Luís Alves da Cunha, Uma romaria do século XVI, Vol. XIX, pp. 77-79.

UMA ROMARIA DO SÉCULO XVI

VÊM dos sombrios tempos da peste que invadiu o país em 1598 e fez milhares de vítimas entre os povos da beira-Cértoma.

A vila e couto de Mogofores, exposta à duríssima prova do maligno contágio, tentou imunizar-se contra a terrível epidemia refugiando-se na protecção divina.

Concentrou todas as suas esperanças na Virgem que se venerava − e ainda se venera − na capela do lugar do Béco, freguesia de Macinhata do Vouga, concelho de Águeda, sob a invocação de Nossa Senhora da Paz, e os seus habitantes acorreram ali no primeiro sábado de Setembro daquele ano a implorar a sua intercessão que eles tinham por milagrosa. Venceram mais de 25 quilómetros de ásperos caminhos, a pé, numa romagem de devoção e penitência, animados pelo ardor da sua fé. Oraram e sofreram durante dois dias numa adoração sincera e crente − diz a tradição − e por fim tiveram a felicidade de obter a graça que pediam: o couto de Mogofores passou incólume o período devastador da peste, o que se considerou um milagre naqueles tempos excepcionalmente calamitosos.

Este povo, maravilhado e agradecido, elegeu esta imagem sua protectora e ainda hoje a Ela recorrem aqueles que em horas aflitivas procuram refrigério para os seus males.

Pela graça recebida o couto de Mogofores ofereceu um grosso círio para ser aceso, em homenagem à sua protectora, durante as missas celebradas naquela capela, e como este padrão da sua fé não devia ser consumido mantinha-se o culto com duas velas oferecidas todos os anos. Assim se faz ainda hoje para que o círio monumento continue, íntegro e majestoso junto do altar, encerrado numa caixa de madeira, a testemunhar através de todos os tempos a devoção dos nossos remotos antepassados. / 78 /

Além desta oferta, o povo de Mogofores fez voto solene de todos os anos, no primeiro sábado de Setembro, mandar uma pessoa de cada casa prestar preito de gratidão à sua milagrosa benfeitora.

Assim nasceu esta romaria há trezentos e cinquenta e quatro anos, e neste largo transcurso a sua tradição religiosa e festiva tem-se mantido inalterável, alimentada pelo entusiasmo juvenil das gerações que passam.

Anda à roda de 60 anos que eu assisti, algumas vezes, à partida dos romeiros.

Fazia-se na madrugada de sexta-feira porque o percurso era longo. A caravana formava-se no meio de grande alvoroço e seguia a pé atravessando as povoações de Malaposta, Avelãs de Caminho, Aguada de Baixo, Borralha, Sardão e Águeda; aqui descansava uma hora e seguia depois por Aguieira e Brunhido, chegando ao Béco pelo meio da tarde sem fadiga e orgulhosa da longa caminhada. Era a alma popular a dar-se alegremente ao sacrifício, do qual só não compartilhavam os velhos ou doentes. Para estes havia os carros do alquilador António Coelho.

Hoje há talvez a mesma fé, mas há mais comodismo. Os automóveis do Rei, do Germano e do Júlio, oferecendo fácil e rápido transporte a todos, apagaram o traço mais saliente e característico desta antiquíssima romaria.

Caixa que contém o círio votivo.

A capelinha da Senhora da Paz está situada a cerca de um quilómetro do lugar do Béco, rodeada de meia dúzia de casas humildes, quase perdidas num campo que só tem a vida efémera que lhe dá a feira mensal que ali se realiza.

É neste campo que os romeiros estabelecem o seu arraial, comem dos seus farnéis bem providos e formam animados bailaricos que se prolongam até de madrugada, numa expansiva alegria que não desvirtua o voto feito nem colide com o sentimento religioso que os anima na comemoração festiva de um facto glorioso para esta imagem.

Manhã alta vão os devotos oferecer as suas oblatas à Virgem e todos cumprem o preceito de voto que consiste em ouvir missa rezada pelo reverendo pároco da freguesia e em seguida dar duas voltas em redor da capela em procissão de cruz alçada conduzida pelo juiz da confraria dos romeiros. / 79 /

Concluídas estas cerimónias, todos se preparam para o regresso. A chegada a Mogofores é pelo meio da tarde e toda a população que ficou recebe os romeiros com manifestações de alegria.

À volta desta romaria criou-se uma lenda curiosa. O facto de o voto feito em 1598 obrigar a esta peregrinação uma pessoa de cada casa, incutiu em espíritos incultos e fantasiosos a crença absurda de que todos os anos desaparecia uma pessoa do lugar sem se saber para onde nem como se dava o desaparecimento.

A fábula radicou-se na massa ignara do povo, e talvez por ser inédita e misteriosa, teve larga repercussão em muitas gerações dos lugares que os romeiros atravessam, onde, em tempos que não vão longe, alguns habitantes mais curiosos perguntavam quantas pessoas tinham desaparecido naquele ano.

Parece que esta lenda já está de todo esquecida e só é digno de fé o que se lê numa tabuleta que se encontra na referida capela encimando a caixa que encerra o Círio, cujos dizeres são considerados coevos do voto e rezam assim:

«AD Perpetuam Rei Memoriam.

Na era de Cezar MDCXXXVI e do nascimento de Christo 1598 reinando em Portugal Philippe II (o prudente) rei de Castela e o Pontifice Clemente VIII em o primeiro sabbado de septembro os moradores da freguezia do Couto de Mogofores offereceram a esta Senhora (da Paz) este cirio pelos livrar da peste em que por aquelles annos todo este reino ardia e voto solemne de todos os annos virem em procissão em outro tal dia a esta egreja com duas velas e cirio.»

Na base desta caixa lê-se: «Illumina oclos meus ne iumquam obdormiam in morte.»

LUÍS ALVES DA CUNHA

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