira de Melo, a par dos já apontados Drs. Manuel e Joaquim de Melo Freitas e José Gonçalves Gamelas.

As armas adquiridas, redobrada a vigilância, como é natural, após a revolta do 31 de Janeiro, necessitavam do esconderijo mais recatado. Assim, cremos que por Manuel Dias, com as facilidades de que dispunha, foram escondidas numa dependência de arrumos, da velha casa do Morgado da Oliveirinha – então a do influente Castro Matoso e, digamos, a do irmão deste, o chefe do Partido Progressista, e, pois, um dos árbitros da política nacional, José Luciano de Castro, que demasiadamente se olvida que é aveirense.

Claro que nenhum dos encarregados de farejar a existência de armas clandestinas, por mais apurado faro policial que possuísse, conceberia a ideia de que o armamento com finalidades subversivas se encontrasse no oculto resguardo do solar de dois pilares das instituições monárquicas.

Só uma vez o caso esteve por um triz, para poder ser descoberto, segundo um dia ouvimos da boca de Homem Cristo, um dos mais comprometidos dos conspiradores aveirenses, como pelo que narramos é fácil de calcular.

Joaquim Fontes tinha uma barbearia, na Praça do Comércio – o foco, com a Arcada, desde as lutas liberais do primeiro terço do século, da vida política local. Inteligente, devotado aos seus ideais, mas bastante loquaz, como é proverbial nos profissionais daquela arte, teria igualmente o gosto de se mostrar nos segredos, se não dos Deuses, ao menos nos que se circunscreviam à escassa e selecta roda. Uma ocasião, a um qualquer freguês, na política de ideias e filiação antagónicas às suas, desprendeu a língua e, se não fosse a incredulidade com que o interlocutor teria encarado o conhecimento de que blasonava, teria desvendado o sigilo a que com poucos mais se obrigara a manter.

Uma figura que ocupou uma posição de relevo pronunciado, entre os republicanos dessa época foi indubitavelmente Francisco António de Moura, que morreria a 12 de Fevereiro de 1910 e, assim, a menos de 8 meses da proclamação do regime pelo qual pugnara durante mais de meia centena de anos.

O órgão do partido (6) assinala-lhe o falecimento ocupando toda a primeira página e desta passando à imediata, pois que «Francisco António de Moura em uma relíquia veneranda dessa legião de intemeratos republicanos que sempre se nortearam pelos mais elevados ideais democráticos, e que nunca torceram caminho, contemporizando com os poderosos influentes, que, nesta agonia do regime, têm, em defesa do trono, acendido as velas no altar e que pelas regalias da igreja precipitam a monarquia no abismo do retrocesso e da opressão».

E no encomiástico artigo necrológico – como todos os desta feição pecando pela superlativação de virtudes, efectivas embora –, depois de apontar alguns dos homens que em Aveiro, com ele se ligaram «contra essa floração de pântano» e entre os quais surgem revelados os nomes ainda não mencionados de António da Silva Pereira e do Dr. José Crispiano da Fonseca – que dirigia os correios e apenas clinicava graciosamente – aponta-lhe «virtudes que fizeram dele um cidadão exemplar». E acentua que «O Centro Escolar Republicano de Aveiro se deve em grande parte à iniciativa tenaz de Francisco de Moura».

E, mais, como, aliás, ficou na memória, ao mesmo tempo que lhe recordava a «conversa alegre e uma bonomia constante e uma indulgência, sem vacilações», assinalava o seu larguíssimo espírito de solidariedade humana:

«Da farmácia de Francisco de Moura saíram, de graça, muitos remédios para acudir aos desgraçados. E daquela gaveta recôndita quantas esmolas sufocavam os frémitos da dor. Tudo, porém, se passava evangelicamente, no segredo, a ocultar, nesse vago receio de que alguém sonhasse esses benefícios.»

Não está no propósito destas notas rememorativas dar, mesmo fugazes, traços biográficos dos mais antigos, / 20 / constantes e prestimosos republicanos do tempo da propaganda. Apenas, a talho de foice, nos detivemos em algum deles e, neste em particular porque, como escreveu um seu correlegionário: «jamais encontraremos quem o substitua nos trabalhos partidários, a que se entregava de alma e coração».

O aludido Centro Escolar Republicano foi criado ao termo do primeiro trimestre de 1909. O órgão do partido, «O Democrata» (7), aliás fundado apenas um ano antes, tendo como director Arnaldo Ribeiro e redactor principal o Dr. André dos Reis, revelando a sua próxima entrada em funcionamento, agregadora, incentivante, observava que havia já anteriormente anunciado para as actividades partidárias uma nova fase de actividade e progresso que as faria sair definitivamente da apatia em que se vinham arrastando. E num artigo que intitula «A Instalação dum Centro», exprime-se nos seguintes elucidativos termos:

«Havia vontades, havia elementos, havia forças, mas tudo disperso, sem coesão, sem esse alento e sem esse ânimo que a união dá, sem esse entusiasmo que nasce do mútuo auxílio e do mútuo incitamento.»

E, mais alguns passos adiante, prosseguia: «Nunca nos faltou a convicção, nunca a nossa fé se quebrantou, nunca nossas vontades e nossa abnegação pelos mais grados ideais teve um desfalecimento. Nunca nos arrependemos nem choramos os nossos esforços, mas algumas vezes nos sentimos faltos de companheiros resolutos e desassombrados que nos animassem com a sua propaganda e nos aquecessem com a sua actividade.

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Alberto Souto

«Porque eles não existissem? Não; porque eles não reuniam as suas almas numa só alma, as suas vontades numa só vontade, os seus braços num só braço, os seus esforços num só esforço dominador e imponente.

«O que faltava ao Partido Republicano de Aveiro, o que nos faltava a nós, à nossa ideia, era alguma coisa que nos juntasse e nos prendesse, com interesse, com capricho, com alegria. Faltava-nos a acção, o calor das multidões e dos ajuntamentos, faltava-nos o amor, a paixão impetuosa, e, numa palavra, faltava-nos um Centro».

E, considerando este como uma necessidade a tomar no imediato, pois representava uma aspiração em todos os republicanos Aveirenses, latente, refere que nesse sentido se tinham, há tempo, encetado os trabalhos preliminares da concretização desse desejo, e efectuado «as combinações, os preparativos, os delineamentos da magnífica e frutuosa ideia, no silêncio, quase no segredo».

Ora o Centro ia ser inaugurado, a curto trecho. («Finalmente! Felizmente!») E dava uma ideia das instalações e da função que ia exercer. Centro escolar, teria «sempre as suas salas franqueadas aos sócios e proporcionar-lhes-ia, além de inocentes passatempos, como qualquer clube, leituras e conferências de toda a utilidade».

Depois descreve a sede escolhida para o Centro, na «espaçosa casa da Rua do Campeão das Províncias que olha, do cimo da Rua de José Estêvão, onde esteve instalada a Creche». (8)

Nessa descrição pormenoriza: «A casa, que possui magníficos salões, numerosos compartimentos e um vasto quintal, onde se realizarão os nossos comícios, visto que pode comportar 8000 pessoas, pertence ao Sr. Dr. Casimiro Barreto Ferraz Sachetti, par do antigo reino e antigo governador civil do distrito na situação franquista ».

Com espírito de justiça frisa mesmo: «Não queremos deixar de nos referir ao nobre procedimento de S. Ex.ª, que, ao contrário do costume de muitos monárquicos (...) não teve dúvida alguma em nos alugar o seu prédio, declarando com a correcção e delicadeza própria do seu esmerado e fino trato que nada tinha com as ideias dos seus novos inquilinos, e que, por isso, não fazia dúvida alguma em entregar ao partido republicano de Aveiro a chave da sua casa». Seria motivo essa atitude de tolerância para que nela pusessem os olhos «os entes mesquinhos e odientos que por todos os meios procuram contrariar a nossa propaganda...»

Para tratar da inauguração do centro efectuou-se uma reunião de republicanos, os quais nomearam para gizar um programa e lhe dar execução um grupo de correligionários constituído por António Augusto da Silva, Manuel Marques da Cunha, Bernardo de Sousa Torres, António Maria Ferreira e Manuel Lopes da Silva Guimarães.

Essa comissão – cujos nomes damos apenas para que, mesmo em repetição, fiquem registados entre os propugnadores dos princípios republicanos antes do advento do novo regime – seria praticamente dispensada do trabalho da inauguração inaugural para que fora designada.

A inauguração seria suprida, ao que somos levados a crer, por uma sessão solene efectuada em 21 de Março (9) e que «festejava a estada em Aveiro do nosso eminente correligionário Sr. Dr. Manuel de Arriaga (10) que da melhor boa vontade acedeu ao convite da comissão instaladora do Centro Escolar Republicano para o visitar...»

O futuro Presidente da República que, a convite de António Maria Ferreira, assumira a presidência e se fez secretariar por José Gonçalves Gamelas e Adriano Costa, foi alvo de entusiástica manifestação.

Abriu o seu discurso, declarando ter dito na conferência que viera proferir no Teatro Aveirense sobre o grande e simpático vulto da liberdade que era / 21 / José Estêvão apenas um terço do discurso que tinha em mente. Hóspede como era, não queria vir a Aveiro, com a sua apreciação e com as suas ideias políticas, suscitar inimizades e levantar malquerenças naqueles que o haviam convidado. No Centro, porém, diria tudo quanto tencionava dizer e, assim, lendo repetidas passagens dos discursos de José Estêvão, analisou as suas ideias. E, tirando as suas ilações dos trechos lidos e glosados, afirmaria ter sido o egrégio Aveirense monárquico por se haver deixado influenciar pelas tradições e, assim, com o seu pendor romântico e a sua boa fé ingénua, quis conservar a figura decorativa de um rei que reinasse sem governar. E, na sequência das suas considerações fluentes, acentuou as puras intenções que ele pretendia: a coroa despida de todos os privilégios perigosos para a soberania do povo e para a liberdade, o que para ele, orador, se afigurava uma autêntica fantasia.

Reportando-se depois ao Partido Republicano, e ao encargo difícil e pesado que lhe cabia «de libertar a pátria e unir os homens num estreito abraço de solidariedade, pela justiça e pelo bem», recomenda a preparação metódica e conglomeradora para o combate na cruzada de emancipação. E, «pensando na revolução e preparando-a como deve ser», mas tendo no pensamento que era «preciso, contudo, não falar na revolução para que ninguém o espere. A revolução há-de fazer-se de improviso, embora preparada maduramente no silêncio».

Nessa sessão, ao mesmo tempo revestida de solenidade e de desbordante expansão de entusiasmo, além do discurso de Manuel de Arriaga, «repassado de uma sinceridade e de uma fé admiráveis, cheio de graça e com todos os encantos da sua alma poética», falaram ainda Rui da Cunha e Costa, Alberto Souto e, por fim, Pádua Correia, que, na sua persistente tarefa de apostolado republicano, frequentes vezes veio a Aveiro.

Ora, uma vez inaugurado, o Centro Escolar Republicano empenhou-se em cumprir efectivamente os propósitos que determinaram a sua criação. E nos meses subsequentes a esta desenvolveu uma actividade constante.

Assim, se já em 3 de Abril anuncia que a secretaria, aberta todos os dias das 8 às 10 horas da noite tem patente a inscrição para novos sócios – já que o número de republicanos notoriamente ia engrossando, em 15 de Maio seguinte divulgava na Imprensa que os eventuais interessados – na mesma secretaria, e agora desde as 6 da tarde até às 10 da noite – poderão inscrever-se como alunos da escola que pusera em funcionamento.

Logo, todavia, dá começo a uma série de conferências e reuniões de propaganda política.

Assim, nesse dia 15 de Maio, o Dr. António Maria Marques da Costa – cuja apresentação foi efectuada pelo activo Rui da Cunha e Costa – dissertou sobre o tema «A Higiene da Criança» e, uma semana exacta depois, «o ilustre democrata de Espinho», poeta de celebrados méritos, amigo e correspondente assíduo de Unamuno, Dr. Manuel Laranjeira, dissertaria Sobre «O que entre nós deve entender-se por mudança de regime».

E nessa última data já pode, pois, escrever-se (11) que: «o Partido Republicano entrou decisivamente numa fase de actividade que muito nos anima e de que há a esperar muito lisonjeiros resultados para a causa da República e da Pátria».

Alfredo de Magalhães viria bastas vezes a Aveiro, quer em 9 de Maio, pronunciando no Centro uma conferência, a que presidiu Francisco António de Moura, quer, por exemplo, em 30 do mês referido, após um comício em que participou, na antiga vila de Eixo. E, então, falando na mesma agremiação republicana Aveirense, a par de Alberto Souto e de Bartolomeu Severino, «fez um dos mais primorosos discursos que lhe temos ouvido». (12)

Poderia alongar-se a lista das iniciativas tomadas nesse período de entusiasmo pelo Centro. As citadas, todavia, supomo-las suficientes para comprovar o afã com que se lançou na propaganda.

Anotemos todavia que nele se efectuaram, a 3 de Junho, as eleições para a Comissão Municipal Republicana de Aveiro, que, segundo a lei orgânica, deveria «gerir os negócios concelhios do partido durante o / 22 / futuro triénio», mas que, afinal, dado que a almejada proclamação da República demoraria já apenas uns dezassete meses, não chegaria a terminar o mandato.

A comissão ficara constituída do seguinte modo: Efectivos – Bernardo de Sousa Torres, António da Cunha Coelho, Manes Nogueira, António Maria Ferreira e Manuel Augusto da Silva. Substitutos – José Marques de Almeida, Arnaldo Ribeiro, Francisco Miguéis Picado, Manuel Barreiros de Macedo e José Pereira de Carvalho Branco.

Vários destes nomes aparecerão, implantada a República, dezasseis meses depois, a preencher lugares nos quadros políticos e administrativos. Um deles, homem de muito isento idealismo e que no seu estabelecimento de livraria, aos Arcos, tinha a assídua frequência de muitos dos mais ilustrados e firmes de convicções, Bernardo Torres, viria mesmo a ser presidente da Municipalidade.

E, porque vem a propósito, uma vez que já neste elenco directivo figura como suplente, lembremos que por toda a vida – que não foi das mais curtas – ficaria substituto Manuel Barreiros de Macedo, industrial de padaria, de inabaláveis sentimentos republicanos, de letras gordas, canhestro de elocução, impreparado intelectualmente, mas generoso, sempre pronto a puxar os cordões à bolsa para as iniciativas partidárias, e a que em sinal de reconhecimento se atribuía apenas e inalteravelmente um cargo sem função. («Sempre substibruto! sempre substibruto»! –lamentava-se ele um dia, num desabafo de homem desgostoso por ser sistematicamente relegado para um posto secundário e sempre inactivo).

Os filiados aumentam em número, e os quadros vão sendo formados. O regime monárquico está abalado, infirme, à mercê de um movimento insurreccional que não se sabe quando surdirá, mas cuja eclosão se pressente (e não só pelos que a desejam) para um futuro próximo. E, nessa persuasão, assente em seguros prenúncios, efectua-se, para prevenir qualquer eventualidade, uma prévia formação de equipas para os postos da administração pública, logo que haja que ocupá-los.

A revolução republicana, que iria derrubar as velhas instituições ao eclodir em Lisboa, não terá constituído, pois, uma inteira surpresa. Havia, ao que é de presumir, quem estivesse no conhecimento dos preparativos. Mas, como se impunha, mantinha o segredo desses secretos trabalhos numa pequena roda de correlegionários discretos e seguros. Nos demais, ainda que houvesse um pressentimento, não existiam concretos elementos que habilitassem a crer na brevidade da acção e do êxito.

Ora, como diria um dos periódicos locais, quando a Aveiro chegaram, reiteradas e com crescentes motivos de crédito, os rumores da revolução do Cinco de Outubro em Lisboa e do seu êxito: «O berço da liberdade chamada não se manifestou, não veio à rua de armas na mão, em defesa ou das velhas instituições ou da causa da República». (13)

E o mesmo conceituado jornal aveirense – que logo em 1852, no seu número um, insere um artigo do punho de José Maria Teixeira de Queirós (14), pai do romancista Eça de Queirós, que não se afasta muito dos princípios preconizados para a República então implantada – dá, sucintas e impressivas, as razões da expectativa com que a população Aveirense, prudente mas ansiosa, se conservou nessa expectativa:

«Aveiro, que não decidiria do triunfo, assistiu serena até ao fim, ao desenrolar do sangrento combate, ávida de notícias desde o primeiro instante – dessas notícias que ainda hoje se não conhecem em todas os seus pormenores».

E, na sequência do breve panorama que traça, com bastante objectividade, do ambiente de contenção, de receio de uns e esperança de outros, observa que a sensação colhida pelo articulista era a de que o movimento político desses dias, de intensíssimas vivências, e nas suas repercussões e vivas impressões, «produziu no ânimo público desta boa e pacata terra portuguesa, onde havia adeptos da monarquia e sólidas dedicações à República, mais ninguém quis o derramamento de sangue, que seria inútil sacrifício, sem vantagem para a causa que se debatia.

«Assim, desde as primeiras horas, desde o primeiro momento, se procurava obter informações que nem o telégrafo nem os jornais, nem mesmo os passageiros dos comboios, que, provindos do sul, tocam na estação dos caminhos de ferro da cidade, conseguiram trazer-nos».

E completa o seu depoimento, que se sente de um entusiasmo mitigado pelo desejo de não trair os factos tais como se passaram, e não entre qualquer das parcialidades políticas, mas na generalidade da população:

«Esses dias (digamos de 4 a 6) foram de uma ansiedade atroz, cruel. cortadas as comunicações telegráficas, embaraçada a circulação nos caminhos de ferro, tivemos de contentar-nos com a incompleta informação dos jornais do Porto, que tiveram larga procura – como nunca atingiram».

O primeiro jornal Aveirense que menciona a revolução é «O Democrata». (15) Na primeira página, composta ainda e impressa na ignorância da revolução, noticia já com certo relevo a morte de Miguel Bombarda. Antes de completas, porém, as páginas interiores, a novidade, imprecisa, sem pormenores, surde cheia de ambiguidades e incertezas. A impressão ficara suspensa, com os responsáveis do semanário e amigos / 26 / políticos mais fiéis e mais ansiosos em vigília, à espera da ansiada notícia da vitória. Estão todas a postos, para que o jornal circule com a boa nova já na manhã desse dia seis, em que todos estavam em alvoroçado deseje de conhecer os acontecimentos da capital.

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De manhã, o jornal, nessa altura, como se viu, órgão do partido republicano em Aveiro e, por conseguinte, com maiores obrigações de informar, e animar, encontrava-se em distribuição, podendo já, em tipo de maior evidência, inserir uma local, na terceira página, com o seguinte teor:

«À hora a que escrevemos, seis da manhã, continua a não saber-se nada de positivo de Lisboa, que ainda se conserva isolada do resto do país, pelo corte das linhas.

«Há, porém, quem afirme que a República foi implantada, reinando já completo sossego».

E, não atentando no sabor monárquico daquele gerúndio «reinando», dava já algumas indicações do que se passava em Aveiro de mais saliente:

«O Regimento do 24, que tem estado de prevenção e havia de sair hoje pela manhã com destino desconhecido, conserva-se no quartel, por virtude de outra ordem. A força de cavalaria que ontem partiu para Coimbra, sob o comando do tenente Calheiras, chegou àquela cidade onde até ontem às oito horas não havia a mais leve sombra de alteração de ordem, posto que os espíritos estejam exaltados.

«Em Aveiro a ansiedade é geral, a avaliar pela grande quantidade de gente, incluindo as autoridades civis e militares, que à noite se junta na estação, à hora dos comboios. Do Porto não se sabe ainda de nada. Mas é natural que esta noite a revolução ali tivesse rebentado, secundando Lisboa.

«Pelas ruas de Aveiro juntam-se agora enormes magotes de populares, que, com entusiasmo, entoam a «Marselhesa». A bandeira do «Centro Republicano», depois de ter estado dois dias a meio pau, em sinal de sentimento pela morte do Dr. Bombarda, encontra-se neste momento no topo do mastro.

«Reina grande entusiasma na cidade, vendo-se muita gente pelas ruas e janelas.

«Na centro da cidade, junto aos Arcos, começaram as manifestações, soltando os populares estridentes vivas à República, ao exército e à marinha. Dizem-nos que se vão dirigir ao quartel para aclamar o regimento de infantaria 24.

«Saindo, como sai, este número com um dia de antecedência, logo que se confirmem oficialmente as notícias que damos debaixo de reserva, publicaremos tantos suplementos quantos sejam precisos para de tudo darmos conta aos nossos leitores.

Entretanto, brademos:

«Viva a República Portuguesa!»

Os suplementas, sucessivos, a circular ainda com tinta fresca, com as novidades mais recentemente chegadas, saíram e avidamente foram procurados e lidos. Nas colecções do periódico não existem todavia e, assim, não nos é possível acompanhar as demonstrações de júbilo que a confirmação do êxito da revolução suscitava, de cada vez mais calorosas.

A certeza indubitável da proclamação da República só se adquiriria já quando dealbava o dia sete. Os suplementos aludidos, nesses dois primeiros dias de inquietantes dúvidas e ardorosos anseios, de tensão / 27 / compreensível para uma provável mudança de instituições e de pessoas nos cargos da administração pública, iriam mantendo e acalentando os ânimos.

Assim, nessa sexta feira, que na expressão adaptada por «O Democrata» (16) pelas expansões de satisfação verificadas, «ficará memorável na história de Aveiro» – e tanto que neste momento o estamos a relembrar – com uma breve preparação, um sumário passar de palavras, efectuou-se a implantação Aveirense do novo regime.

E, naturalmente, o primeiro acto público desse acontecimento histórico efectivou-se nos Paços do Concelho, onde a bandeira, a do Centro Republicano, ao que supomos, teria sido hasteada pelo Dr. André dos Reis, por entre aclamações intensamente calorosas, simultâneas com o entoar de «A Portuguesa» – por um ou outro dos presentes acompanhado, num coro pouco conexo, já que esse hino patriótico era até ali suspeito de subversivo, e poucos com ele se encontravam familiarizados – pela «Banda Amizade», que nessa ocasião, por qualquer circunstância pouco perduradoura, adaptara a transitória designação de Banda dos Bombeiros Voluntários». (Dos «velhos», entenda-se, que já, entretanto, se fundara nova corporação dos «novos» ou dos «Guilhermes».)

E, após essa concreta afirmação do advento da República, a que estiveram presentes os mais qualificados adeptos dos ideais triunfantes, e a exalçante manifestação cívica em que ela se desenrolou, realizou-se uma série de actos similares, em sucessivas etapas.

Segunda a descrição que temos presente, (17) e que sintetizaremos, cerca do meio-dia, as pessoas que tiveram conhecimento da repetição, noutros locais representativos, da cerimónia do içar da bandeira que consagrava a instauração das novas instituições, dirigiram-se ao aquartelamento de Infantaria n.º 24. Aí, na presença do Secretário-Geral do Governo Civil – que, como é óbvio, o governador deixara de exercer funções – do Capitão do Porto de Aveiro, de toda a oficialidade e de «grande concurso de povo» – que, entretanto, ia reengrossando – o comandante da unidade, coronel António Ernesto da Cunha, içou a bandeira, «entre estrondosos vivas à República, à Pátria livre, ao Exército, à Marinha, etc., aclamações que todos os presentes secundaram, executando a banda – a velha, e sempre participante em todos os mais significativos momentos da vida Aveirense, «Banda Amizade» – a «Portuguesa», e apresentando armas à guarda, que formara, em frente do quartel.

E o relato, em que o dia jubiloso da definitiva integração de Aveiro no regime implantado, partilhando do regozijo público, acrescenta:

«Quando a bandeira chegou ao topo do mastro, o Alferes Costa Cabral, (18) o denodado republicano, ergueu do coração um viva à República. O seu camarada Leite (19) e muitos outros ergueram também vivas entusiásticos, falando a seguir os drs. André dos Reis e Joaquim de Melo (que teremos ocasião de encontrar em subsequentes referências), entre constantes ovações».

Os manifestantes, então já acompanhados pelos oficiais, e com as bandas a executar composições marciais, tomara rumo ao quartel, então denominado da «brigada», onde se repetiu a cerimónia. Neste ensejo, com desbordante vibração, usaram da palavra, de novo o Dr. André dos Reis e, já então, caloroso como se manteve até ao fim da vida, e com permanente ardor de democrata inquebrantável, o alferes Costa Cabral. A manifestação repetiu-se ainda, com as mesmas características não só em frente à Capitania do Porto, mas também junta do quartel da Guarda-Fiscal. No primeiro daqueles lugares foi intérprete dos sentimentos populares o Dr. António Fernandes Duarte Silva que, «comovido, produz uma magnífica oração, arrancando da numerosa assistência veementes aplausos». Na segunda, o orador, também com reiteradas provas dadas de republicanismo, foi o Dr. Marques da Costa.

E a ronda pelas unidades militares aquarteladas na cidade com a mesma acendrada vibração terminou no Distrito de Reserva, onde a nova bandeira foi então içada pelo Capitão Rosa Martins, «carácter austero e republicano intemerato» e, da varanda do edifício, encerrou a série de discursos com a beleza de expressão que o distinguia, «o tenaz lutador Alberto Souto, que produziu um arrebatado e comovente improviso, que o povo retribuiu com uma das manifestações mais entusiásticas e ardentes a que temos assistido».

O cortejo de manifestantes deteve a marcha durante algum tempo defronte da redacção de «O Democrata» e aí, conquanto não houvesse discursos, o calor do júbilo popular recrudesceu. O semanário, à volta do qual, no período imediatamente anterior à mudança da regime, se aglutinavam os mais denodados e intrépidos prosélitos dos ideais republicanos, na ocasião não fora apenas o intérprete fiel dos sentimentos de natural euforia destes. Com os sucessivos suplementos, em que especialmente Alberto Souto e André dos Reis e talvez o Rev.º Dr. António Fernandes Duarte Silva se aprimorariam na forma, com intuitos de empolgamento, estimulava a população para o ambiente de apoteótica consagração da República recém-surgida.

Nesse mesmo dia, e antes que viesse a ser nomeada a comissão Administrativa para a edilidade, o que só viria a manifestar-se após a posse do primeiro governador civil do distrito do novo regime, foi designado – com a aprovação dos adeptos com mais provadas demonstrações de fidelidade ao novo regime, um «Comité / 28 / Republicano» que logo endereçou ao Governo Provisório um telegrama de calorosa saudação, de confiança na sua acção e de alegria pela implantação da República. Propôs os nomes – porque embora não houvesse a certeza absoluta, abundavam os motivos de convicção de que a monarquia fora derrubada –entre os que julgou com melhores aptidões e com passado de maiores garantias de fidelidade e capacidade, o Dr. Joaquim de Melo Freitas, que já em 1882 colaborara no recém-saído dos prelos «Povo de Aveiro», o primeiro semanário republicano aveirense, como já referimos.

Essa comissão ficou constituída por Alfredo de Lima e Castro, Dr. André dos Reis, Eduardo de Pinho das Neves, Alberto Souto (ainda então com apenas encetado o seu curso de Direito), José Marques de Almeida, Dr. Padre António Fernandes Duarte Silva e Arnaldo Ribeiro.

E no dia imediato àquele em que foi designado esse grupo coordenador e orientador dos primeiros passos do regime recém proclamado publicou, com larga difusão na cidade e no concelho, como que o primeiro documento oficial, a seguinte

 

PROCLAMAÇÃO

«O Comité Revolucionário de Aveiro, hontem, 6 do corrente nomeado nos Paços do Concelho, por 11 horas da manhã, pelo povo, que nas ruas da cidade aclamou a República Portuguesa, depois de hasteada no mesmo edifício a bandeira vermelha e verde, comunica ao povo estarem officialmente confirmadas as notícias da proclamada República, reinando em todo o país a melhor ordem e sendo este acto redemptor da Pátria por toda a parte acolhido com o mais vivo enthusiasmo.

 

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André dos Reis
Primeiro Presidente da Câmara Municipal de Aveiro

 

O Governo da Republica tem inteira confiança na dedicação de todos os cidadãos ao novo regimen do Progresso, da ordem e da liberdade, e que foi implantado em Lisboa pelo Exército e Armada, unidos ao povo, em heroica lucta, e, que, secundado em todo o paiz, enche de alegria o coração de todos os portuguezes.

O Comité Revolucionário de Aveiro, que se acha instalado nos Paços do Concelho e em sessão permanente, assegura a todos a ordem, o respeito e a cordura de que o povo de Aveiro deu provas nas grandiosas manifestações ao glorioso dia 6 de Outubro. / 29 /

 

 


Em Aveiro

O povo d'esta cidade acclama enthusiasticamente a Republica

AVEIRO, 6. – T. – Só hoje de manhã foi confirmada a noticia do triumpho da revolução, ouvindo-se immediatamente, por toda a cidade, enthusiasticos vivas á Republica. Bandas de musica, acompanhadas de muito povo e marinheiros da armada, que conduzem a bandeira republicana, percorrem as ruas em grandes manifestações, dirigindo-se depois ao quartel de infantaria, onde acclamaram vibrantemente o exercito. D'ali seguiram para a capitania, a saudar o capitão do Porto, e para o edificio da camara municipal, onde içaram o estandarte republicano. Foi nomeada uma commissão para gerir os negócios municipaes, a qual telegraphou ao ministro do interior, participando o ocorrido.

Às 3 horas da tarde foi arvorada a bandeira republicana no edificio da capitania, falando o capitão do porto ao povo, que o applaudiu phreniticamente,

É grande o enthusiasmo que avassalla todos os espiritos. As manifestações continuam, sendo muito acclamada a constituição do governo provisorio.

«O Século», n.º 10353 (30.º ano), de 8-X-1910
 

 

O governador civil nomeado para Aveiro é o sr. dr. Pires de Carvalho, um dos mais valorosos e inteligentes organizadores do movimento republicano na província, que em breve tomará posse do seu cargo.

Paços Municipaes de Aveiro, 7 de Outubro de 1910. André dos Reis, José Marques de Almeida, Eduardo Pinho das Neves Padre António Duarte Silva, Arnaldo Ribeiro, Alfredo de Lima e Castro, Alberto Souto.

Teve muito intensa vibração a manifestação de simpatia à Marinha, efectuada junto à Capitania do Porto, então instalada à beira da ponte da Dobadoura, num prédio do gaveto formado pela estrada para a Gafanha e a rua para o Matadouro – hoje Cais do Paraíso.

Os marinheiros – os quais já anteriormente haviam sido distinguidos com outras evidenciações de simpatia, como confiarem-lhes a bandeira verde rubra da revolução vitoriosa em anteriores manifestações – foram vitoriados com desbordante vibração.

E o Capitão do Porto, Comandante Júlio César Ribeiro de Almeida, profunda e consabidamente prosélito da República, proferiu um discurso em que, empolgado e empolgante, terá exteriorizado todo o seu contentamento e toda a sua confiança na aplicação dos seus ideais à vida nacional. Este oficial da Armada viria mais tarde a ocupar o cargo de governador civil.

Nesse dia 6, anunciados que haviam sido, ainda que não oficialmente, os nomes dos novos chefes do distrito, constou que seria nomeado Governador Civil de Aveiro, o Dr. Pires de Carvalho, um republicano categorizado, com um passado de dedicação à causa, que assumia o poder com os propiciatórios votos de uma considerável parcela da população nacional. O seu nome chegou a ser designado na Imprensa para essa função (20) e não teria sido mal recebido na capital do distrito ainda que não suscitasse demonstrações de grande concordância e agrado, como se comprovaria na proclamação entretanto publicada.

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Albano Coutinho

Primeiro governador civil de Aveiro

Afinal veio a ser nomeado para exercer aquelas funções uma figura muito mais conhecida no distrito, do qual era considerado o decano dos republicanos – Albano Coutinho. E esse, sim, obteve o aplauso, pode dizer-se unânime dos seus correligionários e mesmo, pelo sempre comprovado espírito de tolerância e equilíbrio, a boa aceitação dos que não sendo republicanos, não hostilizavam o regime, e antes o encaravam com uma expectativa benévola.

Apesar de haver nascido em Lisboa – a 5 de Dezembro de 1848 – era considerado, por afeição e serviços prestados, uma das mais destacadas figuras bairradinas. Aliás, por morte do pai, esse sim, anadiense de nascimento, o jornalista Albano Augusto de Almeida Coutinho (21), transferiu, com carácter de permanência efectiva, o seu domicílio para Mogoforos. O devotado / 30 / e conceituado democrata, que além do Curso Superior de Letras frequentara o Instituto Geral de Agricultura, aplicando os conhecimentos neste adquiridos e dedicando-se a esclarecidos labores agrícolas, e, em consequência, adquirindo uma experiência pessoal rica, consagrou-se especialmente à viticultura, impulsionando-a e imprimindo-lhe, pelo exemplo e pela persuasão, moldes mais modernos, científicos e fecundos. E, como era próprio do seu civismo actuante, evidenciar-se-ia como um dos mais estrénuos defensores dos interesses da agricultura da região.

Desempenharia, assim, um dos mais representativos cargos do Sindicato Agrícola do Distrito de Aveiro, tendo sido igualmente membro do Conselho de Agricultura e representante do nosso país ao Congresso de Viticultura de Legon, em 1894.

Essa circunstância, a par da sua actividade, quer oral, quer por escrito, na difusão e exaltação dos ideais republicanos – colaborou em diversos jornais, alguns notoriamente da feição política em que militava, e entre eles a «Gazeta de Portugal», «República Portuguesa», «Diário da Tarde», «Democracia» e «O Século» – deram-lhe notoriedade e prestígio no distrito. Desse modo, é conhecida a sua ponderação e tolerância, teve em volta do seu nome um ambiente de muito extensa boa acolhida. Em Anadia viria a falecer em 31 de Agosto de 1936.

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O seu espírito de larga tolerância e conciliação não seria, aliás, secundado pelos correligionários mais exaltados, de mais farisaica intransigência, de parcialismo mais discriminativo. E esse facto, como veremos, levá-lo-ia a pedir escusa da função, a curto trecho.

Entra, no entanto, no exercício do cargo com a mais decidida disposição de servir o País, a República e o Distrito, cuja governação lhe fora confiada, por um velho amigo e companheiro da propaganda, o Dr. António José de Almeida, que essas circunstâncias, como Ministro do Interior do Governo Provisório, invocara para lhe obter a anuência para o desempenho de uma missão que se antevia com espinhosas incompreensões.

O acto de posse, muito concorrido e com afirmações da mais firme convicção nos ideais republicanos, ainda sob o ambiente de alegria em que os prosélitos do novo regime fremiam e era como que o denominador comum que os congregava, deixou a impressão de unidade que o momento requeria. Unidade fugaz, se não ilusória, porque os dissentimentos não tardariam a manifestar-se. E já não diremos com Homem Cristo, que rompera declarada e acerbamente com algumas das figuras de maior evidência e, em reflexo dos violentos ataques que lhes dirigiu, ou por motivos directos, com diversos dos republicanos locais, mas entre estes mesmos, que não demoraram em manifestar divergências e a malquistar-se.

Na cerimónia da posse, conferida pelo Secretário-Geral, o primeiro chefe do distrito, para nos servirmos das palavras com que se lhe refere um diário da Capital (22) – mais sucinto que os semanários locais – Albano Coutinho, «agradecendo a presença das pessoas que o honravam com as suas simpatias, declarou que faria tudo quanto em si coubesse para bem da Pátria e da República».

Depois, mais uma vez exteriorizando sem peias o republicanismo que a circunstância de ser funcionário, ainda que o não ocultasse, obrigava a conter em limites restritos, falou o Dr. Joaquim de Melo Freitas, que tantas vezes seria, fiel, fluente e cintilante, o porta-voz dos sentimentos Aveirenses. E, segundo a síntese do mesmo matutino órgão de informação lisboeta, «produziu uma magnífica oração, cheia de fé, exclamando, num dos períodos do seu belo discurso que, se qualquer das assinaturas ali feitas, não representava adesão leal e sincera, quem assim fizesse seria simplesmente um canalha». Anota de seguida a reacção dos assistentes à oração do ilustre Aveirense: «Estrondosas palmas, enorme ovação se produziu na assembleia, após essas palavras tão alevantadas e francas». / 31 /

E, tal como o Diário de Notícias da antevéspera (23) assegura que a pequena e pacata cidade dos canais – à qual só os ardores da política, então como em precedentes ensejos, arrancavam à placidez rotineira -permanece em ordem completa.

O Democrata (24), embora também resumidamente, noticia com pequenos pormenores a mais o acto de posse, referindo o modo como Albano Coutinho se congratulou com o advento da República e a afirmação do muito que se orgulhava por ter sido um dos mais dedicados cooperadores para o seu estabelecimento em Portugal. Igualmente refere que o Dr. Joaquim de Melo Freitas, que, na sua qualidade de primeiro oficial do Governo Civil, leu o auto de posse, aclarou a sua situação de republicano de antigas e inabaláveis convicções como empregado público adentro das instituições monárquicas.

O referido número do Diário de Notícias, na mesma notícia do seu correspondente em Aveiro, dizia que antes mesmo da posse, Albano Coutinho foi saudado por «grande assistência de manifestantes» e que, calorosamente ovacionado, saudou com férvida e comunicativa persuasão o povo da capital do distrito e a jovem República, que desde a mocidade fora a sua aspiração mais cara.

No prosseguimento dessa local, escrevia-se naquele quotidiano:

«Falou depois o Sr. Malva do Vale, historiando rapidamente os acontecimentos e congratulando-se com o povo pelo seu novo chefe.

«Seguiu-se o Sr. Dr. António Breda, que foi saudado vibrantemente, produzindo um dos seus costumados discursos entusiásticos, felicitando tanto o novo chefe do distrito, como o povo republicano.

«Longas salvas de palmas cobriram as últimas palavras do orador, que é muito simpático e querido por quantos avaliam a sua lealdade e convicções.»

E, uma vez empossado, Albano Coutinho confiou a administração do concelho ao já mencionado oficial de infantaria César Amadeu da Costa Cabral, a quem cometeu o encargo de conferir posse à comissão administrativa do município, isto é, à primeira edilidade republicana. Para a constituir, de acordo com os correligionários locais, tinha designado que essa era a denominação «revolucionária que, na altura e durante algum tempo depois, se dava aos simples indivíduos ou aos antes designados como cavalheiros ou personalidades – os seguintes «cidadãos»:

Efectivos – Dr. André dos Reis, presidente; Alfredo de Lima e Castro, vice-presidente; Eduardo de Pinho das Neves, Francisco Miguéis Picado, Manuel Lopes da Silva Guimarães, Francisco Casimiro da Silva, João Afonso Fernandes e António Maria Ferreiro;

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Substitutos – Henrique dos Santos Rato, Manos Nogueira, Manuel Marques da Cunha, Bernardo de Sousa Tarros, Domingos Martins Vilaça, Eugénio Ferreira da Costa, João da Cruz Bento, António da Cunha Coelho e Amândio Ribeiro da Rocha.

O órgão republicano, (25) ao noticiar a instalação da comissão que passava a gerir os negócios municipais Aveirenses, considera-o composto de «correligionários nossos de reconhecida competência, os quais se acham animados da melhor boa vontade de serem úteis à nossa terra, sem contudo enveredarem pelos antigos processos administrativos usados pelos seus antecessores monárquicos».

Dr. Joaquim de Melo Freitas

Aliás, o semanário não terá reparado que na redacção da local, condenando os processos das vereações do regime deposto tacitamente lhe reconhece a eficiência. E nesse aspecto a algumas das antecedentes administrações prestaria justiça, já que obra fizeram dentro dos escassos recursos que o erário municipal lhos facultava, e indiscutivelmente esforçada.

No acto de posse, o Dr. André dos Reis, com a ênfase com que realçava a forma cuidada, peculiar desde novo aos seus discursos, foi o primeiro orador da cerimónia, que se efectuou na sala das sessões dos Paços do Concelho, ainda decorada pela forma que tomara quando da homenagem prestada ao Conselheiro Castro Matoso, em 1906, e que se encontrava repleta.

Antes de gizar, a traços largos, um programa, observou que «nunca tremera nos tempos da propaganda democrática e jamais se temera de quaisquer represálias ou ataques do regime decaído. Algumas dessas represálias e ataques sofrera resignada sem quebrantamento da sua fé inabalável na República, em / 32 / que sempre divisara o levantamento do edifício da nossa regeneração política e social.

«Trabalhou – disse depois – quanto em si coube pela implantação da República, que consubstancia a felicidade, a redenção da Pátria. Regozija-se com isso e com isso se envaidece. /.../ A República é um facto e, entretanto, treme, agora, ao assumir a chefia do concelho. E treme, porque se sente pequeno para a grande missão que lhe impuseram».

O programa, que depois traçou, para a actuação da edilidade da qual lhe fora cometida a espinhosa presidência – e espinhosa dentro de pouco tempo, mesmo no próprio seio da vereação –, segundo as referências que topamos na Imprensa da altura era ao mesmo tempo sucintamente genérico e com indicações de uma orientação avisada. Incluía assim os propósitos de aumentar o abastecimento de água e promover medidas de saneamento rural; codificar a legislação concelhia e remodelar alguns serviços municipais; repartir os melhoramentos pelas freguesias rurais, na proporção do que concorriam para o cofre do concelho; apurar, com imparcialidade as causas do agravamento das finanças camarárias nas últimas gerências; e dar conhecimento público semanal do balancete da tesouraria municipal.

E, é claro, tanto mais que pouco permanecem à frente da municipalidade, a maior parcela das intenções enunciadas, como na generalidade das vezes sucede, ficou sem efectivação, não obstante os bons desejos de serem prestantes colaboradores de todos os membros da vereação, desejosos, aliás, de demonstrarem as eficazes virtudes resultantes do próprio regime.

Esses propósitos, em seu nome e no dos companheiros da edilidade, afirmaria nesse mesmo acto público o vice-presidente, Alfredo de Lima e Castro, a quem os ardores do idealismo superavam as limitações da idade nos intuitos de servir, e que aludiu, transbordante de alegria, ao facto de ter vivido intensamente dois factos similares: no seu país de nascimento, e naquele onde lutara persistentemente para amealhar os meios que lhe garantissem um fim de vida sem dificuldades de subsistência – primeiro a implantação da República no Brasil, depois para sua maior consolação, o advento da da sua Pátria.

A comissão o primeiro acto que praticou foi enviar um telegrama de felicitações e fidelidade ao Governo Provisório.

E, na mesma altura, o Governador Civil anunciava à cidade e ao distrito divulgando-a por todo ele profusamente a seguinte comunicação oficial da implantação da República:

Proclamação official da Republica Portugueza

Por ordem do governador civil do distrito de Aveiro, o cidadão Albano Coutinho, em nome do Governo Provisório, faz-se constar ao povo portuguez que foi proclamada, em Lisboa, a República, como regimen político da nação. O rei e a família embarcaram para o estrangeiro no hyate Amélia, ilesos e respeitados.

De um ao outro extremo do paiz a Republica tem sido acolhida com o mais vivo enthusiasmo sendo acclamada pelas classes civis e militares, que lhe são inteiramente devotadas.

O socego é completo e a tranquilidade geral, estando a ordem inteiramente assegurada e garantida  / 34 / pela cordura e generosidade do povo e energia das autoridades. O mesmo Governador Civil da República no distrito de Aveiro pede a todos os cidadãos portuguezes o maior respeito pela ordem publica e principalmente pela liberdade de todos os portuguezes quaesquer que sejam as suas crenças, partidos e convicções.

Não houve alteração na normalidade financeira e económica do paiz, prosseguindo por toda a parte as transacções.

A Republica Portuguesa honra a memória gloriosa de todos os mortos da Revolução e especialmente d'aquelles que cahiram combatendo pelo novo regimen, instituído só para felicidade do povo portuguez e para prosperidade da Patria, tão longo tempo opprimida.

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A Republica Portugueza, firmada como está, com o aplauso do exército e da armada que a ajudaram a implantar, e pelo entusiasmo e dedicação popular, tem por base a Justiça e a Moralidade, procurando o Progresso e a Liberdade e o Bem do Povo e da Pátria.

Governo Civil d'Aveiro, em 8 de Outubro de 1910.

O Governador Civil,

Albano Coutinho

A comissão administrativa, tal como o chefe do distrito, recebeu, nesse dia e nos imediatos, numerosas mensagens de regozijo e de reiteração de fé republicana, ou de adesão.

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Como dissemos já, todavia, passado esse tempo em que todos mais ou menos se irmanavam nos sentimentos de júbilo e, assim, se congregavam na exaltação de um ideal comum, pouco tardou que as divergências surgissem, mais ou menos a descoberto. Emulações, parcialismos intransigentes, sobrevalorizações de serviços e merecimentos pessoais, egoísmos e ambições começaram a aflorar e a ensombrecer o ambiente fraterno dos primeiros dias.

O alferes Costa Cabral, porventura já por causas dessa natureza, deixa o cargo de Administrador do concelho apenas com umas duas semanas de exercício e tem como sucessor, já que nenhum republicano da cidade se dispôs a aceitar a função, o Dr. Diniz Severo, médico em Eixo, onde viveu até para além dos oitenta anos, sempre fiel às ideias que já perfilhava antes da formatura, embora viesse a abandonar a actividade política.

Entretanto, se, na maior parte, transitaram de um para o outro dos regimes os funcionários que se encontravam à testa dos serviços do Estado, num ou noutro caso verificou-se a substituição. Assim sucederia, por exemplo, na Escola Normal Primária, que passou a ter como director o professor José Casimiro da Silva, já mencionado, pedagogo de predicados consabidos e que uma dúzia de anos mais tarde seria governador civil substituto. Modesto de temperamento, quase escondeu o dia da realização da posse, que, assim, além do pessoal docente e administrativo apenas teve a presença do inspector escolar Domingos José Cerqueira, de Joaquim Soares – funcionário do Banco de Portugal e com o empossado e o precedente com evidenciadas afinidades ideológicas, – e José Maria Barbosa, redactor e proprietário do Correio de Aveiro – na altura dirigido pelo Dr. Querubim Guimarães – e António Bernardes da Cruz, director do Aveirense e proprietário da tipografia onde ele era composto e se imprimia.

Mas as divergências fermentavam e pouco tardariam a declarar-se. Um mês depois de tomar posse, Albano Coutinho já era alvo da malquerença de uma parcela dos correligionários. Aberta, contundente, sem quaisquer rodeios ou eufemismos, logo, com efeito, em Novembro, numa correspondência de Aveiro, datada de 11, a República Portuguesa, jornal a que, como vimos, esse republicano de comprovadas, longas e perseverantes demonstrações de fidelidade aos princípios democráticos dera colaboração, tinha contra ele assestado o fogo de uma facção dos seus correligionários:

«Continuamos como dantes; as imoralidades sucedem-se e parece que a República não chegará aqui tão cedo. Isto é único».

E, a propósito da adesão às novas instituições de um funcionário, que exercia um cargo directivo e já nos tempos da monarquia era acusado de graves irregularidades, talvez infundadas, pois esse «adesivo» cuja probidade e sinceridade se punham em dúvida, se manteve no lugar ainda nos anos subsequentes – o Director de Obras Públicas do Distrito, Engenheiro Paulo de Barros –, acrescentava o correspondente local:

«Implantada a República, alguém pediu ao governador civil que requisitasse uma sindicância àquele funcionário. Qual não foi o nosso espanto quando um dia, ao entrar no gabinete do Sr. Albano Coutinho, vimos Paulo de Barros, que já então aderira, em fraternal conversa com o chefe do distrito».

E, insistindo nas provas de preferência que o primeiro magistrado dava ao camaleão adesivo em relação a correligionários com um passado de dedicação à causa republicana, acoimando Albano Coutinho, (insuspeito, esse, sem dúvida de republicanismo) da prática de uma pouca vergonha, e não hesitando em diminuí-lo e magoá-lo, adiantava:

«Que faz então esse homem a quem foram confiados os destinos do distrito... Nada, absolutamente nada /.../. Queremos energia, muita energia, e esse homem que aí está não a tem. Vamos ao saneamento e comecemos pelos nossos. / 35 /

«Rua Sr. Albano Coutinho! Quem não pode arcar com as responsabilidades do seu cargo, demita-se».

A parcialidade cega e exacerbada não compreendia nem tolerava os sentimentos e propósitos conciliatórios do governador civil, ailiás concordes com os do ministro que o nomeara e que deixou memória como símbolo de generosidade. Azedaram-lhe, assim, o desempenho da função, dando-lhe crescentes motivos de descontentamento.

Começa, pois, a pôr-se, a breve trecho, a hipótese da sua demissão, nos «mentideros» e nos semanários locais. (26) Apontam-se mesmo possíveis sucessoros, desde o Dr. Manuel Alegre até ao Dr. Moura Pinto. E na boataria que fervilhava chegou mesmo a apontar-se o nome de Sebastião de Magalhães Lima, como se fosse verosímil que um potencial candidato à Presidência da República anuísse a chefiar um distrito. Mesmo o que tinha por capital aquela que era praticamente a terra do ilustre paladino dos ideais republicanos, jornalista e tribuno, propagandista denodado que exerceu uma prestantíssima acção diplomática criando no estrangeiro um ambiente benévolo ao regime recém instaurado.

A verdade, todavia, é que os boatos eram fundamentados. Albano Coutinho não aguentou por muito tempo o ambiente de intriga e hostilidade entre facções que seria uma das mais graves pechas da primeira República. As divisões demarcam-se e acenderam-se as rivalidades. O periódico local com que sobre este particular nos temos vindo a abonar (27) e que narra os factos mais com a objectividade de espectador do que como interveniente, pois o não eram os seus redactores, escrevia, a preceder a notícia da posse do novo governador, segundo da República, Dr. Henrique Weiss de Oliveira:

«Chegou a dar-se como certa a nomeação do Dr. Moura Pinto, e dizem alguns republicanos que assim ficou assegurado pelo governo às comissões locais. Certo é, porém, que outro grupo do partido, do qual fazia parte o governador civil demissionário, ferido por intrigas locais e ataques na Imprensa e por vários correligionários, não transigiu com a nomeação do Dr. Moura Pinto e nesse sentido falou claro ao Sr. Ministro do Interior.»

«Perante tais dificuldades, – prosseguia o testemunho de que nos vimos socorrendo – a avaliar por um artigo do Intransigente, parece que os comités da Carbonária, de harmonia com a Maçonaria, resolveram apresentar ao ministro o nome do Dr. Weiss de Oliveira, médico muito distinto em Lisboa, e que assim era o tertius gaudet, que aparecia como elemento de conciliação».

E, concretizando, adiantava noutro passo:

«A comissão municipal, em face da nomeação do novo governador civil, convidou o partido republicano do distrito para uma reunião conjunta /.../ no Centro Escolar Republicano, e aí se discutiu acaloradamente o caso da referida nomeação. Durante umas poucas de horas se falou, sendo, ao que se diz, crivado de apóstrofes violentas e apartes cáusticos o nome do Sr. Dr. António José de Almeida.»

E ainda no mesmo pormenorizada local se lê: «Assim o diz a correspondência desta cidade para a República Portuguesa, feita pelo seu redactor principal, que veio expressamente de Lisboa fazer essa reportagem. Dessa correspondência se vê também /... / que quase por unanimidade se acentuou a reprovação da vinda desse cavalheiro».

E, notando que se esperava, assim, que a maioria do partido recebesse mal ou friamente o novo magistrado, observa que chegaram a pensar nessa atitude, «mas haviam reconsiderado quando souberam ou presumiram que o novo centro republicano, há dias fundado com a designação de Centro Nacional Republicano, (28) se preparava para receber festivamente o dr. Weiss de Oliveira».

Este, apesar de na sua posse terem estado presentes, e algumas usado da palavra, figuras de grande evidência do novo regime, como, além do governador civil cessante, Sebastião de Magalhães Lima, Machado dos Santos e António Maria da Silva, não podendo fazer vingar os seus propósitos de harmonizar e congregar, e sentindo crescente a hostilidade que sentia entre a facção mais exaltada, não conseguiu manter-se no cargo, de que menos de um mês depois da posse pediu a exoneração. Sentiu-se impotente para vencer a desunião, as inconciliáveis tomadas de posição, e a instabilização consequente.

Mas nem só no Governo Civil se sentiram as dissenções. Também na Câmara. As primeiras divergências manifestadas surgiram no exterior dela, por motivo da mudança dos nomes de algumas ruas e praças da cidade, que, considerada injusta em relação a certas pessoas, desagradou e afastou, poucos embora, alguns dos que haviam recebido o regime com simpatia, ou pelo menos numa atitude de expectativa colaborante.

Um azedume, porém, se não mesmo um conflito, surgiria no próprio seio da edilidade, a propósito da extinção proposta por Alfredo de Lima e Castro do lugar de médico do asilo e, consequentemente, do afastamento do lugar do Dr. Lourenço Peixinho – um Aveirense que viria a afirmar-se como um dos mais prestimosos filhos da sua terra, no melhoramento desta, e seria, porventura, com quase ininterruptos vinte e quatro anos, o presidente da Câmara que mais tempo permaneceu no cargo.

Dois vogais declararam rejeitar a deliberação, não obstante, na sessão anterior se lhe não haverem oposto. «Um deles, José Marques de Almeida, disse que, informado agora convenientemente do que a lei / 36 / a tal respeito determinava, entendia que a comissão não tinha competência para deliberação daquele modo». Aliás, de alguma forma é de presumir que além do propósito de fazer economias com a supressão do lugar, houvesse, subjacente, o intento de afastar o médico.

Criou-se um incidente «com troca de apartes e doestos, que deram lugar a que alguns membros da Câmara declarassem que não voltariam às reuniões». Em resultado da exaltação de ânimos nessa sessão agitadíssima o próprio presidente, André dos Reis, ferido no seu pundonor, manifestou essa intenção.

Os ânimos serenaram, mas o espinho, a reserva, manteve-se daí para o futuro.

André dos Reis, que nasceu no Rio de Janeiro, a 15 de Abril de 1871, mas não só era português de nacionalidade, mas Aveirense de adopção e constante fidelidade, era mais um homem difundidor de ideias, pela palavra escrita e falada, cioso do seu valor, sem extremismos mas pouco propenso à maleabilidade das transigências pessoais. Nunca ocuparia a posição para que se supunha dotado e na presidência da comissão administrativa da Câmara Municipal, não dispôs de tempo nem de meios materiais para mostrar capacidade de acção administrativa com fecundidade.

Já aposentado da sua função pública de notário sabedor e de grande integridade, e tendo deixado de advogar, consagrou-se mais às letras, deixando alguns poemas inéditos. Faleceu a 5 de Fevereiro de 1944, na terra adoptiva, a que dedicara indeclinável afecto.

Mas, com dignidade, sempre acompanhado na mais estrita fraternidade, pelos irmãos e indefesos correligionários – para empregar um qualificativo então muito em voga – Teófilo, Domingos e Artur, teria satisfações, mas também amargos de boca. Uma figura com méritos que afinal se deixou relegar para um segundo plano.

*

A história do partido republicano de Aveiro e dos tempos do advento da República mereceria ser esmiuçada.

Há nela muito mais que contar. E a História não se repete, senão num ou noutro aspecto. Mas fornece muitos motivos para meditação e lição. Alguns, fugaz e despretensiosamente, deixamos apontados.

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NOTAS

(1) – Comandante Silvério Ribeiro da Rocha e Cunha – «Relance da História Económica de Aveiro» – Aveiro, 1930, pgs. 17 e 18.

(2) – No segundo dos cadernos de divulgação publicado, em 1878, (Lisboa), Imprensa Democrática, Rua de S. Boaventura, 57 – (116 pgs.) – e que se intitula «José Estêvão – Duas Palavras», a Comissão de Propaganda do Centro Republicano Democrático de Lisboa remata o elogio do grande orador parlamentar nos seguintes significativos termos: «O partido republicano democrático português, recordando os serviços prestados por José Estêvão à causa da democracia, agradece-lhe o ter-lhe transmitido, mesmo à sombra do docel real a pujança e a seiva que hoje lhe avigoram os membros e que mais tarde o farão senhor do mundo, inscreve o nome do grande orador na relação dos beneméritos do povo.»

(3)Homem CristoNotas da Minha Vida e do Meu Tempo, Vol. III, pgs. 19 e 20.

(4)Homem Cristo – Idem, idem, vol. IV, pg. 25.

(5) – Por volta de 1900 ou 1901, constituiu-se uma Comissão Municipal Republicana, de que eram membros mais activos, entre outros, Bernardo Torres, Arnaldo Ribeiro e José Gonçalves Gamelas. Esta, suscitada por um ofício de Bernardino Machado, aconselhando os republicanos a concorrerem com listas suas e umas eleições, promove uma reunião, no armazém de pesca «Maria do Nascimento» e aí aparecem nomes novos: Alfredo de Lima e Castro (pouco antes regressado do Brasil), Manuel Cunha, Antónia Marques e João Coelho (Correia de Aveiro, N.º 58, de 26 de Março de 1911).

(6)O Democrata, n.º 104, de 12-2-1910.

(7) – N.º 54, de 27-2-1909.

(8)O Democrata, n.º cit.º

(9)O Democrata, n.º 58, de 27-3-1909.

(10) – Viera a Aveiro pronunciar, na véspera, a terceira de uma série de conferências promovidas pela Associação Comercial e que preludiavam as comemorações do centenário do nascimento de José Estêvão. Precederam-no Jaime de Magalhães Lima e Alberto Souto, seguindo-se-lhe Joaquim de Melo Freitas.

(11)O Democrata, n.º 66, de 22-5-1909.

(12)O Democrata, n.º 68, de 5-6-1909. Este jornal informa que Pádua Correia não participou no Comício nem na sessão do Centro, por haver perdido a comboio em que se deslocaria a Aveiro.

(13)Campeão das Províncias – n.º 6001, de 8-10-1910.

(14) – O seu nome foi um dos de mais geral assentimento entre os revolucionários do 31 de Janeiro para a Presidência da República, no caso de a revolução ter vingado.

(15) – N.º 138 (3.º ano), de quinta-feira, 6 de Outubro de 1910.

(16) – N.º 139, de 14-10-1910.

(17)O Democrata, n.º cit.º.

(18) – César Emídio da Costa Cabral, natural de Fornos de Algodres, filho do general Emídio Augusto da Costa Cabral, mesmo depois de passar à reserva, no posto de major, manteve amiudados contactos com Aveiro.

(19) – Manuel Rodrigues Leite, natural de Ovar, que seria sempre fiel aos ideais republicanos, e viria a ser comandante da unidade aveirense de infantaria.

(20)O Século, n.º 10352, de 7-10-1910.

(21) – Albano Augusto de Almeida Coutinho, nasceu em 1813, e regressado no fim da vida à região natal, faleceu em Mogofores em 8-3-1876.

(22)O Século, n.º 10356, de 11-10-1910.

(23) – N.º 16131, 46.º ano, de 9-10-1910.

(24) – N.º 139, de 14-10-1910, cit.º

(25)O Democrata, n.º 139, cit.º.

(26)Correio de Aveiro, n.os 43 e 44, de 11 e 18-12-1910.

(27)Correio de Aveiro, n.º 46, de 1-1-1911.

(28) – Este agrupamento político de dissidentes do Centro Escolar Republicano ou discordantes dele, fez sair em 15-2-1911 o seu órgão da Imprensa, Justiça, dirigido pelo Dr. António F. Duarte e Silva e tendo como secretário da Redacção o Dr. Inocêncio Rangel. Quase simultaneamente iniciava a publicação o semanário Liberdade, de Alberto Souto e Rui da Cunha Castro, que deixavam, assim, a sua colaboração assídua em O Demacrata.

A «Justiça», que se tornou suspeita de monarquismo foi suprimida pelo Governador Civil, Dr. Rodrigo Rodrigues pouco depois de ter saído. E «A Liberdade» para noticiar o facto, fez sair um suplemento especial ao seu n.º 2, de 18-2-1911, aplaudindo calorosamente a decisão do Chefe do Distrito.

 

páginas 15 a 36

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