VÊM
dos sombrios tempos da peste que invadiu o país
em 1598 e fez milhares de vítimas entre os povos da beira-Cértoma.
A vila e couto de Mogofores, exposta à duríssima prova do maligno
contágio, tentou imunizar-se contra a terrível epidemia refugiando-se na
protecção divina.
Concentrou todas as suas esperanças na Virgem que se venerava
− e ainda
se venera − na capela do lugar do Béco, freguesia de Macinhata do Vouga,
concelho de Águeda, sob a invocação de Nossa Senhora da Paz, e os seus
habitantes acorreram ali no primeiro sábado de Setembro daquele ano a
implorar a sua intercessão que eles tinham por milagrosa. Venceram mais
de 25 quilómetros de ásperos caminhos, a pé, numa romagem de devoção e
penitência, animados pelo ardor da sua fé. Oraram e sofreram durante
dois dias numa adoração sincera e crente − diz a tradição − e por fim
tiveram a felicidade de obter a graça que pediam: o couto de Mogofores
passou incólume o período devastador da peste, o que se considerou um
milagre naqueles tempos excepcionalmente calamitosos.
Este povo, maravilhado e agradecido, elegeu esta imagem sua protectora e
ainda hoje a Ela recorrem aqueles que em horas aflitivas procuram
refrigério para os seus males.
Pela graça recebida o couto de Mogofores ofereceu um grosso círio
para ser aceso, em homenagem à sua protectora, durante as missas
celebradas naquela capela, e como este padrão da sua fé não devia ser
consumido mantinha-se o culto com duas velas oferecidas todos os anos.
Assim se faz ainda hoje para que o círio monumento continue, íntegro e
majestoso junto do altar, encerrado numa caixa de madeira, a testemunhar
através de todos os tempos a devoção dos nossos remotos antepassados.
/
78 /
Além desta oferta, o povo de Mogofores fez voto solene de todos os
anos, no primeiro sábado de Setembro, mandar uma pessoa de cada casa
prestar preito de gratidão à sua milagrosa benfeitora.
|
Assim nasceu esta romaria há trezentos e cinquenta e
quatro anos, e
neste largo transcurso a sua tradição religiosa e festiva tem-se mantido
inalterável, alimentada pelo entusiasmo juvenil das gerações que passam.
Anda à roda de 60 anos que eu assisti, algumas vezes, à partida dos
romeiros.
Fazia-se na madrugada de sexta-feira porque o percurso era longo. A
caravana formava-se no meio de grande alvoroço e seguia a pé
atravessando as povoações de Malaposta, Avelãs de Caminho, Aguada de
Baixo, Borralha, Sardão e Águeda; aqui descansava uma hora e seguia
depois por Aguieira e Brunhido, chegando ao Béco pelo meio da tarde sem
fadiga e orgulhosa da longa caminhada. Era a alma popular a dar-se
alegremente ao sacrifício, do qual só não compartilhavam os velhos ou
doentes. Para estes havia os carros do alquilador António Coelho.
Hoje há talvez a mesma fé, mas há
mais comodismo. Os automóveis do Rei, do Germano e do Júlio, oferecendo
fácil e rápido transporte a todos, apagaram o traço mais
saliente e característico desta antiquíssima romaria.
|
Caixa
que contém o círio votivo. |
A capelinha da Senhora da
Paz está
situada a cerca de um quilómetro do lugar do Béco, rodeada de meia
dúzia de casas humildes, quase perdidas num campo que só tem a vida efémera que lhe dá a feira mensal que ali se realiza.
É neste campo que os romeiros estabelecem o seu arraial, comem dos seus farnéis bem providos e formam
animados bailaricos que se prolongam até de madrugada, numa expansiva
alegria que não desvirtua o voto feito nem colide com o sentimento
religioso que os anima na comemoração festiva de um facto glorioso para
esta imagem.
Manhã alta vão os devotos oferecer as suas oblatas à Virgem e todos cumprem o preceito de voto que consiste em
ouvir missa rezada pelo reverendo pároco da freguesia e em seguida dar
duas voltas em redor da capela em procissão de cruz alçada conduzida
pelo juiz da confraria dos romeiros.
/
79 /
Concluídas estas cerimónias, todos se preparam para o regresso. A
chegada a Mogofores é pelo meio da tarde e toda a população que ficou
recebe os romeiros com manifestações de alegria.
À volta desta romaria criou-se uma lenda curiosa. O facto de o voto
feito em 1598 obrigar a esta peregrinação uma pessoa de cada casa,
incutiu em espíritos incultos e fantasiosos a crença absurda de que
todos os anos desaparecia uma pessoa do lugar sem se saber para onde
nem como se dava o desaparecimento.
A fábula radicou-se na massa ignara do povo, e talvez por ser inédita e
misteriosa, teve larga repercussão em muitas gerações dos lugares que os
romeiros atravessam, onde, em tempos que não vão longe, alguns
habitantes mais curiosos perguntavam quantas pessoas tinham desaparecido
naquele ano.
Parece que esta lenda já está de todo esquecida e só é digno de fé o que
se lê numa tabuleta que se encontra na referida capela encimando a caixa
que encerra o Círio, cujos dizeres são considerados coevos do voto e
rezam assim:
«AD Perpetuam Rei Memoriam.
Na era de Cezar MDCXXXVI e do nascimento de Christo
1598 reinando em Portugal Philippe II (o prudente) rei de Castela e o
Pontifice Clemente VIII em o primeiro sabbado de septembro os moradores da
freguezia do Couto de Mogofores offereceram a esta Senhora (da Paz) este
cirio pelos livrar da peste em que por aquelles annos todo este reino
ardia e voto solemne de todos os annos virem em procissão em outro tal
dia a esta egreja com duas velas e cirio.»
Na base desta caixa lê-se: «Illumina oclos meus ne
iumquam obdormiam in morte.»
LUÍS ALVES DA CUNHA |