M. R. Simões Júnior, A encomendação das almas, Vol. XIX, pp. 305-321.

A ENCOMENDAÇÃO DAS

ALMAS EM AROUCA

A encomendação das almas, de que tanto ouvimos falar na nossa infância, era conhecida, em Arouca, por «ementar as almas» forma admitida por Frei Domingos Vieira como lembrar, rezar, responsar algum defunto ou amentar, a que faz referência a Constituição do Bispado de Braga de 1697, no título 19º Constituição I, § I, na pág. 283.

Um feliz acaso fez com que pudéssemos salvar de uma destruição certa os livros que contêm os estatutos das seguintes irmandades: Irmandade dos Reverendos Sacerdotes do Vale de Arouca, da invocação de N.ª Sr.ª da Anunciação, fundada em 16 de Junho de 1551, confirmada pelo Bispo de Lamego, Dom Martim Afonso de Melo, em 14 de Julho de 1605 e com Bula de Indulgências dada pelo Papa Urbano 8.º, em 31 de Outubro de 1634; os primitivos estatutos foram renovados em 1675 e aprovados pela Irmandade em 10 de Junho de 1676, com Provisão de confirmação dada por Dom Frei Nicolau Raiz Rebelo, Vigário Geral de Lamego, em 6 de Junho de 1680.

As folhas cortadas dos estatutos da Venerável Ordem Terceira de S. Francisco, dum livro que depois serviu para um recenseamento da população, mas que hoje se encontra reconstituído; estes estatutos foram aprovados em Mesa de 3 de Setembro de 1737, sendo cabeça da irmandade a capela de S. Pedro.

Finalmente, um livro encadernado, com 90 folhas, de linho, com marca de água, que tem por título

STATUTA FRATERNITATIS ANIMARUM PURGATORII
FACTA ANNO MDCCXIV, DE OMNIUM FRATRUM
CÕSENSUÃ PATRE FR.co DA Costa e Azevedo.

Tem na primeira página o termo de abertura, feito em 14 de Janeiro de 1716, bem como na última o termo de encerramento, [Vol. XIX - N.º 76 - 1953] / 306 / ambos feitos e assinados pelo Provisor Domingos de Freitas Barreto, assim como as folhas rubricadas; em 28 de Julho de 1790 foi mandado rubricar e numerar de novo, pelo Provisor Saraiva, ao escrivão da provedoria António de Sequeira Pereira:

Illmo S.r

Dizem o P.e Fran.co da Costa e Az.do Juiz da Irmandade das Almas, Bernardo Tavares, e D.os de Pinho mordomos, e os mais irmãos della, q. elles mandarão fazer estes estatutos, q. extrahidos forão de outros, q. na Irmand.e havia feitos no anno de 1646 a. assim por nelles não haver confirmação, como por nestes prez.tes se amplia, daquillo de que os passados, estavão deffetuozos, mas porq.to agora pretendem alcançar pª dita Irmand.e bulla de sua Sanctid.e o não podem fazer sem confirmação de vossa Illm.ª.

P. a V. Illmª q. vistos elles e achando sse conforme a razão, lhe fassa m. aprovallos, e confirmallos

E R M


Este requerimento tem os seguintes despachos:

Haja vista o R.do Dr. Promotor. Lamº 14 de Janrº de 1716 Barreto

Parecem-me muito pios e bem ordenados os prez.tes estatutos, q. constão de 30 capitolos e será servico de Deos confirmarem-se, salvo, porem sempre os dir.tos Parochiais e ordinarios porq. protesto: e a provisão se deve passar no fim delles. Como Promotor Camlo (?)

P. no fim dos estatutos alvará de confirmação como aponta o Revº Promotôr. Lamº 15 de Janº de 1716

Barreto


INDEX CAPº

Cap. 1.

em que se toma por invocação e patram a S. Nicolao Bispo e que esteja em a Ig.ra de S. Bertholameo
 

fl. 4.
Cap. 2 em que se ellege o dia da festa 4.
Cap. 3 . da elleição dos offiçiais 4.
Cap. 4. do dia do anniversario 5.
Cap. 5. da entrada dos irmãos 5.
Cap. 6. dos officios dos irmãos defuntos 6.
Cap. 7. da Missa do obito 6.
Cap. 8. da Missa dos peregrinos  6.
Cap. 9. da vesita dos irmãos emfermos 6.
Cap. 10. da obrigação dos irmãos sacerdotes assistirem a Missa Cantada e mais off.os e da esmola q. se lhe dará
 
7.
Cap. 11. da comdemnação que se fará aos irmãos que faltarem 7.
Cap. 12. das tochas e vellas, q. os Mordomos hão de dar 7.
Cap. 13. que os officiais não acceitem por irmão pessoa de infecta nasção 7.
Cap. 14. da obrigação dos irmãos leigos rezarem hum terço 8.
Cap. 15. dos annaes e flnta 8.
Cap. 16. dos annaes e composição das irmãs do Mostr.º 8.
Cap. 17. do tempo em que os officiais hão de dar e tomar contas e arecadarem as dividas atrazadas e annaes 9.
Cap. 18. de quando os mordomos devem pedir e da pena que terão não pedindo 9.
Cap. 19. donde se haja de meter o dinheiro 9.
Cap. 20. que o escrivão servirá em abzª do juiz e por morte delle  10.
Cap. 21. que a irmandade não saya senão aos irmãos e peregrinos  10.
Cap. 22. do modo q. se fará a elleição e da obrigação dos officiais 11.
Cap. 23. da obrigação que os Mordomos tem de procurar hũ homem de boa vida e custumes p.ª emcomendar as almas do purgatorio
 
11.
Cap. 24. em que nesta irmandade hajão tres livros 11.
Cap. 25. da obrigação que os Irmãos tem de pagar os annaes, e da penna q. tem não pagando dentro de quinze dias
 
12.
Cap. 26. do Regimento do juiz 12.
Cap. 27. do Regimento do escrivão 12.
Cap. 28. do Regimento dos mordomos 13.
Cap. 29. do Regimento do procurador 14.
Cap. 30 do Regimento dos chamadores 14.

He verdade stabelecida em quasi todo o universo e que foi sempre conhecida como evidente dos gentios mais sabios (ainda que a ignorarão alguns mais rudes) e confessada por / 308 / infalível dos christãos mais catholicos (inda que não a conciderem alguns, para viverem como atheos;) que são as nossas almas immortais; e que acabada esta vida temporal, hão de aparecer diante de Deos, que lhes deo ser de nada como Criador, para as julgar e premiar, ou castigar como remunerador.

Tambem he artigo de nossa Sancta fé que no outro mundo não só ha gloria pª as almas que saem deste mundo em graça de Deos e purificadas de toda a mácula e imperfeição; e inferno para os que acabam a vida em peccado mortal, e limbo pª os que morrem sem peccados actuais mas sem se libertarem do peccado original pello Baptismo; mas que tambem ha Purgatorio para as Almas que saem deste mundo em graça de Deos mas sem terem satisfeito as penas que merecião por seos peccados e imperfeiçoins.

Tambem nos ensina a igreja que he o purgatorio hum lugar subterraneo, tenebrozo e horrivel e não só vezinho ao inferno, mas semilhante a elle, nas penas, e tormentos (tirando a pena eterna de damno), que nelle se padessem; e que nelle estão as benditas almas purificando se como o ouro em vivas  chamas de rigorozo fogo, p. poderem immaculadas subir a lograr a inefavel gloria q. Deos comunica aos seos escolhidos, na celestial Hierusalem, onde nada emtra manchado, e imperfeito.

Estão as benditas almas no purgatorio, como nos insinuão as Divinas Letras, e como nos encinão os Sanctos Doutores em huma continua ancioza suplica, pedindo aos que estamos neste mundo em estado de merecer, que as ajudemos e socorramos com as nossas oraçoins, esmolas, penitencias, jejuns, sacrificios, e mais obras penais e meritorias, que por ellas podemos aplicar; e com as indulgencias, que para ellas podemos lucrar; para assim poderem mais brevemente satisfazer as penas a que estão condenadas, e passarem para a gloria a ser continuas affectuozissimas valedoras dos seos libertadores diante de Ds, alcansando lhe como continamente se experimenta, specialissimos favores, e beneficios do Ceo.

Estas são as rezoins porque a devoção das almas do purgatorio he tam Louvada na scriptura, tam recomendada dos Sanctos Padres, e tão encarecida, e persuadida de todos os Livros spirituais, e tão praticada em toda a cristandade e principalmente e com mais fervor no nosso piissirno Reino de Portugal; onde assim como são inumeraveis as confrarias, irmandades, altares previligiados, e indulgencias, que ha pª bem e remedio das almas Santas assi tambem são sem conto os beneficios, que ellas alcansão a seos devotos.

E nesta Villa de Arouca, em tudo sanctam.e emula de todas as obras de piedade christaã, que se uzão nas cidades mais pias, e catholicas do Reino, ha m.tos tempos se instituiu / 309 / confraria das almas que se esmerou na observancia dos statutos que athe agora tinha; porem o fervor e zelo dos officiais deste prezente anno pertende se augmente a dita Confraria, e o bem das almas, renovando e amplificando os statutos antiguos, e alcansando bulIa pª hum altar previligiado, e recorrer ao Illustrissimo Senhor Bispo, que pª mais stabelidade dos tais statutos, os aprove e confirme, pª q. os Doutores Vizitadores tenhão cuidado na sua observancia e augmentos tudo pª bem das almas Santas, pª utilidade dos seos devotos, e pª honra e gloria de Deos.

Cap. I

Primeiramente ordenamos que na Igreja de S. Barthoiameo em o altar mór esteja a Imagem de S. Nicolao Bispo patram desta irmandade e proctetor das mais semilhantes que nas cidades e villas deste Reino há como athe agora foi de uzo.

Cap. II

Ordenamos que na Dominga infra octavam Beatae Mariae virginis se fassa a festa desta irmandade missa cantada, e procissão com sermão, sendo possivel e que neste mesmo dia os irmãos se confessem e communguem pª alcansarem as indulgeocias, que se esperão.

Cap. III

Ordenamos, que pª bom governo desta irmandade guarda, e cuidado de todas as couzas a ella pertencentes em o dia da festa antes da missa cantada, se ellegão a mais votos os officiais; a saber hum juiz sacerdote e hum escrivão, e dous mordomos leigos, e hum chamador geral pª avizar os Irmãos na occazião que a irmandade acompanhar algum defunto; e que ao depois de nomeados tomarão o juramento da mão do juiz que acabar, promettendo de fazer o que os statutos ordenão com zelIo, pª utilidade e augmento da dita irmandade.

Cap. IV

Ordenamos que em cada hum anno, se fassa, o primeiro dia depois da festa, se dezempedido for, se fassa um anniversario p.las almas do purgatorio de nove Liçoes com todos os padres irmãos, e não havendo irmãos sacerdotes que fassão o numero de des, em tal cazo rogarão sacerdotes que não sejão irmãos pª assistirem ao dito anniversario, o qual nunqua se fará menos do dito numero de des padres, emtrando o Parocho da freguesia, e a cada hum delles se lhe dará de esmola sem rs / 310 / com obrigaçao delles dizerem missa p.las d.as almas; e ao dito Parocho se lhe dará fora a sua esmola os seus direitos Parochiais como he uzo nas mais irmandades desta villa; e no fim da missa cantada do anniversario com todos os padres, que nelle assistirem e irmãos Leigos se fará hua procissão p.lo adro dando volta p.la igreja de S. Bertholameo na forma do Ritual Romano p.las almas.

Cap. V

Ordenamos que os que quizerem emtrar por irmãos desta Sancta Irmandade darão de esmola, sendo de idade de trinta annos, e de dentro desta villa, e se os arebaldes quatro centos e outenta reis de esmola, e sendo do cham do valle de Moldes seiscentos reis; e sendo de fora destes lugares e de outras fregª ficará ao arbitro dos officiais, attendendo sempre a despeza q. a irmandade faz em cera nos acompanhamentos dos irmãos defuntos de distantes Lugares.

Cap. VI

Ordenamos que qualquer irmão, que falesser, se lhe fará hum officio de des padres, e nove liçois em o dia do seu emterro, sendo dezempedido, e havendo algum legitimo impedimento, sempre se fará dentro de des dias e os Mordomos terão cuidado dar satisfassão na forma detreminada e faltando, o juiz os condenará em duzentos reis aplicados para a fabrica da dita irmandade, e havendo irmãos sacerdotes, que passem do numero de des, o escrivão da irmandade os distribuirá pª os officios em termos que não haja algũ queixoso.

Cap. VII

Ordenamos que os Mordomos mandem dizer hua missa em o dia do obito de qualqtuer irmão que falesser em o altar mor Cabessa desta irmandade, a qual dirá hum dos sacerdotes irmãos e será por distribuissão que o dito escrivão fará; e se lhe dará de esmola da dita missa sem reiz.

Cap. VIII

Ordenamos que falessendo nesta freguezia algum peregrino, que não tenha algua couza de seo, Constando á irmandade ser pobre miseravel: os Mordomos lhe mandarão dizer no dia do seu obito hua missa p.la sua alma no dito altar comforme assima fiqua dito, e a irmandade o acompanhará athe a sepultura.  / 311 /

Cap. IX

Ordenamos, que tanto, que algum irmão emfermar, os mais sejão obrigados a vezitalo e socorrelo, sendo pobre: e o juiz tendo noticia lhe mandará dar alguma esmola dos bens da irmandade, e o incitarão que se confesse e receba os mais Sacramentos.

Cap. X

Ordenamos, que todos os padres irmãos assistão em o dia da festa com sobrepelizes á missa cantada e procissão, e nesse dia se lhe dará de esmolà sem rz a cada hum, e ao Parocho na mesma forma alem dos seos direitos custumados com obrigação, que cada hum delles nesse dia diga Missa aplicando a por todos os irmãos vivos e bemfeitores desta irmandade; finalmente assistirão assim em o tal dia de festa, anniversario, officios, e acompanhamentos com a compozissam devida, e o que a isto faltar não tendo legitima cauza, que o escuza, o escrivão dará parte ao juiz pª o condemnar comforme a graveza da sua culpa.

Cap. XI

Ordenamos, que todo o Irmão, que faltar em o dia da festa, anniversario, e acompanhamento de irmão defunto, não tendo legitima cauza, que escuzar o possa, pagará sincoenta reiz de condemnação por cada hua das vezes q faltar pª a fabrica da irmandade, e o Sacerdote, que faltar com sobrepeliz vinte reiz, e tendo alguma occupassão, o juiz lhe dará licença pedindo lha.

Cap. XII

Ordenamos, que os Mordomos dem quatro tochas, e seis velas pª o primeiro officio que deixar se lhe mande fazer de cala qualquer irmão desta irmandade falessido sem por isso levarem couza algua, e querendo seos herdeiros a dita cera pª os mais officios que de caza mandarem fazer lha darão os Mordomos dando lhes trezentos reiz por cada vez, ou por cada officio, tirando o primeiro.

Cap. XIII

Ordenamos, que os officiais não acceitem nesta irmandade pessoa algua por irmã della sem primeiro tomarem informação da limpeza de seu sangue, vida e custumes; e / 312 / fazendo o contrario, achando se algum de infecta nascão a irmandade lhe não fique obrigada.

Nota: tem á margem

Diliges proximum tuum sicut te ipsum
Si autem personas accipitis, peccatum operamini.
Epístola de S. Tiago Cap. 2 vers 8 e 9


Cap. XIV

Ordenamos, que todo o irmão leigo seja obrigado em o dia da festa rezar bum terso por todos os irmãos vivos, e bem feitores desta Sancta Irmandade, e outro em o dia do anniversario pª almas do fogo do purgatorio; e outro p.la alma de qualquer irmão que falesser no dia de seu emterro.

Cap. XV

Ordenamos, que todos os irmãos assim sacerdotes, como leigos pagaram e darão de esmola em o dia da festa sincoenta reiz pª ajuda da sustentação e despeza da cera da irmandade, em cada hum anno, e sucedendo, que a irmandade necessite de alguns ornatos, e cera não tendo dinheiro, em tal cazo se fará finta por elles lansando a cada hum comforme a sua possibilidade e a pagarão todos com m.ta delig.ª e vontade considerando ser pª utilidade e augmento da irmandade bens das almas e servisso de Ds

Cap. XVI

Ordenamos, que visto as religiozas e maiz recolhidas no Mosteiro desta villa estarem impedidas pª satisfazerem as obrigassois da irmandade pessoalm.e pagarão cada hua dellas
em cada hum anno pello dia da festa de esmola e compozissão sem reiz; e o mesmo pagará qualquer irmão de fora que se compuzer, o qual será sempre obrigado a vir assistir em o dia da festa, e anniversario, não tendo legitima cauza que o escuze, que aliás faltando será multado em sincoenta reis pª a fabrica da irmandade. Alem disto nenhum irmão será composto, senão for por cauza de velho, ou for grande a distancia donde morar, ou finalmente por outras justas e racionaveis cauzas, que paresserem bem aos officiais.

Cap. XVII

Ordenamos, que os Mordomos e mais officiais depois de elleitos, e tomarem o juramento de guardarem estes statutos tomem contas aos que acabarem dentro de quinze dias com / 313 / pena de duzentos reis, e debaixo da mesma pena aos que acabarem não as dando dentro do dito tempo; por considerarmos a perda que padessem as irmandades por a incuria dos officiais não darem ou tomarem contas a tempo. E tambem sejão obrigados a recadarem as dividas e annaes dos irmãos, que se deverem á irmandade, debaixo da mesma pena, e farão meza, e mandarão pollo procurador avizar aos devedores, dizendo lhes o dia em que hão de vir pagar; e o juiz e escrivão com os ditos Mordomos assistirão todos pª arecadarem o dinheiro, e o escrivão pª descarregar em o livro que terão por donde dem contas.

Cap. XVIII

Ordenamos, que os Mordomos sejão obrigados a pedir pello S. Miguel pellas portas esmolas pª a irmandade que se custumão dar nesta freguesia: e se algum Mordomo ou Mordomos deixarem de o fazer por sua culpa, pagarão de sua caza o que paresser ao juis, se podia alcansar.

Cap. XIX

Ordenamos, que tomadas e acceitas as contas na forma assima, se meta o dinheiro, que ficar de residuo pª a irmandade no Cofre della e este esteja em casa de hum dos Mordomos e as chaves delle terá o juiz, hua e o escrivão outra e o outro Mordomo outra, por assi ficar com melhor tutela, e segurança e o não poder destrebuir algum sem consentimento dos mais; e por este termo, se evitam m.tos imcommodos, que a experiencia tem mostrado, padessem as irmandades.

Cap. XX

Ordenamos, que estando o juiz, que servir absente, ou impedido por algua justa cauza na occazião, que for necessário pª algum acompanhamento, que a irmandade fizer em o emterro de algum irmão, ou pª outra qualquer couza que pertença ao bom governo e utilidade da irmandade, o escrivão ficará em seu lugar e tomará a vara de juiz, se estivera prezente; e se suceder morrer em o dito anno, o juiz do anno antecedente proximé passado servirá athe o dia da festa primeira seguinte suprindo a obrigação delle.

Cap. XXI

Ordenamos, que a irmandade não saya acompanhar pessoa algua por mayor esmola que offeressa, não sendo irmão, ou peregrino na forma assima dito, isto por evitar graves / 314 / imcommos, que a irmandade tem e perdas, despezas em cera e ornatos, e os Mordomos que o contrario fizerem serão condenados nas ditas perdas, que a irmandade tiver e duzentos reis por cada ves que o fizerem.

Cap. XXII

Ordenamos, que pª a elleição dos officiais, como assima em o Cap. 3 fica dito, se faça em o dia da festa antes da Missa cantada como athequi, se uzou a saber serão os Mordomos obrigados a por hua meza a porta da igr.ª de S. Bertholameo e o escrivão trará papel e tinteiro, a custa da irmandade e prezedindo a meza o juiz com o escrivão e mordomos farão a elleição na maneira seguinte: mandarão pello procurador da irmandade avizar todos os irmãos pª se acharem prezentes as ditas horas pª votarem nos irmãos q aquelle seguinte anno hão de servir de officiais, e estando prezentes irão dous a dous votar em hum sacerdote irmão pª juiz, e outro pª escrivão avendo o quando não será leigo, e dous Mordomos leigos e hum procurador com obrigassão de dar recado aos irmãos pª os acompanhamentos dos defuntos; finalmente se fará sem seborno e em segredo se terá athe a publicassão q se fará a Missa cantada e nella não farão bulha e inquietação e o que a fizer ou for causa della seja riscado e a irmandade lhe não fique obrigada e o não tome mais admitir».

Cap. XXIII

ORDENAMOS, QUE OS MORDOMOS TENHÃO CUIDADO NO SEU ANNO PELLA QUARESMA DE PROCURAR HUM HOMEM DE BOA VIDA E COSTUMES, PAGANDO SSE DOS REDITOS DA IRMANDADE Pª QUE TODAS AS SEXTAS FEIRAS NA QUARESMA A TODOS OS PASSOS DESTA VILLA EMCOMENDE AS ALMAS DO PURGATORIO REZANDO-LHE E PEDINDO EM VOX ALTA, E INTELIGIVEL A TODOS, SE LEMBREM DELLAS ISTO COM QUIETAÇÃO MODESTIA E DEVOSSAM.

Cap. XXIV

Ordenamos, que nesta irmandade hajão tres livros hum que conste do nome sobrenomes dos irmãos, e do numero delles por donde se arecadem os annais, e os que pagarem se descarreguem, por evitar duvidas; e outro em que se lansem as contas, recibo, e despeza: e o ultimo pª acentar os irmãos, que entrão e morrem fazendo nelles termo o Escrivão do dia, mes, e anno em que cada hum entrou e morreo; e o escrivão, que a isto faltar, o juiz o condenará em sincoenta reis. / 315 /

Cap. XXV

Ordenamos, que todo o irmão, que não pagar a esmola annual, como fica dito, dentro de quinze dias, a irmandade lhe não fique mais obrigada: isto se emtenderá em os assistentes em esta freguesia, e os mais serão ao arbitrio dos officiais.

Cap. XXVI

Regimento do juiz

Pertence ao juiz procurar, que em seo anno a irmandade seja bem governada e servida, e que enteiram.e se guardem estes statutos, condemnando nas penas nelles declaradas, e naquellas, que a culpa meresser; pertense lhe ir a todos os acompanhamentos, officios, missas cantadas, e mezas, que se afferecerem: Levar a vara, assentar o dia pª os officios; dar o juramento aos oficiais novos: tomar contas aos Mordomos; dar a licença a qualquer irmão que a pedir com cauza, cessando com tudo odio, e affeição: finalm.e lhe pertence dizer a Missa cantada em o dia da festa, e as mais quando o Parocho as não diga; e não podendo por algũa Legitima cauza avizará: ao juiz novo pª prover quem lhe paresser.

Cap. XXVII

                            Regimento do escrivão

Pertence ao escrivão fazer com grande deligencia tudo quanto se detreminar que se haja de pôr por letra, porquanto só delle nasce a obrigação de escrever nos livros, e executar todas as couzas, que os statutos lhe mandão: Pertence lhe tambem ler estes statutos de verbo ad verbum, ou pello menos alguns mais principais hua ves em o anno à irmandade em occazião que estiver junta, pª que todos saibão as obrigaçõis que tem. Pertence lhe ajudar aos Mordomos no que toca aos officios devinos, e destrebuir aos padres as cousas tocantes a elles. Levar a vara do juis em sua abzencia: tirar os roes a limpo pª emtregar ao escrivão novo e fazer com cudado todos os q necessr.os forem; e dentro de outo dias dará os róes aos chamadores para elles fazerem a obrigação quando o tempo o pedir, pª se não desculparem, na occazião, que devem de avizar os irmãos, que devem ir aos acompanhamentos.

Cap. XXVIII

                            Regimento dos Mordomos

Pertence aos Mordomos ter em seu poder toda a fabrica da irmandade de tal sorte, que ao depois, que estiverem emtregues / 316 / della, se se perder, ou damnificar algua couza sejão obrigados a pagarem de sua caza. Pertence lhe não emprestarem couza algua sem licença da meza. Receberem as esmolas p.las portas, e ao depois dar dellas emteira conta. Ir ao Mostr.º cobrar a compozissão das irmans religiosas, e leigas e arecádar as fintas, que se fizerem. Aparelhar o necessr.º pª os acompanhamentos, officios, festa, e anniversario; repartir as esmolas aos padres; repartir a çera peIlos irmãos. Pertence lhe comprar çera que for necessrª pª a irmandade mandala fazer. Procurar a limpeza das pessas da igreja, e altar, e juntamente acharem se prezentes em todas as occaziõis, e prover de meza e o mais necessario; fazer rol de recibo, e despeza pª darem com clareza contas aos novos Mordomos.

Cap. XXIX

                            Regimento do procurador

Pertence ao procurador avizar aos chamadores tanto que em mesa forem eIleitos: e dar o rol a cada hum o qual o escrivão lho dará, e o tirará dentro de outo dias depois das contas, e avizar os mais officiais pª darem contas dentro de quinze dias. Pertence lhe avizar os devedores pª virem pagar quando o juis fizer meza, e fazer tudo o mais que o juis lhe mandar, que seja de utilidade pª a irmandade; ajudar os Mordomos, varrer a igreja na occazião da festa, ajudar ás Missas no dia da festa, e anniversario.

Cap. XXX

                            Regimento dos chamadores

Pertence ao chamador mayor tanto que tiver o rol, avi'zar aos outros chamadores na occazião, que algum irmão morrer, declarando lhe o dia, e hora em que se ha de sepultar pª elles avizarem a todos os irmãos que se contem em o seu rol, e eIle avizará pessoalmente a todos os irmãos, que se contem em seu rol, dizendo lhe o dia e hora, q os Mordomos lhe devem dizer que se ha de sepultar o irmão faleçido, e fará tudo com o mº cudado pª que não falte algum a obrigação, que tem de ir aos acompanhamentos, e rezar o que os statutos lhe mandão.

Aos quinze dias do mes de septembro do anno de mil septc.os e quinze na Igreja de S. Bertholameo da freguesia de S. Pedro da villa de Arouca deste Bispado de Lamego, estando
a mayor parte da Irmandade junta assignarão estes statutos, que mandarão fazer e augmentar por lhe paresser ser mayor servisso de Deus, e utilidade, e bem das almas; e por passar
/ 317 / na verdade fiz este terrno eu o p.e Fran.co da Costa e Azevedo Irmão desta Irmandade o escrevi.

O Juiz o Pe Mel do Valle Quaresma − Bernardo Tavares, mordomo − De Dos de Pinho mordomo, uma cruz − Pe Paulo Barbosa − O Pe Manuel Alures − Mel Ferª Agostinho descobar Texª − franco de Almeida − de João Rodrigues, uma cruz − de Ignacio da Costa, uma cruz − Pe M.el Gomes do Valle − O Pe Mel Carneiro − Mel nogueira − O Pe Bndo Mel de Pinho Vieira − Pe Franc. da Costa e Azevº


ALVARÁ DE CONFIRMAÇÃO.

O Dr. Domingos de Freitas Barreto Provizor deste Bispº pelo Illmº Senhor Dom Nuno Alvares Pª de Mello por mº de D e da Santa See appca Bispo deste Bispado do Conº de Sua Magde seo sum.er de Cortina etc, Aos q a prete Provam e Alvará de Comfirmação de Estatutos virem Saude em D nosso S. fasso saber em como sendo me aprezentados com hua petissão os Estatutos Retro q. constam de trinta Cap.los os coais fizerão o juiz e lamaons da Irmde das Almas da Igª de Sam Pedro da villa de Arouqua deste Bispº e havendo Respº ao q. elles alegão e pedem em a dª sua petissão e por achar q os d,os estatutos estão feitos comforme o dirº e boa dispozição lhos comfirmo, e aprovo assim e na forma q. nelIes se contem, com declaração q a elIes não acrescentaram couza algua e fazendo o ou acrescentando algũa couza se tornaram a confirmar ficando sempre salvos os dirosParrochiais, e ordinarios, e por certeza de tudo lhe mandei passar o preze a q. dou e interponho minha authoride ordinaria e decreto judicial. Dado nesta Cid.e de Lamego debaixo do Sello de Sua, Illmª e meo synal aos dezassete de jan.º de mil e sete sentos e dezasseis annos. João Prª da Silva escrivão da Camª a fez,

Domingos de Freitas Barreto


Ao sello − 60

desta. . . ?

Provizão e Alvará dos statutos da lrme das Almas da freg.ª de S. P.º de Arouca.

Tem colado o selo do Bispo de Lamego, Dom Nuno Alvares Pereira de Melo.

Estes estatutos foram vistos em correição em 1781 e novamente em 1790 fazendo-se então o seguinte provimento:

Provendo nos prezentes estatutos em virtude do meu requerimento, e observação da Ordem da RelIação, que pª o mº efeiº me foi dirigida, e q se acha registada no Livro / 318 /  rrespectivo desta Provedoria. Como se não aprezenta nem consta q esta Irmandade (que se compoem de vassalos leigos de S. Mage) tivesse Primordial Instituição Ecleziastica, que a izentasse da Jurisdição Real, só a este Juizo compete a administração, e direcção da mma, e a aprovação e confirmação dos Estatutos porque se deve reger, sendo-lhe por isso inutil outra qualquer e portanto para a validade, vigor e firmeza dos mesmos os aprovo e confirmo e mando se guardem e observem com a declaração de que o Capitulo 13. se deve entender e observar na conformidade das leis de S. Mage e que as illeiçoens dos Officiais deve ser feitas em livro q. para isso deve haver rubricado por este Juizo o que se observará pena de proceder contra os Officiais se assim o não observarem. Arouca, 24 de Julho de 1790 − Saraiva.

Estes estatutos foram novamente vistos em correição nos anos de 1791 e 1798, sem se saber como terminou este conflito de jurisdição, tão em voga nessa época.

Os estatutos da Irmandade das Almas completam os trabalhos sobre a encomendação das almas dos Drs. AUGUSTO CÉSAR PIRES DE LIMA e ALEXANDRE LIMA CARNEIRO e D. MARGOT DIAS e Dr. JORGE DIAS publicados no Boletim do Douro Litoral, 4.ª série III-IV, 1951 e em 1953, como comunicações ao Congresso Luso-Espanhol para o Progresso das Ciências e confirmam o seu fundo religioso já posto em relevo.

Em 2 de Outubro de 1610, D. Filipe confirmou o Compromisso da Misericórdia de Arouca, que em 1612 fazia a sua capela e na qual em 1616 se instituía a Confraria do Senhor dos Passos; esta Confraria mandou fazer o Calvário, ao cimo da Rua de Arca, que ligava esta vila a Lamego, no qual a cruz central tem a data de 1621 e o púlpito a de 1643; também mandou fazer os Passos que ainda hoje se encontram espalhados pelas diferentes ruas da vila; eram estes Passos aproveitados para a encomendação das almas, a que faz referência o capítulo 23.

O culto das almas foi, aqui, muito intenso, pois não obstante ter desaparecido a Irmandade das Almas, continuou a fazer-se durante muitos anos, porque depois da «Missa das Almas» à segunda-feira, era feita a «Procissão dos defuntos» ao cemitério, como ordenava a Constituição do Bispado de Lamego de 1682 no Livro 3: Título 10: e Capítulo 6.º, a que Arouca pertenceu até 1882. A «Procissão dos defuntos». por comodidade, passou a fazer-se ao domingo, continuando a «Missa das Almas» à segunda-feira, terminando tanto uma como outra, não obstante, todos os domingos, na missa conventual, um homem pedir «uma esmola, para as benditas almas».  / 319 /

A ementação das almas terminou há cerca de sessenta anos, sendo o último ementador Bernardino Valente, tendo sido seu antecessor João do Rodrigo; a sua descrição foi-nos feita por Manuel José Ferreira do Carmo, mais conhecido, neste meio, por Manuel do Aduba, alcunha do seu pai, natural de Arouca, com 86 anos e de espírito lúcido, tendo feito uma viagem ao Brasil há quatro anos (e seria o seu maior prazer viajar de avião); a música foi colhida pelo maestro Virgílio Pereira, para quem vão os nossos agradecimentos, muito sinceros, e admiração pelo quanto se esforça para que tudo quanto é antigo se não perca.

O ementador vai sozinho ou acompanhado por outros, mas neste caso só ele é que actua, à porta da igreja, onde dá três pancadas, sem olhar patrás tanto na ida como á porta da igreja (aqui entra a magia, que não soube explicar, nem as consequências que surgiriam se olhasse para trás); da porta da igreja seguem para um lugar elevado e já não aos Passos, onde o ementador declama

ALERTA PECADORES ALERTA
A VIDA É CURTA
A MORTE É CERTA

em seguida canta com a música que se segue, já referida


o seguinte

OH HOMEM QUE ÉS TERRA
LEMBRA-TE QUE HÁS DE MORRER
TENS DE DAR CONTAS A DEUS
DO TEU BOM OU MAU VIVER

/ 320 /

seguindo-se o pedido de Padre-Nossos e Ave-Marias pelos mortos, com a mesma música, da maneira seguinte

MAIS PEÇO IRMÃOS MEUS
UM PADRE NOSSO E UMA AVÉ MARIA
PELA ALMA DE FULANO
SEJA PELO AMOR DE DEUS

São impressionantes as condições pedidas, no Capítulo 23 dos estatutos ao homem que encomendasse as almas: não só tinha que ser de boa vida mas também o pedido devia ser feito em voz alta, inteligível, com quietação, modéstia e devoção; não conseguimos saber quanto recebia pelo seu trabalho.

Tinha esta Irmandade uma cruz de pau, modesta como a própria Irmandade, que serve na Procissão ao cemitério no dia dos Fiéis.

Em muitas freguesias deste concelho é feita a encomendação das almas, variando a forma de freguesia para freguesia: assim, em Escariz, uma pessoa, em cumprimento de um voto feito e como paga de ter sido atendida, promete encomendar as almas, o que faz da forma seguinte: de noite dirige-se à porta principal da igreja e bate com uma vergasta, que já leva, três pancadas dizendo

Almas boas, acompanhai-me

seguindo depois em direcção a um monte, de onde se vejam mais dois, pertencentes a freguesias diferentes e aí encomenda as almas dizendo:

Alerta povo, alerta
Se estais a dormir, acordai,
E se estais acordados, rezai,
Um Padre Nosso e uma Ave Maria às almas do Purgatório.

tocando então uma campainha e ele próprio reza e volta a dizer:

Rezai mais um Padre Nosso e uma Avé Maria pelas Almas abandonadas.

Muitas vezes algumas pessoas pedem ao amentador para ele pedir e rezar igualmente um Padre Nosso por alma dos seus e até por alguma intenção particular ou mesmo por alma dos que morreram na guerra; uma vez feito o pedido, nunca mais o amentador pode deixar de o fazer, isto é, não / 321 / pode diminuir o número de Padre Nossos pedidos, mas pode aumentá-los.

Não pode o amentador olhar para trás desde que sai da igreja, mesmo quando acontece irem levar-lhe pão ou bolo quente, o que é frequente; depois de encomendadas as almas regressa à igreja, batendo de novo três pancadas e dizendo

Almas que me acompanhastes, aqui ficai.

Este relato foi feito pelo meu contemporâneo Álvaro Miranda, a quem agradeço.

Num livro pertencente à igreja da freguesia de Cabreiros e com letra do Cura FRANCISCO JOSÉ PEREIRA, cura que foi desta freguesia de 1762 até 1774, lê-se o seguinte:

Titulo dos uzos q achey nesta freg.ª emformando me com as pessoas mais velhas desta freg.ª

§ IN DIE OMNlUM FIDELlUM DEFUNTORUM cada hum dos freg.es desta freg.a tem obrigassam de levar huma oferta a Igre.ª de Pam pelas almas que he obrigado comforme a sua possibilidade e devossam e o Re.º parocho rezar lhe dois mementos pelas almas de suas obrigassoens.

§ e de imentar hum ano intr.º  1000
de quantos morrem de 7 annos para sima

MANUEL RODRIGUES SIMÕES JÚNIOR

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