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N.º 4

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1967 

 

Apontamentos sobre antigas
Procissões de Aveiro

Por Eduardo Cerqueira

Jornalista e publicista

 

O homem de Aveiro, o mais genuíno, o de raízes ancestrais nas fainas da laguna – aquele de quem a máxima local escarnecedora de emproamentos aristocratizantes dizia que na cidadezinha dos canais «quem não rema, remou» – o do Alboi ou da Beira Mar, participe das «arruadas», prosélito de uma das filarmónicas, torcedor de um dos clubes, cioso dos seus direitos de cidadania e deles consciente, «cagaréu» até à medula, primou sempre na compostura da sua apresentação e na dos seus actos colectivos.

O marnoto e o pescador, ou o operário que desgarrara das actividades familiares tradicionais, finda a faina do ganha-pão, não destoava, debaixo dos Balcões, se adregava de até lá estender os seus passos, nas horas feriadas, dos «pelotes» e das pessoas de grada condição social ou de bens avantajados.

Um dos pendores do lídimo aveirense, do que tomanino chapinou e imergiu nas águas da ria, como se esparzisse sobre a moleirinha em vias de ossificação – a daquela idade maleável em que se torce o pepino e imprimem as marcas no menino – a água baptismal do Jordão, eram as procissões. Não o satisfazia plenamente, mesmo nos velhos tempos em que com mais estrita devoção lhe cumpria os preceitos, a religião desprovida das cerimónias luzidas do culto externo.

Poderia gazetear nas demais obrigações, porventura agnosticizar, no íntimo da sua consciência infirme, e não remar contra as marés do anticlericalismo, ser impelido tanto por uma mera tradição do seu agrado como por uma fé actuante, mas, na generalidade, a procissão, com a exterioridade da sua pompa, sempre o seduziu.

Timbrou sempre, aliás, em imprimir aos préstitos religiosos uma dignidade dificilmente igualada, uma organização meticulosa e reverente, um cunho de aprimorada distinção e pompa que lhe conferiam um evidente realce em relação a quaisquer outros por mais famosos e maiores pretensões de esplendor, que se arrogassem propósitos de cotejo.


D. João Evangelista de Lima Vidal presidindo a uma procissão.

Um ou outro deslize de qualquer mordomo menos consciente da respeitosa conduta que um cortejo religioso dele exigia, seria caso esporádico e logo reprimido. Não topamos mais que uma alusão a irreverente falta de decoro de alguns membros de irmandades aveirenses. «Enquanto se recolhiam em algum templo as sagradas imagens ou o Santíssimo Sacramento», aguardavam esses incorrectos mordomos que a procissão reiniciasse o seu itinerário e não tinham pejo de beberricar alguns golos de vinho em plena rua, com escândalo dos devotos mais morigerados. Nos capítulos de visitas às igrejas de S. Miguel e das outras paróquias da cidade, no ano de 1805, foi o facto apontado e censurado, e esse reparo lhe deve ter posto imediato termo.

As quebras consentidas à gravidade e perfeito ordenamento dos cortejos litúrgicos, aliás, só poderiam encontrar-se na procissão de Corpus Christi, com figurações grotescas, impróprias do respeito devido à cerimónia do culto. Essas, porém, pertenciam ao próprio protocolo da solenidade. Constituíam regra e eram gerais, mas foram também proscritas, como veremos.

As procissões aveirenses, tanto as de gente de Além da Ribeira, organizadas pelas confrarias das paróquias da Vera Cruz ou de Nossa Senhora da Apresentação, como as promovidas pelas irmandades, cheias de pergaminhos e de prosápias de títulos e precedências, erectas na matriz de S. Miguel ou as instituídas na semiurbana freguesia de Espírito Santo, pelos rastos que delas se encontram, foram sempre modelares na ordem, extremamente cuidadas até ao pequeno pormenor de esmero e luxo.

Sucedia assim nos tempos em que havia uma parte nobre, dentro das muralhas, uma «vila-nova», marinheira e burguesa, para que o núcleo inicial se expandira já nos séculos XV e XVI, e o «cimo de vila», a área pouco a pouco conquistada à zona rural para além das portas abertas para o meridião. E do mesmo modo aconteceria quando, a partir de 1835, as quatro freguesias / 40 / de criação quinhentista se reuniram apenas nas da Glória e da Vera-Cruz, em que a antiga área da cidade ficou bipartida e que ainda hoje subsistem, embora acrescidas com a antiga vila vizinha de Esgueira, recentemente incluída no perímetro urbano.

Manteve-se como que uma compita de aprimoramento, uma rivalidade que impunha um competitivo desejo, nas duas paróquias, de contínua superação, e alguma vez terá levado a exageros de emulação além do conveniente, mas contribuiu consideravelmente para manter o nível de distinção que singulariza as procissões aveirenses.

Homem Cristo, «livre pensador que não praticava nenhum acto de culto católico», nostálgico da pátria e da cidadezinha onde nascera e pela qual, mesmo através de algumas apreciações acerbas, não conseguia esconder uma inquebrantável afeição – a que o levou a prestar-lhe os mais prestimosos serviços – um sábado de Aleluia, recorda-as, desde a sua infância, há cerca de um século. Lembra-as, às procissões inultrapassáveis de dignidade, e ao povo seu patrício, à figura física do homem da sua terra, desempenada e erecta, a condizer com a independência de carácter, que repetidas vezes pôs em relevo: ... «O homem da faixa marítima onde nasci, que ama a Deus porque ama as procissões, requintadamente artísticas, com uma ordem e disciplina admiráveis, sem balandraus de paninhos nem chimpanzés como as de quase todos os outros pontos do país – onde ele ostenta as suas luvas, o seu calção e meia, o seu sapato de entrada baixa, a sua opa de seda, o seu donaire, a sua elegância, a sua nativa distinção, fidalgo de nascença». (1)

Ausente, embora por motivos muito diferentes, pois era o bispo missionário da então diocese de Angola e Congo, D. João Evangelista da Lima Vidal, nas suas crónicas para o semanário aveirense «Vitalidade», depois reunidas em volume, releva as procissões da cidade natal, com segura retentiva e finíssima sensibilidade de crente, no seu tão pessoal e belo estilo, os mesmos predicados. Trasladamos alguns frisantes períodos dessa evocação, a que a distância também confere dourados tons superlativantes:

 

«Quem viu uma procissão em Aveiro não viu decência maior em parte nenhuma.

Aqueles homens da beira-mar andavam ontem na sua faina, nas campanhas de S. Jacinto ou da Costa-Nova-do-Prado, dentro dos grandes barcos de proa esguia, a remar, a deitar as redes, ou, à pancada à água, a dirigir as manobras do saco; de ceroulas arregaçadas, de peito ao léu, cheios de escamas, gritando a todo o pulmão. E hoje, ali vão eles, irrepreensivelmente bem postos, de fato preto, de calçado a luzir, de gravata branca e de luvas brancas, de opa de seda com cordão e borlas de ouro!

Quem há como a Sra. Marquinhas Carvalho para compor um anjinho?! Aquelas cabeças encaracoladas, aureoladas e floridas, são na realidade as cabeças dos serafins que Murillo fazia brotar das nuvens que emolduravam as suas Virgens; aquele ouro, distribuído com sobriedade e com arte, está infinitamente longe de ser como noutras partes, a exposição ambulante de algum ourives de feira; e os sapatinhos de cetim branco amoldam-se tão perfeitamente ao formato dos pequenos pés que os calçam, que por um lado não fazem a menor ruga, e por outro não estorvam o menor movimento, a menor contracção».

 

E o prelado, que nunca deixou de cultivar os seus primorosos dotes literários, e que tivera ocasião de estabelecer confrontos na própria Itália, prossegue a sua expressiva rememoração:

«Os andores, a maior parte das vezes, são verdadeiros encantos de ornato: nem uma coisa a mais, nem uma coisa a menos; e cada coisa no seu lugar próprio!

Os pendões bordados e as cruzes de prata, a sequência grave das irmandades, o brilho das vestes litúrgicas, a custódia debaixo do pálio, a «música-nova» ou a «música-velha» a bulir-nos na alma, o nosso esplêndido povo pelas janelas e pelas ruas, tudo se apresenta tão bem, que digam-me se eu não tenho razão em repetir o que escrevi ao princípio: quem viu uma procissão em Aveiro não viu decência maior em parte nenhuma.» (2)

 

Coincidem, como é natural, os depoimentos dos dois insignes aveirenses, de tão distintos temperamentos / 41 / e inclinações doutrinários. E ainda hoje, caldeado com gente recém-chegado o crescente população citadino, declinantes muitos dos característicos e predilecções que lhe eram peculiares, os cortejos religiosos aveirenses se avantajam no cotejo com os de quaisquer outras localidades.

O número das que se realizam, ao longo do ano, decresceu consideravelmente. Sem a pretensão de uma enumeração exaustiva, recordaremos as que deixaram de organizar-se e a que encontramos referência numa rebusca um tanto fugaz.

Mencionaremos a procissão de Corpus Christi que continua a sair, mas tomou uma feição muito diferente nos últimos decénios, por ela iniciando estes apontamentos, e, passageiramente, a de domingo de Ramos, para aludir também a uma alteração, que data, seguramente, de há mais de século e meio.

Até ao primeiro terço do século passado, como é sabido, (3) os componentes da edilidade aveirense ainda tinham obrigação de acompanhar as seguintes procissões: a de S. Sebastião, a 20 de Janeiro; dos Três dias das Ladainhas de Maio; de Santa Joana Princesa, a 12 do mesmo mês; de «Corpus Christi»; da Visitação de Nossa Senhora, a 2 de Julho; a do Anjo Custódio, no terceiro domingo de Julho; a de S. Francisco de Borja, no dia 10 de Outubro; a do Patrocínio de Nossa Senhora, no domingo depois do Oitavo de Todos os Santos; e a da Bula do Santo Cruzado, no fim do ano – as quais desde então foram deixando de ser organizadas.

O termo de vereação de 13 de Novembro de 1830, que regista essa obrigação, informa ainda «que todas estas Procisoens (menos a de Santa Joana que he privativa do Convento de Jezus) costumavão antigamente sahir da Igreja de Sam Miguel desta Cidade como Matriz, q então era, acompanhadas pelo Prior, Coadjutor e Conegos da Colegiada da ditta Igreja, e só na de Corpus Christi hia tambem todo o Clero, Comunidades e Irmandades. Mas depois q a esta Cidade chegou o Excelentíssimo Senhor Bispo Gameiro, todas estas procissoens principiarão a sahir da Igreja da Mizericórdia ahonde se estabeleceu a Sede Episcopal...».

Já antes cessara a de Sant'Ana, padroeira do burgo aveirense e em que os vereadores teriam também o dever de incorporar-se, e creio que também a de Santa Isabel, na qual participava igualmente a edilidade.

Este preceito era observado com grande rigor, quer quanto aos membros da vereação, quer mesmo para os funcionários municipais. Por se ter permitido faltar à procissão da Visitação de Nossa Senhora – ao que estava «obrigado por antiquíssimo e inalterável uzo» –, haver reincidido na do Anjo Custódio, e «praticado o mesmo ou maior escandalo» não comparecendo à festa da Padroeira, celebrada na Matriz, foi demitido, em 1807, do cargo de juiz-almotacé, João Lício Barbosa e substituído por Bento José Mendes Guimarães. (4)

Das procissões em que a vereação participava naquela época, apenas subsistem precisamente as duas que se efectuavam a expensas exclusivas do erário municipal e para as quais a Câmara fazia convites às individualidades mais representativas e determinava o itinerário – as de Santa Joana Princesa e a do Corpo de Deus.

Aliás, o Senado do Câmara, conforme faz crer o operoso aveirógrafo Rangel de Quadros, de cujos Apontamentos Históricos principalmente nos socorremos na elaboração destas notas, muito verosimilmente tomaria parte também na procissão da Ressurreição, e, para a acompanharem formularia igualmente convites a pessoas de grada condição. Assim mais cabalmente se justificaria o subsídio anual de oito mil reis que concedia, «desde tempos imemoriais», à irmandade do Santíssimo Sacramento, erecto na Igreja de S. Miguel, com o encargo, em contra partida, de ter sempre em condições de serem utilizadas na referida procissão vinte e quatro brandões.

E, porque vem a talhe de foice, ajuntaremos que a municipalidade mantinha, no século XVIII, um outro compromisso, digamos congénere, que certamente só terá cessado com a extinção das ordens religiosos.

Na matriz de S. Miguel, no decurso de cada ano, pregavam-se, em regra, uns quarenta sermões. Não importa aqui mencioná-los todos. Referiremos apenas os que seguem:

 

«Todas as domingas da Quaresma, e Advento, Festas Pascais, Padroeiro da Igr.a. Padroeira da Cid.e, que he Santa Ana, S. Estêvão, S. Lourenço e dia de todos os Stos satisfeitos pela Camera com a esmola de quarenta mil reis aos Religiozos de Sancto António.» (5)

 

A informação que sobre o assunto presta Rangel de Quadros de que o subsídio da Câmara Municipal se destinava a missas pregadas por um frade daquele convento local nas tardes de todas as sextas-feiras da Quaresma, pecará pois por defeito, já que Frei Félix Mendes Ramos, beneficiado coadjutor e vigário encomendado da própria igreja matriz aveirense, autor do trecho atrás transcrito, pelas suas funções e pelo conhecimento directo do caso, nos dá inteira garantia de autenticidade.

 

«CORPUS CHRISTI»

A procissão do «Corpus Christi» continua a realizar-se. Tomou, porém, como atrás dissemos, um aspecto tão diferente do de antigamente que se nos afigura oportuno mencionar as suas característicos passadas, incluindo-a na notícia consagrada às extintas.

/ 42 / Nos tempos de hoje tomou a feição de um pomposo mas estrito préstito eucarístico, em que todo o objecto do culto é o corpo místico de Cristo. Até à primeira década do século corrente incluía as imagens de S. Jorge e S. Cristóvão, e, em tempos mais recuados, as bandeiras das corporações locais de artes e ofícios e figurações mais ou menos pagãs e destoantes da dignidade de um tão solene cortejo religioso.

O costume de incorporar S. Jorge, a cavalo, nesta procissão, remonta aos fins do século XIV, pelo menos em Lisboa. Segundo lemos, «este santo foi conhecido em Portugal por via dos Ingleses, no reinado de D. Fernando, que se aliou com o Duque de Lencastre, segundo filho de Eduardo III da Inglaterra, e pretendente ao trono castelhano. (6) E, se os vencedores de Aljubarrota foram aguardados, à sua festiva chegada a Lisboa, pela imagem do patrono das nossas glórias bélicas, levada em procissão, e Nun'Álvares fez erigir no campo da triunfante batalha uma capela da sua invocação, «associou-se logo o Santo à procissão de «Corpus Christi», no dizer do mesmo autor.


A imagem de S. Jorge que figurava na procissão de «Corpus Christi».

Salienta, aliás, a solenidade que atingiram esses actos religiosos, «na falta de melhor compreensão litúrgica, absorvidos no seu objectivo pelo cerimonial do Santo inglês, pelo que, se chamavam as «procissões de S. Jorge», na forma popular. (7)

No redor de Aveiro, a gente da região ribeirinha chegou a preterir na designação corrente, e, porventura, na devoção, o santo tutelar dos nossos exércitos, a favor de S. Cristóvão, esse bom e imenso gigante que Eça de Queirós descreve como uma torre que marchava. Chamavam-lhe o «santo grande» ou crismavam-no ainda em termos mais irreverentes. Sob o folgado manto da imagem, conduziu-a, por largos anos, um mesmo homem, de avantajada estatura, invulgarmente possante, e de bigodaça farta e viril. Por um orifício-respiradouro do cinturão que cingia as vestes amplas, surdiam, por vezes, intempestivos, alguns dos ornamentos capilares do transportador do santo descomunal, trazendo sugestões menos decorosas ao espírito malicioso dos assistentes. Daí o apodo atribuído, por essa circunstância, ao bom gigante, e que, entre frouxos de riso, se dizia à boca pequena, para não ferir susceptibilidades mais melindrosas.


S. Cristóvão, o «Santo Grande». (Aguarela de Alberto Sousa).

Em Lisboa, Coimbra e Ovar, entre outras localidades, competia aos barqueiros apresentar um S. Cristóvão muito grande. Terra recortada de canais de intenso tráfego fluvial, Aveiro, provavelmente, cometeria esse encargo aos mercanteis e outros profissionais da navegação lagunar. A imagem, quaisquer que tivessem sido os primitivos proprietários ou responsáveis – nesses longínquos tempos em que nem poderia sonhar-se-Ihe o patrocínio celeste dos automobilistas – veio a permanecer na igreja de S. Miguel, junto ao quarto altar do lado do Evangelho, que era dedicado a S. Sebastião. Só após a extinção da freguesia daquele nome, foi transferida para S. Domingos, quando, em 1835, este templo se tornou sede da paróquia citadina de Nossa Senhora da Glória.

A municipalidade, movida decerto pelo facto de a procissão ser feita a suas expensas, teria reivindicado a propriedade da imagem, em 1867. Por falta de segura convicção desse direito ou por desinteresse cremos que desistiu desse propósito. Refere-se ao facto uma carta do então vigário geral da diocese – o futuro e virtuoso bispo de Évora, D. José António Pereira Bilhano –, que adiante transcrevemos.

A imagem a que nos vimos referindo foi banida da soleníssima procissão, pelo menos em dois anos. O vigário geral substituto, em exercício, no ano de 1879, Dr. Manuel Baptista Cunha – que viria a ter as dignidades do arcebispo de Metilene e de Braga – em ofício ao presidente do município, com data de 6 de Junho, faz notar que a incorporação da agigantada figura de S. Cristóvão no afamado cortejo litúrgico «embora fosse noutro tempo muito edificante, não excita hoje a devoção dos fiéis, nem é próprio (tal uso) da solenidade e decência daquele acto religioso», e comunica / 43 / à referida autarquia que decidira «não permitir que a dita imagem seja de ora em diante conduzida na procissão, sem contudo obstar a que ela fique exposta à veneração pública, na igreja de Nossa Senhora da Glória, como nos anos anteriores se tem praticado». (8) Estava, porém, muito enraizado o costume e devem ter-se reiterado as instâncias junto das autoridades eclesiásticas para consentirem no reatamento da tradição, tanto mais que o S. Cristóvão atraía à cidade avultado número de devotos. Houve, assim, uma solução de continuidade de dois anos apenas.

Catorze anos mais tarde, um periódico aveirense, (9) a propósito da festividade do Corpo de Deus, realça essa costumeira e extensa devoção: «Por isso, muitas pessoas deste concelho e dos de Ílhavo, Vagos, Ovar e Estarreja costumam vir aqui no dia de «Corpus Christi», trazer ao «Santo Grande» broas, regueifas, toucinho e outras dádivas, que no dia seguinte são distribuídas pelos pobres, levando também as oferentes parte desses objectos, pois entendem que tais comestíveis, depois de tocados na imagem de S. Cristóvão, são um grande remédio para o fastio».

A estas oferendas, que ainda hoje se efectuam, embora praticamente limitadas à broa, açucarada e com uma pitadita de erva-doce, na actual Sé onde permanece a corpulenta imagem, se refere a carta do Dr. José António Pereira Bilhano, a que já atrás aludimos, e na qual responde à sugestão do vice-presidente do município para a transferência da mencionada imagem da igreja paroquial – onde, afinal ainda se encontra – para a Catedral de então, no extinto e recentemente demolido Recolhimento de S. Bernardino.

É do seguinte teor esse documento:

 

IIm.º e Exm.º Snr.

Cumpre-me responder ao officio de V. Ex.a que tenho a honra de receber com data d'hontem:

Que não posso concordar, nem annuir a que a imagem de S. Christovão seja conduzida para o Templo da Sé para ali ser revestida, e ter lugar a oblação do pão, que no dia de Corpus Christi lhe fazem os fiéis; porque, alem de dever evitar naquelle templo os inconvenientes que a IIIm.ª Camara Municipal deste Concelho julga que se dam na Igreja Parochial, onde a imagem está colocada, e se expõe à veneração do povo no dia daquella solenidade por ocasião das ditas oblações, e a perturbação, que esses inconvenientes cauzariam à celebração dos actos religiosos, que no dia de Corpus Christi se praticam na Catedral – consta-me que é costume antiquíssimo fazerem-se as ditas offertas ao Santo na Igreja parochial da Freguesia. e é ao proprio Parocho, a quem pertence superintender sobre a reverência, acatamento e respeito que deve haver na sua igreja naquelle, e nos outros actos que ali se praticam.

Se a IIIm.ª Camara Municipal entende que tem direito à imagem de S. Christovão, e a regular a distribuição das offertas a ella feitas no dia da festividade de Corpus Christi compete-lhe disputar esse direito immediatamente com o Parocho.

Deus guarde a V. Ex,a – Aveiro 19 de Junho de 1867.

IIIm.º e Ex.º Sr. Vice Presidente da Camara

Municipal deste Concelho

O Vigário Geral

José António Pereira Bilhano

 

A procissão de Corpus Christi, como nas demais localidades, e particularmente em Lisboa, onde tomava proporções e magnificência excepcionais, era acompanhada, antigamente, como já assinalámos, por uma figuração extravagante e burlesca, buliçosa e variegada, que constituía um elemento de grata recreação do público da época, mas apesar do simbolismo de alguns dos elementos incluídos no cortejo, não deixava de representar uma degradação do acto litúrgico em que se integrava.

Uma das figuras era a de um dragão. Aludiria a uma lenda, com larga representação iconográfica, que / 44 / atribuía a S. Jorge o memorável feito de haver matado um desses fabulosos monstros, que acossava uma qualquer cidade da Líbia.

A municipalidade aveirense de 1728 reconheceu, em reunião revestida das praxes e consultas usuais para as deliberações consideradas de significado invulgar, a conveniência de proceder a uma decantação da festividade, abolindo as carnavalescas fantochadas que precediam o préstito. Transcrevemos, a seguir, integralmente, a acta de reunião camarária que decidiu eliminá-las na própria indisciplina da ortografia de escrivão municipal.

 

Termo de vereaçam de 13 de Mayo de 1728

«Aos treze dias do mes de Mayo de mil Sete Sentos e vinte outo anos nesta nobre e notavel villa de Aveyro e na Caza da Camara della donde estavam em acto de vereacam o Doutor Juíz de fora e os vereadores Luis pinheiro de morais e maris e Diogo Luis da Silva Mendes e Luis Pinheiro e procurador da Camara e ahi praticarão o bem e prol a comum deferindo a Requerimentos e despachando a peticois de que mandaram fazer este termo.

Logo foy perposto que na porSição do Corpo de Deos que Se Costuma fazer nesta villa todos os annos ha por costume antigo hirem nella huns festejos e danças tam indecorosas e Rediculas que So Servem de perturbar a devocam dos fieis quando aquele acto deve ser Selebrado com toda a veneracam a elle devida e que para se ivitarem Semelhantes uzos ou abuzos de tais antigualhas que Se chamacem as peSoas principais desta villa a esta Camara para darem Seo parecer nesse particular e Sendo chamado a mayor parte da nobreza por todos foy ineformemente dito que lhes parecia munto justo e aSertado que Se nem conSentice que na porcicam do Corpo de Deos que se há de fazer este anno na Igreja matris desta villa foce as danças e figuras costumadas como heram pellas Serpe e drago cavalinhos, fuscas, jucalheiras mouriscas e Seganas e todas as mais dancas Costumadas por Ser tudo couza munto emdecente e jocoza que diverte a devocam dos catolicos que a experiencia tinha mostrado que nas principais Sidades e villas deste Reino se avia impedido na dita porcicam semelhante uzo e Redecularia e que lhes parecia munto louvavel que este Senado empedice os ditos festins dancas e mais figuras nam So este anno mas que se determinacem para acordar para os mais anno e que os ofeciais e mais peSoas que heram obrigadas a dar os ditos pellas dancas e mais festins ficacem obrigados a cõcorrer com outras couzas decentes para mayor culto de Deos e aceyo da porcicam para Se fazer com mavor solenidade e que este Senado podia Repetir as tais couzas Como milhor lhe parecece a vista do que acordaram, digo, lhe parecece que este Senado poderia fazer reforma dos festins e dancas como milhor lhe parecece do que fiz este termo que aSsignaram. E eu Andre Botelho deça Telles escrivão da Câmara o escrevi».

 

O costume antigo, como se verificará, parece ter sido cada freguesia fazer a sua procissão do Corpo de Deus, embora as três demais se não revestissem do brilho e da grandiosidade da que era organizada na matriz. Tomariam, essas, talvez, a feição eucarística que hoje tem essa função religiosa, pois não encontramos notícia de que nelas se incorporassem imagens, como sucedia na saída de S. Miguel, e percorriam um itinerário restrito, pelas imediações do templo respectivo.

Rangel de Quadros, com efeito, menciona uma reunião conjunta das irmandades do Santíssimo Sacramento das freguesias da Vera Cruz e de Nossa Senhora da Apresentação, em 24 de Agosto de 1710. Aí acordaram que «ambas iriam às procissões de Corpus Christi das mesmas freguesias», além de tomarem outros mútuos compromissos.

Mais tarde, em Maio de 1871, a irmandade do Santíssimo Sacramento da freguesia do Espírito Santo enviou uma carta à sua afim de S. Miguel, notando que as confrarias congéneres das outras duas paróquias citadinas «viviam em tão boas relações, que era constante aquela civilidade, união e harmonia com que se davam recíproco amor e acompanhavam as funções públicas, que, anualmente, se costumavam fazer em ambas as igrejas

Idêntico procedimento propunham à arqui-confraria da matriz, que deu a sua anuência à sugestão, desde que a proponente tomasse parte também nas festas da igreja de S. Miguel, particularmente nas do Corpo de Deus e de Nossa Senhora da Graça.

Entretanto a colaboração deve ter-se estendido às quatro freguesias da cidade. Somos levados a essa suposição por um incidente registado em 1800.

No dia 25 de Junho desse ano, a irmandade do Santíssimo Sacramento da freguesia do Espírito Santo reuniu em massa, com a presença do pároco encomendado e sob a presidência do Juiz, Manuel Simões Maio, exprobando uma insólita atitude da confraria da freguesia da Apresentação, com a qual resolveu cortar relações.

No termo lavrado após essa magna reunião relatava-se que, havendo a aludida confraria «convidado esta irmandade para tomar parte na sua procissão de «Corpus Christi», no dia do Coração de Jesus, esta não só acedeu e satisfez àquele convite, mas também emprestou alfaias e paramentos para aquela festividade».

Esperava, naturalmente, reciprocidade de atenções. Quando, porém, no segundo domingo de Julho – data em que promovia, a seu turno, a procissão de «Corpus Christi», lá no templo de Cimo de Vila – se dirigiam / 45 / os seus mordomos, cumprindo as regras pragmáticas das relações entre as corporações desta natureza, à igreja de Nossa Senhora da Apresentação «para acompanharem os seus convidados para a do Espírito Santo, e para eles aqui se incorporarem no respectivo préstito, acharam fechadas as portas daquele templo». Para maior espanto e mais grave vexame, o que mostrava premeditação revoltante, nem viv'alma toparam, que desse uma explicação. Redobrado motivo para se sentirem gravemente afrontados com essa grosseria era ainda «não constar que se houvesse praticado um facto como este desde que em Aveiro existiam as quatro freguesias».


Aspecto da antiga procissão de «Corpus Christi».

O desentendimento, originado provavelmente por qualquer prurido de precedências não respeitadas, veio a sanar-se dez anos mais tarde. Congraçadas as duas confrarias, em 29 de Julho de 1810, assinado um termo de reconciliação, já «cagaréus» e «ceboleiros», em muitos outros ensejos desavindos, fraternalmente tomaram parte na procissão de «Corpus Christi» de Nossa Senhora da Apresentação.

Com a vinda para Aveiro de um regimento de cavalaria, a procissão ganhou renovado fausto. No ano de 1893, para apenas nos servirmos de um relato da imprensa da época, (10) a imagem de S. Jorge, a cavalo, como a regra impunha, era acompanhado pelo pajem habitual, «precedida por alguns cavalos ornados com fitas e talizes» e seguida por um numeroso contingente daquela arma.

Se as irmandades – a quase totalidade das existentes na cidade e quantas era habitual participarem nesse acto religioso – apresentaram largas e aprimoradas representações no desfile processional, outro tanto não se verificou, se exceptuarmos a Câmara, que se fazia acompanhar do seu estandarte, com a generalidade das «autoridades e funcionários, que por lei tinham obrigação de o acompanhar, mas não quiseram dar-se ao incómodo de o fazer». Os tempos agora eram outros e não se compadeceriam com os rigores que apontamos em referência a 1807.

A título de curiosidade, lembraremos que já nesse ano, uma das duas bandas que tomaram parte na procissão foi a do Asilo-Escola – instituição que agora, sob a denominação recente de Internato Distrital, se encontra a cargo da Junta Distrital de Aveiro – mas que a orquestra dessa casa de assistência colaborou pela primeira vez numa festa, precisamente na do Corpo de Deus, na Sé de então, passados dois anos, a 13 de Junho de 1895. Nessa data, e na procissão, estrearam também os internados os seus fardamentos.

Para rematar estas notas sobre a procissão de «Corpus Christi», anotaremos passageiramente que a afluência de forasteiros, nessa altura e nos anos anteriores e subsequentes, era muito avultada, e que o povo da beira-marinha, com descantes e danças, imprimia à cidade vivíssima animação. (11)

 

S. SEBASTIÃO

Como atrás ficou apontado, em 20 de Janeiro, realizava-se a festa em honra de S. Sebastião, com a presença obrigatória da edilidade. E, como igualmente já referimos, na velha igreja de S. Miguel era dedicado ao venerado mártir o quarto altar do lado do Evangelho, a que, aliás, a Câmara chamava seu. (12) Aí existia uma relíquia do mesmo santo, guardada em primoroso cofre que tinha três chaves. conservadas na posse, respectivamente, do pároco da igreja, do juiz de fora e do procurador da cidade.

Essa relíquia, a que com tanto apego dirigiam as suas preces os crentes da vila, e depois da cidade, nas ocasiões em que doenças contagiosas dizimavam a população, haveria sido uma oferta feita à matriz aveirense, segundo uma tradição antiquíssima e imprecisa, por D. João III ou D. Sebastião. Rangel de Quadros / 46 / opina, com lógica verosimilhança, que se a generosa dádiva fora de um daqueles monarcas, se deveria atribuir ao primeiro, pois durante o seu reinado, em 1524, sofrera Aveiro, em proporções flageladoras, os efeitos da peste que grassou pelo país. Aliás, a identidade onomástica, na incerteza. não deixaria de sugerir um gesto de magnânima simpatia do segundo.

Apenas nesse dia a preciosa relíquia, com a intervenção indispensável dos três claviculários, era retirada do altar para receber as demonstrações de veneração dos fiéis. Tanto dentro do templo como ao longo do itinerário do préstito se repetiam as preces, com que, nos velhos tempos em que se não dispunha dos meios profiláticos e terapêuticos da nossa era dos antibióticos e quejandos inimigos dos contágios, nas horas lancinantes das pestenenças mortíferas, a assolada população local impetrava a intercessão do Mártir.


Imagem de S. Miguel, que pertenceu à igreja da matriz da mesma
invocação e hoje se encontra na igreja paroquial da Vera Cruz.

No ano de 1857, já demolida há mais de dois decénios, a igreja de S. Miguel, de onde, como vimos, saía esta procissão, os devotos de S. Sebastião resolveram fazê-la ressurgir. A festividade realizou-se na capela de S. João Baptista – que era situada no Rossio e veio a ser demolida em 1911. Pretendiam, assim, «dar um testemunho público da sua devoção para com aquele glorioso Mártir, cuja protecção invocaram nos calamitosos dias em que nesta Cidade grassou a epidemia da cólera-morbus».

Em nome da comissão promotora, o cirurgião Manuel Martins de Almeida Coimbra convidou a Câmara Municipal a assistir às cerimónias, de acordo com o «costume mui antigo e sempre usado e mandado observar nestes Reinos por pragmática do Senhor Rei D. Sebastião». E não só esperava a presença da vereação em cumprimento dessa determinação régia, mas também, digamos, por uma obrigação moral. Compareceria, e esse facto seria ainda mais imperativo, «no desempenho dos votos dos habitantes deste Município (que a IIm.ª Câmara representa) os quais naqueles dias de luto e aflição pronunciaram o nome daquele invicto Mártir como seu protector para com Deus, a fim de este Divino Senhor fazer cessar aquele flagelo».

 

S. MIGUEL

O orago da igreja matricial tinha, a 29 de Setembro, a sua festa anual. Revestia-se da maior pompa, como é compreensível, e já na véspera havia vistosa iluminação, tocava a música – porventura o modesto conjunto de «gaiteiros», porque não se dispunha, nessa época, de melhor – e queimava-se fogo de artifício.

No dia próprio, além das cerimónias de culto interno, em que decerto se capricharia, uma procissão, cuidada com o maior zelo, percorria as principais ruas, engalanadas para a circunstância.

Os padres da Colegiada tinham obrigação de assistir à festa do patrono do templo sem receber qualquer remuneração. Era um dever inerente à função – uma inalienável homenagem a S. Miguel.

 

ESPÍRITO SANTO

Na igreja paroquial do Espírito Santo existia uma confraria dessa mesma invocação, porventura anterior à criação quinhentista da freguesia, uma vez que o templo. embora até então de mais reduzidas proporções, fora erguido anteriormente.

A festividade de maior realce que neste se realizava era, verosimilmente, a do próprio Espírito Santo. A luzida festa constava de missa e exposição solene, sermão, de manhã e à tarde. e procissão, que estendia o itinerário  / 47 / até a algumas das principais ruas da contígua freguesia de S. Miguel.

No pomposo cortejo participavam não só os mordomos desta irmandade, mas também os irmãos das confrarias desta paróquia e da matriz de S. Miguel, e ainda os monges dominicanos, cujo convento se situava na área da freguesia e recebia, para esse efeito, um donativo de 1 200 reis.

Numa charola seguia o busto do Espírito Santo, conduzido, em regra, «por indivíduos que não eram irmãos, mas a quem, nessa ocasião e para esse fim, era permitido, e até obrigatório, o uso de capas, que hoje se chamam opas».

A procissão era acompanhada por «gaiteiros», que também tocavam na noite do sábado anterior, no adro da igreja, onde se acendiam fogueiras e havia iluminações. A remuneração atribuída ao agrupamento musical por participar nas duas funções, até aos fins do primeiro terço do século XVIII, reduzia-se a uns magros 1 400 reis.

 

NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO

Havia na igreja de Nossa Senhora da Apresentação uma confraria desta invocação e que era a de maior importância depois da do Santíssimo Sacramento. A devoção pela padroeira aliás, remontaria a tempos anteriores à edificação da igreja paroquial, pois já na primitiva sede da freguesia, a capela de S. Gonçalo – ou de S. Gonçalinho, como é de uso local chamar-se-lhe – vinha o costume de celebrar com solenidade e luzimento a festividade em sua honra.

Rangel de Quadros, perdidos já os livros mais antigos da corporação, só lhe topou referência a partir de 1667, ano em que Maria Gomes de Reales e Helena da Cruz Geralda, donzelas, filhas de Silvestre Gomes, naturais da freguesia e nela moradoras, testavam os bens, depois da morte de uma irmã, Isabel Mendes Reales e do marido desta, o licenciado António Leitão, que ficavam usufrutuários, a esta confraria.

Esta subsistiu largo tempo à extinção da freguesia e, em 7 de Novembro de 1872, o insigne aveirense Manuel José Mendes Leite, na altura governador civil do distrito, aprovou-lhe actualizados estatutos.

A festividade anual de 2 de Fevereiro, a Nossa Senhora da Apresentação, ou das Candeias, até à entrada do século corrente, consistia na distribuição de velas aos sacerdotes e membros da confraria, e procissão, no adro da igreja, «durante a qual se cantava o versículo «Tu es lumen», a preceder a missa; e, à tarde, sermão, Ladainha e Magnificat».

Anteriormente à fusão das freguesias de Nossa Senhora da Apresentação e da Vera Cruz, numa só com esta denominação, efectuava-se uma procissão, com a participação não só da respectiva irmandade, mas também das do Santíssimo Sacramento de ambas aquelas paróquias.

O itinerário compreendia as principais ruas desta zona urbana e estendia-se até ao cruzeiro da igreja da Vera-Cruz, onde dava volta.

O cruzeiro elevava-se de uma escadaria rectangular, com três degraus em cada lado, entre as actuais ruas de Manuel Firmino e do Gravito e perdurou até 1873, altura em que. no seu lugar, veio a ser erguido um chafariz – demolido, a seu turno, há cerca de três lustros, depois do estabelecimento da rede de fornecimento domiciliário de água.

A imagem de Nossa Senhora das Candeias, que figurava na procissão, foi colocada, em Março de 1862, numa peanha do lado do Evangelho da capela mor da igreja de Vera-Cruz, em substituição de outra imagem que dali fora retirada, alguns anos antes, por ser considerada de mesquinhas proporções.

A transferência para aquele templo justificava-se não só com a extinção da freguesia, mas principalmente com o facto – aliás dela decorrente de o aludido cortejo ter persistido com regularidade apenas até 1853. isto é, apenas dezoito anos para além da fusão das duas paróquias.

Depois desta data somente voltou a realizar-se em 1859, por diligência de um fervoroso devoto de Nossa Senhora da Apresentação, chamado Domingos da Silva Couto.

 

BULA DE SANTA CRUZADA

Por um convite subscrito pelo vigário-geral, Dr. José António Pereira Bilhano, verificamos que a publicação da Bula de Santa Cruzada foi celebrada ainda no domingo 16 de Dezembro de 1960.

A procissão saiu pelas 2 horas da tarde, da igreja paroquial de Nossa Senhora da Glória e recolheu à Sé, onde foi pronunciado o competente sermão.

As solenidades, como era tradicional, esteve presente a edilidade.

 

NOSSA SENHORA DAS AREIAS

Não só se lhe perdeu o costume, mas quase de todo caiu no olvido a procissão de tão acentuado carácter regional, que, ao longo da ria, com a alacridade resplendorosa da luz outonal, da garridice das opas e bandeiras e das jubilosas estridências das filarmónicas, se efectuava em honra de Nossa Senhora das Areias. Saía, esse préstito singular, do Canal Central – a velha Ribeira da toponímia de antanho –, talvez das primeiras linguetas a seguir à ponte da Praça, pelo menos no último quartel do século passado e. em barcos / 48 / engalanados, dirigia-se a S. Jacinto, com múltiplos sinais de alegria e veneração.

A modesta praia piscatória, que apenas as componhas animavam por alturas da safra da sardinha. e a que Manuel Firmino introduziu os primeiros aspectos progressivos, estabelecendo um meio de transporte sobre carris para o peixe da sua empresa, no inverno era uma povoação pouco mais que erma. Marques Gomes escreveu mesmo. algures, que, pelos meados de oitocentos, «a praia era habitada por pescadores da nossa beira-mar (e por essa designação se deverá entender o bairro aveirense que ainda hoje assim denominados) nos meses de pesca, mas nos restantes apenas por um guarda, a quem o Estado pagava o salário de 120 réis diários».


Nossa Senhora das Areias

A capela daquela invocação neste caso com inteira propriedade etimológica muito ajustadamente designada como ermida , no meio do areal quase deserto, não oferecia, durante a quadra invernosa, condições de segurança para evitar a entrada de qualquer larapiozito afoito e menos respeitoso na solitária edificação sagrada.

Já no século XVI se tomavam precauções para a eventualidade de algum furto sacrílego. Em 5 de Julho de 1549, com efeito, compareceu perante o provedor da então vila de Esgueira, Dr. Brás Cardoso, o padre Francisco de Pinho, procurador de Fernão Barbosa, e apresentou-lhe «um frontal de carrim em folha branca e uma saia para a imagem de Nossa Senhora, (das Areias) do mesmo carrim», e ainda uns picheis de estanho e uma camisa de algodão, branca, que foram confiados à guarda do escudeiro André Pires, «para que o mandassem pôr na dita ermida às festas para serem de certo onde se conservassem; doutra maneira se poderiam furtar». (13)

Os referidos objectos foram quatro anos mais tarde entregues pelo seu depositário, André Pires, na presença do mencionado provedor, para o mesmo fim e com idênticas obrigações, aos mestres pilotos Gomes Afonso e Mateus Gomes, ambos moradores em Aveiro, que tomavam também a incumbência de mandar beneficiar a imagem e reparar a capela. Ficou por fiador dos dois mareantes aveirenses o escudeiro fidalgo Simão Varela, residente em Esgueira.

Vem talvez a propósito observar que Fernão Barbosa, com as mais seguras probabilidades, era o filho do famoso humanista aveirense Aires Barbosa, o «mestre grego», aquele a quem o pai insigne e circunspecto considerava «muito mancebo em seu viver», e que, porventura, seria de temperamento pouco propenso a aceitar cuidados contínuos. A fortalecer esta conjectura vem a circunstância de André Pires figurar como testemunha no instrumento de aprovação do testamento do notável professor da Universidade de Salamanca e, depois. perceptor do cardeal infante D. Afonso, irmão de D. João III, e de Simão Varela aparecer quer no instrumento de declaração do mesmo testamento, quer no termo da respectiva abertura, no dia do falecimento do Mestre Aires Barbosa, ocorrido a 20 de Janeiro de 1540. (14)

Permaneciam as imagens havidas como de menor valia e que, assim, não despertavam a falta de escrúpulos e a cupidez de algum rapinante fortuito. Porque, segundo parece, nem nas caixas das esmolas lobrigaria sequer um real. Moeda que lá caísse pouco demorava.

Ao guarda atento logo lhe dava o faro ao cofre ou a alguma pratasita miúda, ou qualquer sexto sentido, e pouco depois estava a disputá-la ao jogo com a imagem do pobre S. Jacinto, muda e queda, parceira inocente de uma partida do trinta e um. O trapaceiro guarda, coonestando o vício e a cobiça com o ditado popular segundo o qual quem cala consente, inquiria da imagem se desejava que lhe virasse mais uma carta. E, ante o seu silêncio, como se o próprio santo, indiferente à velhacaria, lha houvesse rogado, logo lha dava, até rebentar e, assim, em conformidade com as lícitas regras, retorcidas, ficar despojado do último ceitil das piedosas oblatas.

Mantinham-se, pois, na ermida, ao longo de todo o ano, as imagens mais toscas ou mais despidas de adornos valiosos. A de Nossa Senhora das Areias, / 49 / porém, só no período da festa anual se expunha na capela, e logo se trasladava para Aveiro, em melhor recato. Durante algumas décadas, guardou-a não sabemos a que título, na sua casa da Praça do Pão, situada onde hoje se encontra o Arcada Hotel – o comerciante Francisco Elias Gamelas, um homem respeitado, de imponente figura, que nesse encargo punha grande desvelo.

Essa imagem, na data da festividade anual da praia de S. Jacinto era para ali transportada, num espectacular cortejo fluvial, que, há cerca de um quarto de século, se tentou restabelecer, mas não passou além de duas inexpressivas tentativas de ressurgimento de uma tradição sem dúvida merecedora de revivescer.

A própria romaria, aliás, teve soluções de continuidade, mesmo na centúria passada. Foi restabelecida, depois de uma longa interrupção, no ano de 1860. Um cronista da época, que assinava Júlio Sand (15), refere que mesmo a capela estivera relegada a um abandono que lhe causou ruinosos danos. E acrescentava: «A Senhora das Areias» parecera riscada do catálogo das romarias. Havia só saudades nos que ali haviam passado aquele dia e noite, entre folias e folguedos, sobre aquele solo de areias».

Naquele ano, todavia, mercê da iniciativa e solicitude da Junta de Freguesia da Vera-Cruz e em especial do cirurgião Manuel Martins de Almeida Coimbra – aveirense de que já falámos e a que se não podem negar valor e serviços, mas se não deve esconder a perniciosa e odienta acção, a que a malquerença política não era estranha, contra Luís Gomes de Carvalho, o benemérito engenheiro a quem se ficou devendo a abertura da barra nova – reatou-se a tradição, e com um brilho inatingido até então.

Por uma descrição de um jornal da época (16) se poderá avaliar a beleza de que se revestiu o cortejo religioso pela ria além: «A procissão ia com toda a decência, e em alguns pontos do trânsito, como no acto do embarque, queimaram-se centenas de foguetes, enquanto na ria retumbava o harmonioso eco das orquestras. A gente aglomerada em toda a circunferência do cais; os barcos todos enfeitados e repletos. uns já em curso outros preparando-se para isso; aqui o barco em que ia colocada a imagem, guarnecido de flores e ornatos, logo adiante o dos remeiros, uniformemente vestidos, mais além os ministros da religião e as diferentes irmandades, cada corporação com a sua cruz alçada – tudo isto oferecia um espectáculo atraente e maravilhoso».

E depois de qualificar como verdadeiramente tocante o acto do embarque, o articulista descreve a festividade em S. Jacinto, com particular referência ao sermão do padre José Joaquim de Carvalho e Gois – futuro vigário geral da diocese – e regista a presença de seiscentos a setecentos barcos conjunto hoje praticamente impossível de reunir – numa extensão de cerca de um quilómetro, e uma concorrência de romeiros orçada entre oito e dez mil pessoas.

 

ECCE HOMO

A procissão do Senhor Ecce-Homo era organizada anualmente, em Quinta-Feira Santa, pela Santa Casa da Misericórdia, e perdurou até há pouco mais de um quarto de século.

Os irmãos envergavam opas negras, e, além do andor. com a excelente imagem que se encontra no retábulo do lado do Evangelho e, até fins do século passado, segundo vemos referido, estaria na sala do despacho daquela instituição presentemente a Biblioteca Municipal figurava ainda um painel emblemático da instituição que, nos últimos anos, era conduzido pelo Leandro, um serventuário da Misericórdia, simplório do entendimento, mas extremamente cioso da honra que lhe conferia esse encargo.


O Senhor «Ecce-Homo», da Igreja da Misericórdia.

À escultura, talhada em madeira de alecrim, e sem dúvida de apreciável merecimento artístico, atribuía Marques Gomes uma existência remontante ao século / 50 / XVI. Fazia-se eco da tradição similar de outra que corria sobre uma imagem da mesma natureza existente na matriz de Caminha de que houvesse sido trazida da Inglaterra, quando ali se instituiu o protestantismo como religião oficial.

Acrescenta, todavia, que não é fácil fazer juízo seguro sobre a sua origem, inclinando-se, apesar de todas as dúvidas, a que seja de proveniência italiana. O operoso e erudito escritor aveirense refere que já no século XVII tomava voga a mencionada tradição, afirmação que não documenta, mas infirmaria a opinião de Nogueira Gonçalves, (17) que a qualifica de «pouco comum, impressiva e devocional», mas a considera dos fins de setecentos, do barroco inicial.

Esta imagem impressionante inspirava à gente da cidade uma grande devoção e nem só em Quinta-Feira Santa saía procissionalmente, pois, segundo o mesmo fecundo historiógrafo local, os aveirenses para ela recorriam, quer quando as epidemias ou a míngua resultante de adversos períodos meteorológicos os afligiam, quer nas ocasiões em que sofriam as consequências de algum acontecimento bélico. «Nessas ocasiões a imagem é levada pelas ruas e praças da cidade, e o perigo afasta-se» escreveu Marques Gomes num periódico local.

Anda recordada a circular de D. António José Cordeiro, segundo bispo de Aveiro, de 5 de Agosto de 1808, em que, rejubilando com a expulsão das tropas napoleónicas comandadas por Junot, ordena uma «procissão de penitência «que sairá da nossa Catedral, sendo levada nela a Devotíssima Imagem do Senhor Ecce Homo, que se encaminhará à Igreja do Real Mosteiro de Jesus, aonde se venera o corpo da Bemaventurada Princesa Santa Joana, a quem já em o princípio da nossa consternação havíamos tomado por Medianeira para com o Pai das Misericórdias».


A imagem do Senhor «Ecce-Homo» na procissão de Quinta-Feira Santa.

A essa procissão, a realizar no dia 7, deveriam assistir os párocos com o seu respectivo clero, os prelados dos conventos locais com os seus religiosos, e os fiéis da cidade, que seriam exortados a fazer penitência, jejuns, esmolas, mortificações, e a dirigir a Deus, de todo o seu coração, fervorosas súplicas e orações.

Marques Gomes refere noutro escrito, (18) especificadamente, a procissão que, em 20 de Setembro de 1855, na altura em que Aveiro e o seu redor estavam a sofrer os calamitosos efeitos da cólera-morbus, trouxe à rua a veneranda imagem. «O préstito escreve parecia mais um saimento do que uma procissão».

Relata, nesse ensejo, o facto então verificado, de um aveirense atingido pela peste, Manuel de Pinho Vinagre da Loura, «já em artigos de morte» ter empenhadamente solicitado que a imagem do Senhor Ecce Homo se detivesse alguns momentos junto do tugúrio onde penava. E a narração conclui: «Os levitas entoaram o «Miserere mei Deus», o povo prostrou-se implorando do Altíssimo a vida daquele que com tanta fé confiava na Providência. Caso raro! O homem, só, abandonado da medicina, resistiu ao contágio e ainda hoje, (1875) vive».


Painel com Nossa Senhora da Misericórdia, que se incorporava na
procissão de Quinta-Feira Santa.

Colhe-se ainda no mesmo inesgotável aveirógrafo a informação de que «o rico manto de veludo carmesim que lhe cai dos ombros (à imagem a que vimos aludindo) foi-lhe oferecido pelo negociante Francisco José Ferreira, a 12 de Abril de 1813». Este comerciante local foi o depositário de ouro e prata das igrejas de que Junot, como no resto da país, se apoderou. Teria guardado para si uma boa parte «de um grande número de arrobas de prata que lhe foram entregues» e, cinco anos mais tarde, «mordendo-lhe a consciência, quis aquietá-la dando um manto de veludo bordado a ouro ao Senhor Ecce Homo da Misericórdia». (19)

O itinerário desta procissão, que, nos últimos tempos se estendia até à igreja do Carmo, era de extensão muito reduzida até aos princípios do século XVII. Da igreja da Misericórdia seguia até ao convento de S. Domingos naturalmente pelas ruas Direita e de Nossa Senhora, hoje, respectivamente, dos Combatentes da Grande Guerra e de Santa Joana Princesa e, no regresso, pela rua da Cruz e o Terreiro ou Rossio das Carmelitas integrados uma e outra na agora / 51 / chamada praça do Marquês de Pombal , tomando pela então chamada rua Nova e hoje denominada do Capitão João de Sousa Pizarro e, prosseguia pela de Santa Catarina ou do Açougue após a implantação da República com a designação toponímica de rua de Trinta e Um de Janeiro para recolher ao templo de onde saíra.

Em 1618, deu-se a coincidência de, simultaneamente, ser pároco da freguesia da Vera-Cruz e provedor da Santa Casa da Misericórdia frei Gaspar de Couros Camelo, que Rangel de Quadros presumia nascido em Aveiro e na referida rua Nova, e, sem dúvida, para ter sido investido naquele qualificado cargo da instituição beneficente seria, como o mesmo autor aventa, pessoa grada e influente na então vila de Aveiro. Frade professo da Ordem de Avis desde 1600, servira na igreja de S. Miguel como coadjutor, beneficiado e vigário, durante vários anos, e na de Vera-Cruz sucederia ao primeiro reitor desta freguesia, frei António Vaz, a partir de 1604 ou qualquer dos anos imediatos.

Frei Gaspar, reunindo as duas qualidades e delas se valendo, procurou, passe a expressão, chamar a brasa à sua sardinha, e levar esta procissão, a partir do ano referido de 1618, à igreja que paroquiava. Apresentava diversos e convincentes argumentos na justificação do seu desejo. A igreja da Vera-Cruz ou de Santa Cruz, como através dos tempos, também foi designada era então o templo de maior sumptuosidade da vila e estava incluída no percurso de outras das mais importantes procissões anuais, como as de «Corpus Christi», do Santíssimo Sacramento, de Santa Isabel e do Anjo Custódio. Por outro lado, muitas donzelas a que os costumes do tempo vedavam a saída à noite pois era nocturno o impressionante cortejo, a que o bater cavo e cadenciado das matracas acentuava o ambiente de lúgubre dramatismo , e muitos doentes retidos nas suas moradias estavam impedidos de assistir ao desfile religioso. Sucedia mesmo que, dada a exiguidade do itinerário, a procissão não podia tomar grande extensão e, assim, alguns irmãos, quer residentes na vila quer moradores nos subúrbios, se viam constrangidos a nela não participar. E acrescia ainda que a generalidade da população aveirense, cuja devoção pela imagem do Senhor «Ecce Homo», (ou «Senhor da Cana Verde», na designação popular) era, como já notámos, muito fervorosa, manifestava empenho em que o préstito alongasse o percurso até à paroquial da Vera-Cruz.

Na irmandade da Misericórdia nem todos os membros se deixaram vencer pelas ponderosas razões apresentadas pelo provedor que, mesmo não o dizendo, não deixariam de considerar parte suspeita, a pugnar pelos «cagaréus» e a puxar para a Vila Nova, o que sempre fora exclusivo da zona de intra-muros.

Objectivavam, os divergentes, que o alongamento do itinerário aumentava consideravelmente o dispêndio da cera e protelava o recolher da procissão para demasiado tarde – as onze horas (hoje diríamos vinte e três) ou a meia-noite – tornando-a estafante, pois saía ao fim da tarde, pelas seis isto é, segundo o que presentemente está fixado, cerca das actuais dezanove e meia.

Como resultado do estabelecimento de duas intransigentes facções dentro da irmandade, no ano seguinte, quando se deu cumprimento à resolução de levar o préstito até à igreja da Vera-Cruz, registaram-se alguns lamentáveis desacatos.

Os desavindos, não cedendo da sua opinião, levaram o diferendo até à corte então em Madrid, pois se encontrava o país sob o domínio castelhano.

O processo arrastou-se, ao longo dos anos, de estância em estância, protelado com repetidos embargos.

A decisão final, favorável a Frei Gaspar e seus parciais, que assim viram oficializados os seus desejos, veio a ser dada em 21 de Julho de 1627.

 

NOSSA SENHORA DA GRAÇA

Na «Descrição das Igrejas e Capelas da Freguesia de S. Miguel, existentes na segunda metade do século XVIII», redigida por Frei Félix Mendes Ramos, (20) vem registado que «o segundo (altar) colateral do lado da Epístola he dedicado a Nossa S. da Graça, imagem de vulto inteira, e perfeita, colocada em retabolo dourado.». / 52 /

Com esta invocação fora instituída uma confraria, à qual o mesmo documento, que o Sr. Dr. Ferreira Neves, com segurança, considera escrito entre 1760 e 1775, atribuía uma existência trissecular. Não andaria muito afastado da verdade, pois já, em 1 de Março de 1506, o Papa Júlio II concedera cem dias de indulgência aos membros dessa corporação que visitassem o altar de Nossa Senhora da Graça, depois de se haverem confessado e terem comungado, no domingo da Ressurreição e a 25 de Março, 8 de Maio, 25 de Julho e 8 de Setembro. Aliás, refere também Rangel de Quadres que, em 4 de Outubro de 1539, esta confraria deu de aforamento, a António Fernandes, em três vidas, umas casas situadas na rua Direita.

A festa principal desta irmandade, logicamente, consagrava-se a Nossa Senhora da Graça. Tinha, todavia, a obrigação de celebrar, ao longo do ano, ainda as sete seguintes: Dia da Epifania e dias do Santos Inocentes, com o Santíssimo Sacramento exposto até ao meio dia; na dominga infra-octavam de «Corpus Christi», com o Santíssimo exposto todo o dia e procissão; dia de S. Brás; dia de S. José, dirigida e satisfeita por três oficiais carpinteiros, eleitos anualmente: dia de S. Pedro, dirigida pela Irmandade Eclesiástica dos Gloriosos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo; (21) e dia de Santa Luzia.

Os estatutos, elaborados em 1786, (22) prescrevem com todo o rigor as obrigações da irmandade e cuidam todos os pormenores meticulosamente, de modo a permitir a reconstituição bastante minuciosa dessa festividade. Previa-se e acautelava-se com minudência, «para ser evitada toda a confusão, dúvida e excesso».

Celebrava-se, assim, no dia dedicada à Natividade de Nossa Senhora, uma missa cantada «a qual terá no citar presbítero, diácono e subdiácono, paramentados, ministrando-lhes um turiferário e dois ceroferários, compostos de suas sobrepelizes, e no coro cantarão a mesma missa quatro clérigos, de qualquer ordem que sejam, contando que tenham boas vozes e compostas, conforme a arte lhes ensina, e ornados de suas sobrepelizes». Havia sermão e exposição do Santíssimo Sacramento até à tarde, cantava-se o «Terço à Senhora, havendo comodidade, e no fim deste se distribuíam pelos irmãos, de um e de outro sexo, a quem à sorte lhes tocar, duas dúzias de rosários». Seguia-se um sermão e a procissão.

Nesta eram admitidos até vinte padres, além dos que eram portadores da cruz, dos castiçais e dos turíbulos. Dirigia-a um irmão, de zelo e capacidade comprovados, ou, na sua falta. um padre conceituado como perito na ordenação destas funções religiosas. Os sacerdotes a que nos referimos seguiam em duas alas, alinhando pelos ceroferários, que ladeavam o cruciferário. Aos turiferários, cuja posição era junto do Santíssimo, competia ir incensando as ruas do itinerário, que, na época, não deviam primar pela exalação dos olores, mesmo atapetadas de verduras aromáticas.

As opas, porque com toda a probabilidade condiziam com a do juiz, e a cor desta vem referenciada naquele diploma, eram brancas. Por estipulação taxativa, o titular daquele cargo não só empunhava a vara correspondente, mas não podia deixar de apresentar-se com «a distinção que pedia o seu ofício» nem furtar-se ao pagamento do pregador da tarde. pois lhe competia essa despesa por muito antigo costume.

A seis mordomos. em cada ano. cabiam os encargos com os sacerdotes que acompanhavam a procissão e, bem assim, os correspondentes às luminárias, fogueiras e demais manifestações festivas da véspera, à noite.

Acontecia, por vezes, coincidir o dia da procissão com a festa de Nossa Senhora dos Febres (no masculino, como ainda se ouve entre a gente da Beira-Mar). Essa circunstância, com a duplicação das devoções, causaria, em alguma ocasião, insuperáveis dificuldades para a organização, com a costumada pompa, daquele cortejo. Era, então, substituído, por vésperas cantadas, e revestidas de grande solenidade.

José Ferreira da Cunha e Sousa, referindo-se à imagem de Nossa Senhora da Graça existente na Igreja de S. Miguel, informa que foi transferida, após a demolição daquele vetusto templo, para a igreja de S. Domingos, e crismada em Nossa Senhora da Glória, ficando a ser o orago da freguesia. (23)

A seu turno, Fr. Félix Mendes Ramos, já na citada descrição das capelas de S. Miguel, menciona uma imagem da mesma Senhora, de vulto inteiro e perfeita, com corda de prata, a qual, na procissão a que vimos aludindo. era levada em um andor guarnecido de cortinado de matizes com franja e galão novo (24) e, provavelmente, não seria a mesma, mas uma ou outra unicamente destinada à procissão.

 

DOMINGO DE RAMOS

Esta procissão ainda subsiste, embora alterada, quer com os usos, quer com outras circunstâncias. Na freguesia da Glória, nos últimos anos, alongou-se o itinerário: sai da igreja das Carmelitas e dirige-se à Sé. Na da Vera-Cruz, como naquela sucedia até data recente, não vai além do adro do templo paroquial. Há oitenta e um anos, a devoção dos Ramos celebrou-se, não sabemos por que motivo, na igreja da Misericórdia, e ali se organizou a procissão, também apenas nas imediações da igreja. Grande número de crianças «sobraçava enormes feixes de alecrim e outros arbustos – imitando, assim, os filhos de Jerusalém que. para honrarem a entrada de Jesus Cristo na sua cidade despojaram as árvores das suas verduras, e de palmas e ramos de oliveira juncaram o caminho» diz um relato da ocasião. (25)

Reportando-se a uma boa dúzia e meia de anos mais atrás, e digamos, portanto, há um século, Homem Cristo recorda saudoso e emocionadamente, já dobrados os cinquenta, esses dias da sua infância: (26) «Eu começava a semana por ir benzer, no domingo, o meu ramo a S. Domingos. Era a velha igreja da minha freguesia. Minha mãe não dispensava essa cerimónia. Era já certo. Nesse dia vinham as mulheres do campo vender à cidade grandes porções de alecrim. Minha mãe comprava um ramo. Havia no meu quintal, num canto, escondido, canto que já desapareceu nesta mania estúpida de casebres e de muros, um grande liIaseiro. Que dava, sem saudoso exagero de velho, os mais belos lilases, grandes, cheios, que tenho visto em minha vida. Pela Páscoa, já o arbusto, geralmente, estava coberto de flores. Minha mãe ia lá, cortava os mais formosos cachos, juntava-os ao ramo, dava-me um beijo, e mandava-me com aquilo para S. Domingos. E como eu ia radiante! Tenho saudades. São tão raras as puras alegrias que a gente sente na vida!...

E o panfletário agnóstico, por vezes de um anti-clericalismo veemente, prossegue as suas enternecidas reminiscências:

«Ia radiante, ancho, soberbo! Eu não tocava num pires de marmelada. Eu não roubava, jamais, um torrão de açúcar. Eu nunca me demorava, se ia a um recado. Teria remorsos. Eu nunca mentia. Minha mãe admirava e louvava muito aquela rectidão infantil. Mas naquele dia, era mais que um dever humano, era um dever divino. E eu, orgulhoso de o saber cumprir, possuído de uma dupla missão, ia para aquela cerimónia com uma alegria infinita».

A notícia de que já atrás nos socorremos, sobre esta cerimónia tradicional informa que na Idade Média se fazia a procissão ao redor das muralhas. «Os meninos do coro subiam para os muros de defesa e pediam que se abrissem as portas, que tinham sido fechadas; depois a procissão, cantando a Ressurreição de Lázaro e a Morte de Jesus. voltava à igreja».

 

SANTO ANDRÉ

Na demolida igreja da Vera-Cruz fora erecta em data recuada. talvez não muito depois da criação da freguesia, na opinião do investigador aveirense a que especialmente nos vimos arrimando, uma irmandade de Santo André.

Sabe-se que em meados do século XVIII desfrutava de bastante desafogo, mas que foi caindo em progressiva decadência até se extinguir em 1830.

Era corrente, até ao período do seu último declínio, darem-lhe a denominação de Confraria dos Apóstolos Santo André e S. Filipe, de cuja invocação costumeira era o respectivo altar. As imagens respectivas, ambas de pedra, com efeito, ladeavam, colocadas em dois arcos simétricos e menos elevados. O altar do Senhor do Bendito, que se encontrava adjacente ao arco cruzeiro, do lado da Epístola. Na base do altar havia uma lápide ovalada com a seguinte inscrição latina: «Dilexit Andream Dominus adorem Suavitatis».

Até à sua dissolução, a irmandade promovia, a 30 de Novembro, a festividade em honra do patrono, a qual compreendia, além das solenidades do culto interno, uma procissão. Participava também em diversos outros cortejos religiosos, onde conforme anota Rangel de Quadros, «figurava com o seu pendão de seda verde», último peça do espólio dessa confraria que lhe conheceu.

 

SENHOR DO BENDITO

Durante o reinado de D. João V, sofreu Aveiro, mais uma vez, as inclemências de uma peste. Estabeleceu-se, então, quer na freguesia do Espírito Santo, quer na da Vera-Cruz, a devoção do Bendito, que, aliás, parece nada ter de comum com a irmandade que sob a mesma designação ainda persiste na última destas paróquias.

Na primeira, ao sábado, e na segunda, ao domingo, por certo período de tempo, porventura enquanto o flagelo se fez sentir ou enquanto a sua memória estava fresca ou se receava a recidiva epidémica, saíam procissões semanais, com a imagem de Jesus Crucificado. Nelas se incorporavam os membros das irmandades então criadas com esse nome e grande cortejo de povo, entoando compungidamente o «Bendito» e fazendo angustiadas preces pela cessação da calamidade.

A imagem, que figurava na procissão da freguesia da Vera-Cruz, venerava-se num altar do lado da Epístola na respectiva igreja paroquial, e, ao que informo Rangel de Quadros, tinha até 1729, a invocação do Senhor do Terço. Resultava esta denominação de os devotos da paróquia, em determinadas datas, lhe rezarem um «terço de Benditos».

Na freguesia do Espírito Santo, a partir de Maio de 1730, a imagem que se incorporava nestas procissões fora doada por António da Silva Medela. O mesmo laborioso pesquisador do passado aveirense descreve-a como tendo três palmos e meio de altura, ornada com resplendor e coroa de prata e pregada numa cruz de pau, pintada de preto, com nove palmos de comprimento. Já então. há mais de meio século, lhe ignorava o paradeiro.

 

VISITA DO SENHOR AOS ENFERMOS

A concluir estes descoordenados apontamentos, em que a excessiva prolixidade não compensa as flagrantes deficiências e lacunas, referiremos apenas uma procissão, em todos os tempos discreta, e tocante como nenhuma outra das que em nosso tempo podemos apreciar.

Realiza-se ainda hoje, mas como que mais retraída, mais escondida e silenciosa a levar o conforto espiritual / 54 / aos fiéis enfermos e tolhidos no leito. Deixaremos a descrição do aspecto e do significado de que se revestia há uns noventa ou mais anos, ao mesmo livre-pensador Homem Cristo – pois certo é que em Aveiro, crentes ou incréus, todos somos sensíveis às procissões, tão dignas e distintas, tão ordenadas e belas. Ainda que à margem da crença, todos sentimos esta arreigada e tradicional propensão aveirense e dela, de qualquer modo, nos impregnamos.

Remataremos pois, com um rememorativo trecho saudoso do rude polemista, (27) nesse ensejo, como em muitos outros, intérprete de um sentimento colectivo de clara compreensividade e aberta tolerância que é, mesmo no agreste foliculário, visceralmente aveirense, um dos traços do homem de Aveiro:

...«Vinha quarta feira de trevas, que era o dia do Senhor aos entrevados. E eu, ou não fosse de Aveiro, era doido pelas procissões. Não era essa a grande procissão. Mas era uma procissão. Lá estava. E ponho-me às vezes a pensar naquela cerimónia. A unção com que o doente, macerado, emagrecido, osso e pele, quase todo espírito, tanto o corpo desaparecera lambido pelo sofrimento, abria a boca para receber a hóstia consagrada! Depois, a calma que lhe vinha! O desprendimento de tudo! A satisfação íntima! Nem mais dores, nem mais miséria! Nenhum príncipe, por mais rico ou poderoso, o excederia, naquele instante, em felicidade! Não o assustaria o caixão, se estivesse ali aberto! Não lhe causariam horror os vermes, se os visse, prontos, já, a devorarem-no, no fundo da sepultura! Ao contrário, o grande favor celestial seria vir a morte naquele instante! Então, que ele já estava livre de toda a mácula, isento de toda a culpa! Para a sua alma subir, subir, pomba branca resgatada a depositar o ramo de oliveira junto aos pés do Eterno!»

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Homem Cristo, à distância de mais de meio século, abandonada a fé que os anelos e desvelos maternos não conseguiram imbuir-lhe, relembra emocionadamente as tradições de toda a Semana Santa da sua infância, e as suas crenças de então, «tão ingénuas, de uma simplicidade de coração, de uma pureza, de um delicioso estado de alma... que morreu!».

Esse prosador de excepcional comunicabilidade, avesso à rebusca de efeitos literários, espontâneo, como um vulcão ou uma nascente de água, nessas sensibilizadoras páginas de memórias, recorda outras usanças: «Era costume na terra arremessar amêndoas na igreja, sobre as mulheres mais formosas. Angélica Moreira era de uma formosura deslumbrante, uma rainha. (...) Rainha das rainhas, jóia perdida no mundo, a resplandecer com o brilho intenso de sua formosura, da sua graça, da sua elegância, da sua beleza, sobre ela choviam de todos os lados da igreja, como granizo, as amêndoas. E eu comia, enchia as algibeiras, atafuIhava-me, e ainda dava, generoso, aos amigos».

Outro costume caído em desuso reporta-se ao sábado de Aleluia: «E eu lá estava, de campainha na mão, no quintal, à espera dela. Desde alta manhã! Sonhava com ela! A minha alegria, à espera da aleluia, para tocar a campainha! E tocava, tocava, espantando gatos e pássaros, pondo cães a ladrar, galinhas a cacarejar até a minha mãe, coitada, se aborrecer e aparecer na varanda a gritar: Cala-te, homem, que já é demais!».

E outro ainda, para finalizar, também perdido: «A tarde era de azáfama. Era preciso arranjar coisas para juncar a rua, quando o pálio passasse. E eu lá ia para o campo. E como nunca fui mandrião, vinha ajoujado com um grande molho de alecrim, de alfazema, herva doce, rosmaninho e espadana. A minha predilecção era a espadana. E lá ficava a rua juncada dela, a imitar... as palmas do Senhor!».

Um dos preços do progresso, uniformizador, generalizador de benefícios e gostos, é uma óbvia descaracterização das terras e das gentes. Costumes religiosos, tradições ou meros hábitos locais, com o tempo, que cada vez mais corre e dá aos homens a inflexidez que não permite afundar raízes, vão-se perdendo e olvidando. E mal se lhes vislumbra algum apagado sucedâneo.

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NOTAS

(1) – Homem Cristo – Banditismo Político, Madrid. 1912. pág. 953.

(2) – D. João Evangelista de Lima Vidal. Lições da Natureza e dos Homens, Coimbra. 1914. pgs. 97 e 98.

(3) – Duas cartas do Arcebispo Bilhano sobre a procissão de «Corpus Christi». art.° do autor, in Arquivo do Distrito de Aveiro, V, XIV, pg. 103.

(4) – Artigo citado, pgs. 104.

(5) – Uma descrição das Igrejas e Capelas de S. Miguel de Aveiro, art.º do Dr. F. Ferreira Neves, in Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. VII, pgs. 194.

(6) – Luís Chaves – Portugal Além, Vol. I, pg. 99.

(7) – Luís Chaves. id. pg. 101.

(8) – João Gonçalves Gaspar – A Diocese de Aveiro, pg. 209.

(9)Campeão das Províncias, de 3-6-1893.

(10)Campeão das Províncias, de 3-6-1893, cit.º.

(11) – Idem, idem de 22-6-1889.

(12)Uma descrição das Igrejas e Capelas de S. Miguel, cit.º, pg. 188.

(13) – Memória descritiva sobre os trabalhos de Abertura da Barra de Aveiro, de Luís Gomes Carvalho, Aveiro, 1947, pg. 71.

(14) – Francisco Ferreiro Neves, Vida e Testamento de Aires Barbosa, in Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. XlV, págs. 59 e 60.

(15)O Campeão das Províncias, de 3-10-1860.

(16) – Idem. de 26-9-1860.

(17)Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Aveiro, pág. 106.

(18) Memória de Aveiro, pág. 106.

(19) – Marques Gomes, Centenário da Guerra Peninsular, pág. 22.

(20) – Artigo do Sr. Dr. F. Ferreira Neves, in Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. VII, pág. 187.

(21) – Esta irmandade, que já existia em meados do século XVI, era quase exclusivamente constituída por sacerdotes. O vulgo conhecia-a, por isso, por «irmandade dos clérigos». Os sacerdotes pagavam a cota anual de 240 reis. Aos poucos seculares admitidos eram estipuladas jóia e cota para cada caso. Entre estes, estavam isentos de cotização os médicos, que contraíam, no entretanto, a obrigação de prestarem serviços gratuitos aos membros da confraria.

(22) – Dr. Francisco Ferreiro Neves, in Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. XXVI, pág. 83 e segs.

(23)Memória de Aveiro no Século XIX, in Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. VI, pág. 20.

(24) – Francisco Ferreira Neves – Uma descrição das Igrejas e Capelas de S. Miguel, cit. pág. 187.

(25)Campeão das Províncias, de 21-4-1886.

(26)Banditismo Político, pág. 954.

(27)Banditismo Político, pág. 955 e segs.

 

páginas 39 a 54

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