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N.º 9

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1970 

A Ria de Aveiro e a pesca do bacalhau

Pelo Capitão da Marinha Mercante João São Marcos

 

Hoje, quase poderíamos dizer continuarem em laboração, na Ria de Aveiro, as mesmas carreiras navais donde saíram, há mais de seis séculos, os navios bacaIhoeiros construídos no reinado de D. Pedro, o Cruel, ou os que, na era de quinhentos, foram integrados na Invencível Armada e com ela não pereceram para se tornarem presa fácil de pirataria inglesa e holandesa, ou ainda, menos remotamente, aqueles veleiros latinos do último quartel do século passado e alvores do nosso século, que restabeleceram entre nós a pesca do bacalhau, há centenas de anos caída no esquecimento.

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O pano todo largo.

Aqui e ali, ainda se vê o machado que cortou o carvalho e a enchó de ribeira que talhou o cavername dos navios de arte redonda e dos lugres e dos palhabotes, como a perenizar um artesanato que serviu o génio irrequieto da raça que desbravou os mares, ligando povos e civilizações.

Aqui foram construídos e daqui saíram muitos dos barineis que, navegando para norte ao longo da costa, arrostaram com as tormentas da Biscaia para atingir o litoral da Grã-Bretanha, aonde abundava o «gadus» que, esventrado, espalmado, salgado e seco, se tornou responsável pela nossa inclinação e preferência gastronómica.

Com os irmãos Gaspar e João Corte Real e a plêiade de exploradores do Atlântico noroeste que os seguiu, iniciou-se uma segunda era que teve nesta ria de Aveiro um dos maiores centros, não só de armamento como de construção.

Daqui largavam anualmente dezenas de navios apetrechados e munidos, com destino à ilha da Terra Nova, aonde tinham bases e feitorias que lhes permitiam a exploração das pescas nos bancos ribeirinhos, tão fartos em bacalhau, até que Drake, o hábil marinheiro inglês, numa manobra feliz e de mestria, os destruiu, ao atirar sobre os baixios da Mancha a Armada de Filipe II, que a tormenta destroçou.

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Groenlândia, 1943. Largada para a pesca.

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O pouco que nos ficou e teimava afanosamente continuar a pescar nas águas frias da corrente do Labrador foi também pilhado, como fazendas do Demónio do Meio Dia.

Só três séculos mais tarde, em pleno reinado de D. Luís – 1875 –, num surto de desenvolvimento económico, é constituída em Lisboa uma empresa armadora de navios destinados à pesca do bacalhau, para o que foram adquiridas em Inglaterra seis escunas apetrechadas e com monitores para orientar e instruir as equipagens portuguesas.

Esta iniciativa, que redundou num fracasso, serviu no entanto de ponto de partida para novos empreendimentos, tentados por outros armadores do Tejo.

Nevoeiro!... O sino badala ecoando
na salgada planície.

Mas é às gentes desta nossa região que se apoiam. É aos ílhavos, povo daqui da nossa Ria, mas a ela quase estranho e alheado, que são entregues os principais postos dos novos navios.

Gente vinda não se sabe donde nem quando, mas que aqui não pode ter tido origem, por tão dissemeIhante e díspar com os outros povos desta encantadora ria, de paisagem suave e nada propícia à formação de aventureiros ou de heróis; gente audaz, de espírito retemperado e endurecido por séculos e séculos de solidão e sofrimento passados na imensidão oceânica, capaz / 10 / de arrostar com as privações e intempéries, sem vacilar, e de suportar as doenças e as saudades, por meses e meses sem conta, sem fraquejar; gente altiva, para impor em seu redor a disciplina e o ânimo que levaram Portugal de antanho através dos mares desconhecidos e que jamais perde o sentido do dever e da missão a cumprir, nem quando vivendo à mercê de Deus; gente que, mesmo fugindo às ondas e à maresia, vivendo a fragrância dos campos ou o requinte dos salões, traz na fronte o desassombro dos horizontes claros do mar e na alma um misto que denota raízes de convívio com a grandeza oceânica; foi entre tal gente que foram escolhidos os capitães, pilotos, contramestres e cozinheiros para chefiar e conduzir os pescadores, recrutados na orla marítima a sul do Tejo, hábeis e extraordinários no manejo das artes de pesca, mas gentinha que era apenas da borda d'água e do marzinho, só endurecida pela labuta nas rudes lidas da arrebentação na praia.

No mar alto, esse colosso imenso e terrível, tudo é diferente. E quando olhado do convés dum veleiro sob a tempestade, com o sibilar do vento na mastreação e cordame e o gargalhar das campas, ao dobrarem e correrem sobre si mesmo, rebentando como na praia, só não amedronta e paralisa os loucos ou os gigantes.

Com tal garantia, e adaptadas as novas companhas aos rigores da modalidade esquecida há séculos, Inicia-se uma corrida ao armamento de navios bacalhoeiros, cabendo de novo à nossa Ria o primado na compita.

Aveiro volta a ser o empório do bacalhau e tudo quando, desde então e até hoje, foi feito nesta modalidade de pesca, sua evolução e fomento, aqui teve princípio e aqui lhe foi dado corpo.

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Grande sacada! Cerca de 45 toneladas de bacalhau e red-fish estão à borda do arrastão clássico Santo André (1961).

Os anos trinta trouxeram consigo a derrocada económica e até os peixes, nas profundezas abissais do oceano, parecem ter-se mancomunado para tornar negros os dias de quem tinha capitais investidos na indústria de que eles são a matéria-prima.

Desde o banco George, ribeirinho de Boston, aos «lejos» do Virgem Rocos e Nainefadas das Pedras do Leste, estendendo-se pelo Platier e «espalcos» do Grande Banco, no Sapato, no Pé ou no Camandro, seguindo pelo Banco Verde, S. Pierre, Ilha das Burras, Miligrão e Esmeralda, só arraias e algum «sanapaio». No Manolejo, colados no visgo, os ferros criavam carepa, as amarras tingiam-se de limos e as boias juntavam pampos, enquanto as luas íam passando na esperança de alguma trazer águas menos luzas e mais piscarentas.

O gusano e o taredo, extra, extravasando maldade e destruição, apoderam-se dos donairosos lugres e iates, envelhecendo-os, não tanto pela idade como pelas vicissitudes e faltas resultantes da depressão económica que tudo submergia. E conservados quase só com a boa intenção e muito trabalho da marinhagem, esfregados, raspados e ligeiramente pintados, que o dinheiro era pouco e a tinta cara, fazendo água como canastras, que algumas costuras já nem a estopa aguentavam, eles aí iam, dia e noite a manivela da bomba de esgoto nas unhas e sem nunca desferrar, velas desfraldadas, mas só as baixas e de entre mastros, mais a polaca e a do estai, que a bujarrona era pesada e o aumento de água no / 11 / porão mostrava bem que a estrutura não aguentava grandes puxões. Nas «estensulas» e na mesena, nem pensar nisso, que o navio, por artes ou malas-artes, tinha que voltar a porto de salvamento.

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Arrastão de popa Santa Isabel, construído em S. Jacinto (1965).

Assim ia definhando a pesca do bacalhau, quando um armador da nossa praça, ao tomar conhecimento que, nos confins da Groenlândia, alguns pescadores nórdicos faziam boas safras, concebeu a ideia de se tentar o empreendimento, solução única e capaz de resolver o seu problema financeiro.

Mas quase poderíamos garantir que no projecto e cálculo de probabilidades do intemerato e visionário armador deve ter surgido, como pedra angular, a confiança que os vizinhos ílhavos lhe ofereciam de que – ele tinha a certeza – seriam capazes de levar a bom termo o seu intento, sem nada mais exigirem do que os magros e usuais proventos dum trabalho rotineiro.

Lá foram, com Deus, os quatro que isoladamente isso intentaram, sem nada saberem uns dos outros, nem ninguém deles saber.

Na Vila, sempre tão nua de vegetação como a paisagem do mar, aonde o ar é salino e de cheiro a maresia, aí rente ao meio dia, por costumeira, o mulherio assoma vezes sem conta à porta da rua, a saber do carteiro sempre tardio. Mas mal vai quando passa lesto e antes da hora.

Naquele tempo, a impaciência mais aumentava se no ar corria o sussurro longínquo da vozearia que anunciava : – Vieram cartas do Banco! Cartas do Banco!...

Levadas a algum porto das costas do fim do mundo por «trola» francesa ou iate canadiano que passou à fala, sempre contavam – era da norma – quando e quais os navios que tinham sido avistados, sinal certo e seguro de que a essa data ainda havia vida nesses pequenos mundos do oceano. Mas dos quatro nada diziam nem ninguém sabia.

Era tão comum partirem e nem rasto deixarem que até na farmácia, com o andar dos tempos, os seus nomes deixaram de vir à baila, como que já envoltos num silêncio respeitoso, quase fúnebre.

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Mau tempo. Um arrastão clássico aguarda de capa.

A campanha foi avançando para o seu termo e Setembro ia já quase todo fora, quando da Costa, mas mais cedo do que o habitual, voa o rebate alvissareiro que lança um frémito em toda a vila: Navio à barra!... Navio à barra!... / 12 /

Em alvoroço, o proviléu salta p'rá rua e os mais lestos, em corrida desenfreada, pedalam para a praia na ânsia do reconhecimento.

Quem seria o felizardo, se as cartas só relatavam miséria?!

Naquela tarde, o sol já encarniçava o poente em cariz de bom tempo e o vento, que durante todo o dia tinha soprado em remandiolas, crescia do norte bonançoso a limpar de todo a sarria que empoalhava levemente o horizonte.

Ao longe, o lugre, com o pano todo largo e a bandeira a tope, em sinal de regozijo, vem amurado por bombordo, na bordada de terra.

Na Meia Laranja a discussão é acesa. É!... Não é!... Teimam uns e outros, mas todos aguardam quase em suspenso.

Lento, o veleiro vem avançando até que, ao sondar as dez braças, mete à orça, enfia no vento e camba a bombordo... Era mesmo um dos quatro que se receava perdido.

Pairava ainda este «chape-xuga» frente à barra, perdidas já duas luas em mortificante espera de água para entrar, quando viu surgir na linha do horizonte a silhueta elegante dum outro veleiro, mas emarado, que o vento fora soprava baixo e já fresco, convés corrido, limpo e desempachado, sem botes, sem gaiuta e sem albóis, sem borda, apenas destacada pelos cabeços esgalhados, que a bordo pensaram ser navio de viagem seguindo ao seu destino.


Navio Santa Mafalda, de regresso das provas de navegabilidade.

Mas aqueles olhos de marinheiros habituados a perscrutar o horizonte, quer sob a reverberação solar ou nas sombras e negrumes da noite e da cerração, notaram naquela mestreação e aparelho um ar familiar.

Era o Isabel!... Metido, ajoujado em sobrecarga brutal, na ânsia de trazer riquezas – para outros, nanja para os que o tripulavam, felizes e ufanos da missão cumprida –, vergado ao peso e aos maus tratos, ferido, mostrando no seu convés a marca do algoz, mas digno e firme como uma rocha, sob a mão vigorosa e hábil do Labrincha, incontestavelmente o maior marinheiro do seu tempo.

Quatro navios e quatro capitães, nomes que já ninguém lembra e quase que ninguém fixou. Gente modesta e simples nas maneiras, bondosos e afáveis no trato. No seu porte nada havia de brutal nem de heróico, e o que em terra tinham de tímidos e contrafeitos, no mar eram gigantes que tratavam a Deus por Tu, que no Céu manda como eles mandavam a bordo dos seus navios.

Durante quase quarenta anos, os bancos da costa oeste da Groenlândia desentranharam-se em riquezas e tragédias. No surto desta abundância, tudo aumentou e cresceu; o armamento criou vulto e a bordo... Mais perigos, mais sustos e mais canseiras.

Aos olhos do mundo tudo parecia riqueza, quando havia muito mais de fortuna.

Imolados à terrível faina, dezenas de portugueses dormem o sono eterno da cripta monumental do mar de / 13 / Baffin e muitos deles disseram adeus à vida ao som do ribombo dos foguetões, do badalar dos sinos e do silvar das sirenes que os chamavam, não já para bordo, mas à presença de Deus.

Com a evolução e a supremacia da propulsão mecânica sobre o velame, são os estaleiros da Ria de Aveiro que, tomando quase o exclusivo da construção de navios bacalhoeiros, muito embora continuando a manusear a enchó e o machado, adaptam um novo tipo de navio, mais económico, mais seguro e mais cómodo, perfeitamente ajustado às enrascadas na abordagem dos doris debaixo de mau tempo. E apesar de se ter gorado uma tentativa feita pelo armamento do Tejo, com o vapor Elite, para lançar o arrasto na pesca do bacalhau, é ainda na nossa praça que se manda construir um arrastão, especialmente destinado a trabalhar no norte Atlântico, na intenção de superar o anacrónico e desacreditado artesanato do pescador do dori.

Assim começa, em 1936, o quarto período bacaIhoeiro – a era do arrasto.

Mas seria injustiça de bradar aos quatro ventos se não relevássemos que, sem a colaboração das gentes da terra de ílhavo – solo ubérrimo no cultivo da lealdade, do espírito de sacrifício e brio profissional –, sempre pronta a defender antes e acima de tudo o que lhe é confiado, por muita atenção e cuidado que tivesse sido posto no plano e sua urdidura, a tentativa não iria além dum fracasso mais a registar.

Depressa se reconhece a enorme rentabilidade do novo sistema e rapidamente se alastra grande entusiasmo entre os armadores, solicitando autorização para construir mais arrastões. Mas uma estranha e incompreensível reacção conservadora pôs cobro à euforia, condicionando a construção destes navios.

Em 1964, dez anos depois do aparecimento em Inglaterra do primeiro arrastão de popa, o Fairtry I, são ainda os armadores de Aveiro que se lançam na armação de navios deste tipo e, dos sete primeiros encomendados, todos para a nossa praça, quatro foram construídos aqui, em S. Jacinto.

Modernos e complexos navios, transformaram a arte de pesca numa indústria aonde já não cabe o «quanto mais burro mais peixe», nem comporta amadorismos administrativos, pelo condicionalismo a que está sujeita.

Hoje, tudo evoluiu, impondo ao pessoal da produção um nível superior de conhecimentos, para poder competir, no «Mare Liberum», com a concorrência mundial.

O mar, que muitos julgaram inexgotável, está cada vez mais empobrecido e, como é óbvio, a sua exploração cada vez mais necessitada de gente hábil e instruída.

Todos sabemos, mas devia ainda ser mais ampla essa noção, que o oceano não oferece aos que nele labutam senão incomodidades e desconforto, tornando-se cada vez mais difícil encontrar gente que aceite e queira viver a monotonia dos dias de mar. / 14 /

Nada de válido foi tentado ou feito no sentido de obstar ao desinteresse e fuga do pessoal marítimo, antes pelo contrário, tem-se acentuado o alheamento e até, por vezes, desmandos que afugentam.

Quer nos sectores do Fomento ou da Administração pública ou privada, quer nas actividades associadas à exploração marítima e que dela dependem, o pessoal da nossa Marinha Mercante, apesar do estofo da sua experiência e do cunho tecnicista que tem sido dado à governação, não tem encontrado privilégios de acesso a lugares em terra, que o imponha à influência dos paraninfados.

Resta-lhe viver uma vida inteira permanencendo as vinte e quatro horas do dia a dia no local de trabalho, sempre ausente de tudo quanto é a razão da vida, numa corrida veloz para a saciedade e saturação profissionais.

Impávidos, vamos assistindo ao êxodo e aceitando-o como facto consumado, limitando-nos a ajustar o remanescente às mínimas e instantes necessidades de bordo, por meio da automatização dos equipamentos e da montagem de comandos remotos.

Porém, era dever nosso não esquecer que o mar não só continua a ser o manancial aonde nasceu a própria vida, mas também é o único elo de ligação entre as parcelas deste Portugal que no passado foi glorioso Navegador.

 

páginas 9 a 14

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