DATAM
de 1911 as primeiras e bem orientadas diligências para a instalação, no
edifício do antigo Convento de Jesus, de Aveiro, do precioso Museu que
tão legítimo título de ufania para a cidade e para o distrito
constitui(1); e é desde então que num gracioso ângulo do seu delicado e
feminil claustro, como local a essa data mais apropriado, discretamente
ficou colocada uma gigantesca estátua de pedra, de 2,90 metros de altura, de
rude factura quase toda ela, e de estranho simbolismo.
Apesar das sucessivas reformas sofridas pela instalação das colecções,
como é natural, originadas quer no seu próprio desenvolvimento quer na
evolução da técnica museológica, que muito tem progredido, a referida
escultura ainda presentemente ali se conserva; a sua existência na
cidade também facilmente se pode acompanhar, e com inteira segurança,
desde o último quartel do século XVII.
O significado do impressionante monólito é que, todavia, constitui
perturbante enigma, e não apenas para o visitante comum, pois nem mesmo
entre os estudiosos se fixou ainda doutrina a seu respeito; certa
identificação erudita, enunciada numa publicação de 1911, embora
meramente ocasional e desacompanhada de justificação de qualquer
espécie, merecia absolutamente que se lhe dedicasse atenção cuidadosa e
estudo
[Vol. XVII - N.º 66 - 1951]
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98 /
exaustivo, o que não implica, de forma alguma, obrigatoriedade de
concordância com a interpretação que ela envolve do simbolismo adoptado
pelo escultor; a verdade, porém, é que já quarenta anos sobre esse
escrito decorreram e não se tem procurado esclarecer o assunto.
Na mais recente publicação, com responsabilidades de opinião, que ao
Museu se refere, e de que tenhamos conhecimento − Guia de Portugal,
3.º vol., 1944 − regista o Sr. Dr. ALBERTO SOUTO, ilustre Director da casa,
e seu distinto reorganizador, aquela mesma atribuição de 1911, que não
rejeita, sem, contudo, se pronunciar abertamente por ela, em aceitação
declarada.
O delicado problema tem-se mantido, assim, inalterável.
Reunir, portanto, o que a propósito desse monumental
exemplar de estatuária arcaica se tem aventado, e dedicar à
interpretação do seu simbolismo algumas considerações, quis-nos parecer
trabalho de alguma utilidade, que pode
transcender, até, o mero interesse local, se considerarmos a integração
da peça no reduzido conjunto de imaginária arcaica existente no País.
Com esse espírito, pois, se organizaram as breves páginas que vão
seguir-se. Enquanto o estudo exaustivo que acima solicitamos para o
importante problema não surge, baseado em mais amplo confronto do
exemplar aveirense com colecções dos Museus e monumentos do velho mundo
clássico, trabalho esse que dificilmente um arqueólogo nacional poderá
realizar, sirvam ao menos de bem intencionado incentivo as nossas
presentes considerações, que à futura apreciação de quem disponha de
melhores conhecimentos − não apenas colhidos em bibliografia e nas
reduzidas colecções portuguesas, como nós − desde já submetemos.
*
A descrição, por assim dizer
− integral, da estátua, no seu aspecto e
características originais, é possível hoje ainda; por felicidade, ela
não se encontra grandemente mutilada, nem foi desfigurada, tampouco, com
retoques ulteriores, como tantas vezes acontece em casos análogos. Além
duma
ligeira mutilação na asa esquerda do nariz, e de outra no polegar da mão
direita, falta-lhe apenas, ao que é licito presumir, um acessório que
muito possivelmente terá sido volante, e apresenta, como é natural,
aquele relativo desgaste que a acção do Tempo nela havia fatalmente de
determinar, mas que, em todo o caso, a não corroeu demasiado.
Posto isto, vejamos então
como se caracteriza, no essencial, a veneranda peça arqueológica,
simultaneamente obra de Arte, pois duma qualidade e doutra
ela participa.
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Fig. 1 −
A estátua do Museu de Aveiro (perspectiva frontal) |
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100 /
Integrado em tosca base grosseiramente pentagonal, de 0,22 metros acima do
solo, ergue-se em 2,68 metros de altura, perfazendo, por conseguinte, o total
de 2,9 metros, um corpo de gigante cuja nudez unicamente é atenuada por
ligeiro calção − espécie de manaias − que lhe desce da cinta até à parte
média da coxa. Veneranda cabeça a que não falta majestade, de fartos
cabelos(2) e barba tratados muito ao gosto clássico, remata
superiormente o corpo (todo ele em atitude de grande mas serena
firmeza, sem arrogância alguma), e mede 0,50 metros do topo dos cabelos à
extremidade da barba, que
o Artista ondeou e partiu a meio (fig. 1).
Nos olhos, o pormenor importante das pupilas gravadas. No pescoço, o
osso hyoide em acentuada saliência.
O antebraço direito flecte sobre o braço, normalmente
colocado, em posição de quem empunhasse bastão de comando, insígnia, ou
utensílio que poderia ou não vir apoiar-se no solo, mas actualmente
desaparecido e sem ter deixado vestígio de encaixe ou ligação de
carácter permanente com o bloco lapidar.
A orientação da mão direita, contudo, não se afigura
muito favorável à hipótese de nela se integrar qualquer acessório (necessariamente
volante, demais a mais) que descesse até baixo. Parece muito mais
provável tratar-se de emblema de vulto reduzido; há, no entanto, que
considerar essas duas hipóteses para a interpretação do simbolismo do
conjunto.
Adiante voltaremos a este ponto.
A mão esquerda, pendido o braço respectivo com inteira
naturalidade ao longo do corpo, segura pela cabeça uma vigorosa serpente
de 2,5 metros de comprido.
A modelação dos dedos e das unhas, consideradas as dimensões da peça e a
época remota em que este trabalho terá sido executado, é um verdadeiro
primor de expressão e de movimento, em tudo digno de nota.
O réptil, que descreve graciosa curva por detrás da figura, enlaça-lhe a
perna direita, a meia altura, volta a passar por detrás da perna
esquerda, e acaba por ondear em bem lançados movimentos até afilar em
cauda ao lado do pé esquerdo, na mesma base em que o gigante se apoia.
O conjunto, duma só peça, talhado em magnífico bloco de calcário duro
que, tendo permitido ao lapicida o difícil recorte dos braços na posição
acima referida, tem resistido aos tombos que pelos séculos fora a
estátua terá levado até
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101 /
aportar ao remanso bonançoso do claustro dominicano de Jesus, em Aveiro(3), mede, de ombro a ombro,
0,60 metros de largura, o que torna a figura
excessivamente esguia para a altura que tem; é na base do tórax que mais
se acentua essa desproporção anatómica.
A serpente e a perna esquerda, bem como a parte inferior do calção,
encostam, pelo lado de trás, a uma espécie de plinto rusticado, imitando
amontoado de pedras, e igualmente integrado na base geral (figs. 2 e 3).
Nenhuma sigla, data, ou inscrição se descobre, que ajudem a identificar o
trabalho; não é, porém, de excluir em absoluto a hipótese de qualquer
indício aproveitável aparecer, um dia em que a estátua venha a ser
afastada do conjunto arquitectónico do claustro a que se encosta, e se
possa mais comodamente examinar por todos os lados.
Se do aspecto geral da figura passarmos agora ao exame mais
pormenorizado da sua execução artística, um verdadeiro antagonismo nos
surpreende logo e fica sem explicação imediata: por um lado, a inegável
majestade e nobreza que daquela venerável cabeça irradiam, toda ela
tratada ao gosto clássico; a contrastar, porém, com a cabeça, a anatomia
rudimentar do corpo, esculpido à maneira arcaizante, quase um
intencional xoanon, e acrescido, ainda, daquela estranha e reduzida
indumentária que lhe reveste a parte média, de que em estatuária do
território que é hoje Portugal não conhecemos outro exemplar.
O calção, que à primeira vista faz aflorar a ideia dum saio lusitano,
documentado já em certo número de estátuas dos nossos Museus, quando
examinado detidamente, e em toda a volta, verifica-se que é constituído
por duas perneiras, bem cingidas ao corpo, apertado na cinta por um
cordão que passa dentro duma bainha e que vem atar à frente, ao centro,
em laçada de duas voltas e outras tantas pontas.
De forma alguma se pode pois falar em saio lusitano a seu respeito.
Houve, até, a intenção de lhe marcar o franzido provocado pelo aperto do
atilho, aliás com certa naturalidade, e ondear-lhe em baixo a fímbria,
em volta das coxas, pormenores esses que num saio lusitano se não
verificam, nem, pelo próprio corte e espessura de tal peça de
vestuário, poderiam existir. É hipótese, portanto, que fica
definitivamente afastada.
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102 /
|
Adiante daremos a nossa
interpretação da curiosa peça de vestuário.
O corpo, propriamente dito,
do gigante é sumariamente tratado: as costelas meramente riscadas, os
membros demasiado hirtos (fig. 2), de grosseira anatomia, e fraco
revestimento muscular por todo ele.
A coluna vertebral, também
simplesmente marcada por um sulco. Umbigo, mamilos e clavículas, da
mesma forma, sumariamente marcados.
Em quatro pontos apenas o
lapicida parece ter procurado esmerar-se: na cabeça da escultura, no
calção, na serpente, e na mão que a domina, como se aí desejasse
consubstanciar todo o simbolismo da obra de Arte que à sua técnica foi
confiada.
Nesses quatro pontos
residirá, pois, a explicação do mistério que envolve a estranha
figuração.
*
Apresentado assim o
problema, registemos agora as referências que pelos séculos fora se lhe
deparam, tanto quanto o nosso conhecimento alcança, bem entendido, pois
sabido é que em bibliografia jamais se consegue esgotar um assunto;
alguma coisa escapa sempre, artigo de jornal ou
de revista, às mais bem orientadas pesquisas, para arrelia eterna de
quem tudo deseja conhecer e referir.
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Fig. 2 −
A estátua do Museu de Aveiro (perspectiva lateral) |
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Dissemos acima que desde o último quartel do século XVII se pode acompanhar com segurança a existência desta escultura em Aveiro.
Assim é, de facto.
Falando do magnífico palácio do marquês de Arronches, escreve, em seguida, o licenciado CRISTÓVÃO DE PINHO QUEIMADO
na sua Memória sobre
Aveiro, de 27 de Janeiro de 1687(4):
«Mas ainda melhores casas pelo sitio sobre a porta da Ribeira são as dos
nobres
Tavares, senhores da villa de Mira, e n'esta moradores, pois egualando
com abobadas, muros, e ladeiras sobre a rua, á qual deram o seu appellido de Tavares, se entra em côche
até á primeira sala: sobre outra abobada junto da porta da Ribeira, e por cima d'esta a olhar para o
esteiro, e praça tem um jardim com flores, e plantas, onde está tambem
uma grandiosa estatua de pedra de figura humana com uma serpente
enroscada em uma das pernas, a qual é antiquissima e ha quem diga que é
do tempo dos romanos, mas isto é tradicção que me parece sem
fundamento.»
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Fig. 3 −
A estátua do Museu de Aveiro (perspectiva lateral) |
Esta, a mais antiga referência à estátua que ao nosso conhecimento tenha
vindo. Já então (em 1687) se perdera a memória da sua proveniência e
data de execução, bem como do que significava tudo aquilo.
Era contudo tradição que provinha «do tempo dos romanos»; a PINHO
QUEIMADO, isso parecia sem fundamento (porque lhe não compreendia o
perdido simbolismo), mas a verdade é que nem declara que fosse obra de
execução recente nem tampouco lhe acrescenta explicação de sua lavra, ou
de inventiva popular, o que só depõe a favor da sua honestidade de
historiógrafo.
É evidente que se o monumento tivesse a sua origem em época posterior à
da edificação do palácio ou para ele tivesse sido expressamente feito,
como adorno de jardim,
PINHO QUEIMADO não desconheceria o facto e facilmente se informaria
visto que registou a versão corrente a respeito da «grandiosa estatua de
pedra de figura humana», como ele diz, e não aludiria nesse caso à sua
grande antiguidade.
Além disso, o historiador era de Aveiro,
e não estaria, evidentemente, na idade juvenil quando escreveu a sua
descrição da vila.
Da vinda da família Tavares para Aveiro
escreveu, não
há muitos anos, um ilustre descendente seu(5), fixando datas:
«Foi aproximadamente pelo venturoso ano de 1500 que
radicou em Aveiro a nobilíssima família dos Tavares.
Nesta formosa vila, sobre as portas da Ribeira, edificou Gonçalo de
Tavares sua morada para o que lhe deu Ri Rei D. Manuel, em 24 de Março
de 1503, uma torre da muralha que a circundava...
Junto a essa torre cresceu o edifício que em 1687 o beneficiado
CRISTÓVÃO DE PINHO QUEIMADO descreve»...
Parece pois, como deixámos dito, que não se conseguirão levar além do
último quartel do século XVII, com o memorialista PINHO QUEIMADO, as
referências escritas ao gigante do jardim dos Tavares, embora devamos
reportá-las muitos anos atrás, até onde, pelo menos, a memória dos
homens de então alcançava.
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105 /
Vejamos agora as que se lhe seguem.
Aveiro, habitada então por gente de boa
nobreza do
Reino, e contando, dentro de seus muros, notáveis palácios e grandiosas
residências, decai entretanto na sua fortuna. Os séculos XVII e XVIII
são-lhe particularmente dolorosos, consequência do estado de ruína a que
a barra chegara, paralisando não só o tráfego marítimo, como o próprio
comércio interno. As condições sanitárias da vila, tornadas péssimas,
completaram os motivos de deserção de grande número de famílias, que a
outros pontos se transferiram, e o consequente abandono de palácios e
vivendas de maior vulto.
No palácio dos Tavares não se falou mais, e os historiadores e
corógrafos do século XVIII, como os P.e CARVALHO DA COSTA e LUÍS
CARDOSO, limitam-se a reeditar PINHO QUEIMADO se têm necessidade de se
lhe referir, ou omitem pormenores, que é o mais geral, como neste caso
da estátua, sem interesse para os seus pontos de vista.
Surge entretanto, com a política do Marquês de Pombal, a criação do
Bispado de Aveiro, solicitada a Clemente XIV,
a 28 de Setembro de 1773, e dele obtida pelo breve: Militantis Ecclesiae Gubernacula, de 12 de Abril do ano imediato(6). O palácio dos Tavares,
desabitado, ao que parece, pela extinção da linha primogénita da
família, em consequência de haver «falecido Manuel de Sousa Tavares,
filho de Bernardino de Sousa Tavares, senhor de Mira, comissário de
Cavalaria no Alentejo durante a guerra da Independência, e governador de
Mazagão, sem deixar fiança»... «passando
em seguida todos os seus
haveres para a coroa»(7), foi então designado para residência
episcopal(8), tendo sido beneficiado com obras importantes pelos três
prelados que na Diocese se sucederam: D. António Freire Gameiro de
Sousa (1774-1779), D. António José Cordeiro (1802-1813) e D. Manuel
Pacheco de Resende (1816-1837).
A estátua, porém, continuou no jardim, incompreendida num simbolismo que
já nada dizia àquelas gerações; a sua época tinha passado havia muito, e
ela volvera-se, de imagem falante que outrora fora, em muda esfinge cujo
segredo já nem sequer interessava os eruditos locais.
A estabilidade do novo Bispado não era grande, e o século
XIX trouxe à
Sociedade política e administrativa as alterações profundas que a
História regista.
Com o falecimento do 3.º prelado aveirense, D. Manuel Pacheco de
/ 106 /
Resende, em 1837 (27 de Março), e a decadência do Bispado,
que se acentuou a partir de então, o palácio suscitou, logicamente, a cobiça dos novos serviços públicos, sempre mal
instalados, e, em 1846, o Governo Civil e outras Repartições distritais
ocuparam o que até então fora Paço episcopal.
As necessidades de expansão da cidade, e o pouco interesse pelas relíquias do seu passado histórico, levaram em 26
de Março de 1855
(9) ao início da lamentável demolição do
lanço oriental das muralhas com que o Regente D. Pedro
dotara a terra; desapareceu o arco que constituía a entrada pela Rua dos
Tavares, e a muralha sobre a qual assentava o famoso jardim do palácio,
onde, como sabemos, se encontrava o gigante de pedra com a serpente,
objecto destes ligeiros apontamentos.
A estátua teve de ser retirada, e muito de admirar é que não sofresse
logo sumária destruição; passou então para o
quintal duma casa não muito distante, contígua ao Liceu,
antiga moradia dos Marqueses de Arronches, onde habitava
o escrivão de Fazenda Manuel Ferreira Correia de Sousa(10); aí a
conhecemos nós depois de 1900, salva de maiores
ultrajes pelos cuidados do Rev. Manuel Ferreira (Pinto de Sousa), pároco
da Vera-Cruz e filho daquele funcionário de
Finanças.
Foi deste local que em 1911 ela transitou para o incipiente Museu, donde
não mais saiu.
Chamava-lhe o povo, certamente desde remoto tempo,
o Menino-Jardim(11), e com a sua evocação temerosa facilmente costumavam as mães sofrear os ímpetos mais rebeldes das crianças
irrequietas...
É de 1852, e encontra-se no semanário aveirense Campeão do Vouga, uma carta em verso em que justamente o
Menino-Jardim fazia o comentário jocoso aos costumes académicos da
época:
Eu, estatua colossal,
Menino Jardim chamado,
Na varanda collocado
D'este Paço episcopal,
/ 107 /
Ao ver-vos surgir assim,
Do que fui, ora não sou,
Negra serpe me deixou
E já sou senhor de mim
(12)
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
Já então assim era popularmente conhecida, e não é indiferente
registá-lo, porque a própria designação documenta, bem como a poesia, a
continuidade da sua permanência no local onde em 1687 fora assinalada
por PINHO QUEIMADO.
De 1894 (15 de Junho) data RANGEL DE QUADROS o seu artigo sobre as
Muralhas de Aveiro, que vimos extratando
(13), e de quanto ao Menino-Jardim aí se encontra anotaremos ainda o seguinte, que importa ao
melhor conhecimento do problema:
[A estátua] «É extremamente corpulenta. Tem uma corôa de louros
(14) na
cabeça e da cinta até aos joelhos é coberto de uma especie de tanga. O
resto do corpo é completamente nú. Com a mão esquerda parece querer
esmagar a cabeça de uma serpente, que se lhe enrosca nas pernas.
A mão direita está erguida até quasi á altura da cabeça.»
. . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
«Sendo eu ainda muito creança, ouvi contar, esta lenda:
Um antigo senhor da mesma casa tivera um creado ou escravo preto, que
muito estimava. O Côjo (será corrupção de Fôjo?) era então um logar
pantanoso, um verdadeiro charco. Apparecera ahi uma enorme serpente, que
trazia atterrados os moradores de Aveiro e especialmente os que
ficavam mais proximos d'aquelle local. Ninguem se atrevia a atacar animal
tão formidavel. Uma bella manhã sahiu o fidalgo a passeio para aquelles
lados, acompanhado do seu escravo, que era um valente, agigantado. A
serpente apparece de subito e vae atacar o fidalgo.
O seu dedicado serviçal tratou logo de prostrar o animal, que se lhe
enrosca nas pernas. Trava-se lucta. O preto não desanimou e podendo
conseguir apertar com uma das mãos o reptil, de modo que este não
podesse respirar, assim acaba com elle. No entanto, o preto soflrera
muito com
/ 108 /
o enroscamento da serpente e ficou tão ferido que, dentro de poucos dias,
perdeu a vida.
O fidalgo, para perpetuar a
memoria do feito e por gratidão áquelle
verdadeiro amigo, que assim por elle se sacrificara, mandou erigir essa
estatua, figurando o seu servo em lucta com a serpente e mandou
collocar a mesma
estatua no terraço e de modo que por muita gente podesse ser visto.
O povo, querendo chamar, á estatua, Menino do Jardim, chamava-lhe por
abreviatura = Menino Jardim = e servia-se d'esta expressão, quando
queria dar uma resposta pouco delicada a qualquer dito inconveniente ou a
qualquer proposta pouco aceitavel.
Uma outra versão ácerca do Menino jardim, affirmava, que o preto não
morrera na lucta, mas d'esta saira incolume.»
. . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . .
«Diversas pessoas tem feito indagações ácerca d'esta
estatua. Creio, porém, que nada tem conseguido e nada
mais poderam saber, além do que ahi fica exposto.» (Op.
cit., págs. 280-282).
Já do século presente − 9 de Novembro de 1908
− são
as curiosas memórias de Aveiro, da autoria do conselheiro JOSÉ FERREIRA
DA CUNHA E SOUSA, postumamente publicadas no Arquivo do Distrito de
Aveiro (vol. VI, págs. 198 e segs.).
Uma breve referência à versão popular que tentava explicar a escultura,
e que passamos igualmente a registar, mantém a continuidade de
informações trazida desde o século XVII, o que é deveras importante.
Diz o conselheiro FERREIRA DA CUNHA:
«Sobre o jardim, no ângulo nordeste, havia uma estátua de pedra, tosca, representando um homem lutando com uma serpente,
acha-se hoje no quintal do sr. Prior da
Vera Cruz. Dizia-se então que fôra ali mandada colocar por um dos
senhores antigos do palácio em memória de um criado, única pessoa que se
atreveu a ir matar uma grande cobra
existente no Ilhote, e que fazia o terror de toda a população, criado
que uns diziam ter sido morto por ela, ou que, segundo outros,
conseguiu matá-la, sendo mais provável esta segunda versão em vista do
monumento
que lhe foi consagrado».
Interpretação meramente popular, tal como a lenda anteriormente
registada, forjada ad-hoc, e documentando não só que a primitiva
proveniência do monumento se perdera por completo, mas que até a
tradição da sua grande e insofismável antiguidade, latente ainda no
tempo do memorialista PINHO QUEIMADO, se obliterara também. Ninguém mais
pensara a sério no caso.
/
109 /
Chegou-se deste modo a Outubro de 1910.
Implantação do regime republicano e confisco mais ou
menos declarado dos bens das igrejas e congregações religiosas,
adaptados, por vezes, às necessidades da nova organização social.
Para o Convento de Jesus, de
Aveiro, de nobres e gloriosas tradições, visionou-se logo, e muito bem,
visto que a sua função específica cessara, a instalação dum Museu
regional.
O historiador aveirense MARQUES GOMES, que viria a ser o primeiro
director da preconizada instituição e que foi o seu esforçado
organizador, iniciou no semanário local "Campeão das Províncias", a
partir de Novembro de 1910, uma série de 56 artigos visando o futuro
Museu; com base neles, o Dr. JOAQUIM DE MELO FREITAS, homem de relevo
na sociedade aveirense, republicano culto e conhecedor de muita coisa do
passado da sua terra, dirige então ao Ministro da Justiça, Afonso Costa,
com data de 6 de Fevereiro de 1911, uma exposição que imprimiu, com o
título de Feixe de motivos por que na parte nobre do convento de Jesus d'Aveiro se deve installar um museu districtal ou municipal
(15),
consubstanciando assim o que em grande parte constituía a opinião
pública local, dominante na época.
Relacionando aí o que ele entendia por «Objectos que desde já podiam
integrar-se no Museu», cita, pela primeira vez, ao que parece, pois não
encontro em data anterior semelhante designação em parte alguma, «o Esculápio do jardim dos Tavares» (pág. 19, op. cit.), que outra coisa
não era senão designação nova, erudita, do velho Menino-Jardim do
apelido popular, e da grandiosa estátua de pedra de figura humana,
antiquíssima, do memorialista PINHO QUEIMADO, de 1687.
Em que fundava MELO FREITAS a sua classificação não o diz o escritor,
nem creio que alguém lho perguntasse ou com tal se importasse. As
preocupações do momento eram outras.
O Museu constituiu-se, a estátua lá se arrumou discretamente no próprio
ângulo do claustrinho onde ainda hoje se encontra, e nela se não falou
nunca deliberadamente;
apenas por incidente tem sido lembrada.
Em 1921 inicia MARQUES GOMES nova série de artigos no
"Campeão das Províncias", com destino à História do Museu
(16)
e, tendo de referir-se ao Menino-Jardim, já escreve também,
/ 110 /
embora não totalmente convencido, como se depreende da reserva adverbial
que condiciona a frase: «No angulo N. L. encostada á colunata uma
estatua de tamanho maior do
que o natural, talvez um Esculapio. Fazia parte dos jardins do antigo palacio dos Tavares, que ocupavam toda a actual praça de
Luiz Cypriano, e que o beneficiado Christovão de Pinho Queimada (sic)
descreveu assim em 1687.»... etc. (págs. 52 e 53 da separata).
Na Notícia sumaríssima [do]
Museu de Aveiro, de 1926,
já do seu novo Director, não encontro qualquer notícia da
estátua.
Mas em 1944, descrevendo as colecções do Museu no 3.º volume do
Guia de Portugal, regista o Sr. Dr. ALBERTO SOUTO a existência da notabilíssima
peça arqueológica, a ela se referindo nestes precisos termos: «A um
canto do claustro, onde ainda valem momentos de atenção os azulejos que
o decoram e que remontam aos séculos XVI e XVII, vê-se uma estátua
giganteia de bárbaro cinzelado: é o Menino-Jardim, na nomeada popular;
talvez um Esculápio, como lhe chamava o Dr. MELO FREITAS, proveniente
do jardim dos Tavares, senhores notáveis, cuja casa com seus resquícios
dos séculos XVII e XVIII, é hoje pertença do liceu.»
(17)
(págs. 486-487)
*
Percorrido assim o sector bibliográfico do problema,
embora uma ou outra referência mais possa ter escapado à
nossa inquirição, oculta em coluna de velho jornal ou em memória que não
tenhamos conseguido conhecer, é oportuno resumir, e discutir depois, as
hipóteses de identificação
/ 111 /
apresentadas, que se podem reduzir a duas, correspondendo
respectivamente à explicação popular e à interpretação erudita da
estátua:
Dum lado − a lenda do escravo negro que defende o patrão do ataque da
cobra, com a variante apresentada, mais tarde, por FERREIRA DA CUNHA.
Do outro − a declaração expressa de PINHO QUEIMADO, do séc. XVII, de que
a estátua é antiquíssima, considerada, naquela época, por alguns, como
romana, a que pode somar-se a identificação de 1911, de MELO FREITAS,
classificando-a de Esculápio (divindade greco-romana tutelar da
Medicina, como é sabido).
a) A lenda popular, digamos assim, não resiste à mais
ligeira análise.
É mais do que problemática uma exteriorização destas da gratidão
patronal, em época, demais a mais, tão anterior ao século XVII que no
tempo de PINHO QUEIMADO já nem sequer recordada seria, pois a não
menciona, preocupando-se, aliás, com a origem da estátua. O significado
desta não lhe foi, de maneira nenhuma, indiferente, como vimos, e é bem
de crer que se tenha procurado informar junto da família proprietária,
pois mostrou bem, em quanto escreveu, conhecer a terra, que era a sua, e
a sociedade local.
E quando, mesmo, o absurdo de tal historieta se pretendesse admitir, que
explicação aceitável se poderia apresentar para o flagrante decalque
duma cabeça da estatuária grega praticado pelo escultor dum monumento
destinado − na hipótese − a memorar a dedicação (ou o sacrifício, mesmo)
do escravo duma família que se fixou em Aveiro por volta de 1500? Tudo
o que se alegasse, seria, necessariamente,
forçado, e não faz sentido.
Compatível com as condições duma figuração adaptável
ao caso, haveria apenas, em todo o conjunto, se quiséssemos contemporizar com a simples aparência (desprezando o seu significado
histórico), o pormenor das manaias, ou calção.
Compatível, mas não exclusivo, e à primeira vista apenas; pois tal
indumentária, antiquíssima, coaduna-se igualmente, como veremos, com a
época apropriada à hipótese
de interpretação erudita que para o monumento nos parece preferível
propor.
/
112 /
Não é possível, de resto, inserir na lenda do escravo
que matou a cobra no Cojo a atitude majestática, de divindade, que daquela veneranda cabeça manifestamente irradia,
nem a posição, clássica e convencional, do braço direito, mais própria,
sem dúvida alguma, a insígnia solene ou bastão simbólico, do que a
varapau de criado.
O braço esquerdo e a mão que segura a serpente, pendem com inteira
naturalidade, como se se tratasse dum animal familiar, e não em luta com
o homem.
A fábula de que RANGEL DE QUADROS e FERREIRA DA CUNHA
se fizeram eco é de invenção tardia, e inteiramente popular, sem
consistência alguma, no género das etimologias populares toponímicas que por todo o país o século XIX (principalmente) espalhou, julgadas já hoje, definitivamente, pela Filologia consciente.
A própria região de Aveiro, delas foi, igualmente, vítima.
Será necessário recordar a lenda da terra de muitas aves,
invocada para justificar o nome de Aveiro, ou a do caçador de aves da
ria, assim apelidado também?
E a famosa ilha boa, proposta para étimo de
Ílhavo, com a variante,
ainda, da história do rapaz que dizia para a velha: − vamos à ilha,
avó,
e que, de tanto o dizer, deu nome à terra?
São fenómenos locais idênticos, em origem e processo.
b) Merecerão porém maior consideração as declarações
de PINHO QUEIMADO, de 1687, de que a estátua era, já então,
antiquíssima e que alguns a consideravam de origem romana?
Inteiramente o cremos, e desde já, sem rodeios nem reservas, aceitamos
qualquer dos dois pontos que a narrativa do memorialista envolve:
1.º − antiquíssima − A menos que estejamos em presença duma também antiga falsificação,
− e coisa alguma, por
enquanto, nos autoriza a supô-lo − o arcaísmo da estátua é, por si,
evidente, fugindo o seu módulo, inteiramente, à figuração da estatuária
renascentista, da manuelina, da gótica, ou,
sequer, da românica.
Como a princípio notámos já, a par duma venerável
cabeça, toda tratada ao gosto clássico, irradiando majestade
e nobreza ainda hoje reconhecíveis, e da primorosa execução
do réptil, cheio de vida e de movimento, apesar das suas
dimensões, o corpo do gigante é de modelação verdadeiramente bárbara,
rudimentar, até, se considerarmos a expressão de determinados pormenores
anatómicos.
Procurando na estatuária portuguesa, levada, mesmo, à época
pré-românica, nada se nos depara que explique uma
execução daquelas, nem, principalmente, tal concepção simbólica.
/
113 /
[Vol. XVII -
N.º 66 - 1951]
Forçoso se torna subir à antiguidade clássica e procurar na galeria dos
deuses e dos heróis do paganismo explicação aceitável para aquela cabeça
e para a simbólica do conjunto, bem como justificação social − ambiente,
digamos − para uma obra desta natureza.
Não esqueçamos, também, que toda a memória de PINHO QUEIMADO revela
profundo conhecimento da terra, escrúpulo de informação, e absoluta
integração do autor no meio social; não lhe teria sido difícil colher
noticia mais pormenorizada acerca das origens da estátua, se os
proprietários dela, ou alguém da vila, estivessem em condições de
satisfazer a sua curiosidade e de responder à sua indagação.
O próprio facto do
memorialista registar que «ha quem diga que é do
tempo dos romanos, mas isto é tradicção que me parece sem fundamento»,
documenta que ele procurou informar-se e que ponderou as opiniões
recolhidas.
Documenta mais que nos proprietários do palácio se obliterara já a
lembrança da origem da estátua, tão antiga era na casa, ou então, que
provinha deles, exactamente, a tradição de ser obra «do tempo dos
romanos».
Seja como for, à história pessoal dos Tavares em
Aveiro não andava a
estátua ligada; os seus descendentes não podiam ter esquecido um facto
acontecido com antepassados seus há muito menos de duzentos anos (visto
que vieram para Aveiro por 1500 e em 1503 lhes doou D. Manuel a torre
que serviria de base ao palácio) e a que se teria querido, na hipótese,
dar tamanho relevo e representação material tão perdurável, única no
género, até. O memorialista não seria também,
positivamente, já acima o notámos, de idade juvenil quando escreveu a
sua descrição da vila, e havia necessariamente de ter falado, desde novo,
com gente de mais idade.
É, pois, sem dúvida alguma, antiquíssima a estátua, como diz a memória
de 1687.
2.º − origem romana −
A PINHO QUEIMADO repugnou
a tradição, naturalmente porque a execução da estátua se afastava, por
falta de indumentária solene, do tipo romano que ele tinha em mente, e
porque se havia esquecido por
completo já o significado do seu estranho simbolismo. No
século XVII tudo aquilo nada significava em especial; era uma simples
curiosidade de pedra, de tempos muito remotos, que dava realce e certo
carácter de antiguidade, sempre estimados por gente de tratamento, ao
jardim duns senhores faustosos e de bom gosto.
Cremos, porém, que já a dúvida não teria surgido ao escritor se, por
exemplo, ampla túnica baixasse dos ombros do gigante, em cadenciadas
pregas, como ostenta a maioria das estátuas do panteão greco-romano, ou
as representações plásticas imperiais, mais conhecidas entre nós; ou,
ainda, se
/
114 / nudez
integral, por igual venerável, sugerisse a PINHO QUEIMADO a presença
dalgum respeitável Deus baixado do Olimpo distante, em rude efígie, a
remoto santuário da Lusitânia...
Foram, sem dúvida, as manaias (aquele plebeíssimo
calção) que desorientaram o bom do memorialista e o encheram de
escrúpulos para aceitar a tradição da origem romana endossada à
«grandiosa estatua de pedra de figura humana», que ele, não obstante,
classifica de antiquíssima.
Ora as manaias constituem, afinal, o mais seguro elemento para
documentarmos a antiguidade e a origem romana do monumento.
Em 1.º lugar, aquela invulgar indumentária não se apresentaria, nunca,
ligada a tão solene peça escultórica por mero acaso e se não tivesse
significado próprio; é absolutamente incompreensível e indefensável a
hipótese de um simples capricho, ou fantasia, do Artista.
Depois, é possível apresentar, não em Portugal mas em
Espanha, pelo menos uma escultura da época romana não só de relativas
afinidades simbólicas com a estátua do Museu de Aveiro, mas vestida de
indumentária equivalente (o que não quer dizer, de forma alguma, que o
significado das duas estátuas seja o mesmo, diga-se desde já, e frise-se
devidamente). É o Cronos leontocéfalo do Museu de Mérida, achado nesta
cidade em 1902, e de significação definida.
Tronco inteiramente nu, e simples calção cingido à cinta por cordão
idêntico (apenas mais volumoso) ao das manaias do Menino-Jardim.
Notável, até, a semelhança do enrugamento desta peça de vestuário numa e
noutra estátua. Uma serpente, também, se integra no conjunto, envolvendo
por completo o corpo do deus, infelizmente bem mais mutilado do que o do
Museu de Aveiro, ao passo que, no exemplar que estamos estudando, o réptil enlaça unicamente a sua
perna direita.
Identificada, pelo menos, desde 1912 pelos arqueólogos
GOMES-MORENO e J. PIJOAN no cuaderno primero dos Materiales de Arqueología Española
(18), como
representación
/
115 / principal
del culto mitriaco, esse cuerpo de varón bragado, envuelto
par una serpiente, ... «puede atribuirse al siglo II después de Cristo.» (fig. 4).
As
bragas (o tal calção, espécie de manaias, do Menino-Jardim),
como o barrete frígio, eram indumentária característica dos soldados
persas, que trouxeram consigo, para Roma, o culto de Mitra, espalhado,
depois, pelo Império com as expedições militares romanas.
O cerro de San Albin, junto a Mérida, parece ter sido, justamente, um
santuário importante da religião mitraica, e o Museu daquela cidade
espanhola conserva outros exemplares escultóricos documentadores
daquele culto, em dois dos quais podemos ver as bragas, embora não
constituam, como no Cronos leontocéfalo e no Menino-Jardim, a indumentária única da estátua.
À parte da Lusitânia, integrada, hoje, em
Portugal, também o culto de
Mitra chegou, localizando-se, mesmo, um Mithraeum em Tróia, junto a
Setúbal, à beira-mar, onde se encontrou um
baixo-relevo notabilíssimo, alusivo ao culto de Mitra, e no qual figuram
personagens bragadas e uma serpente, peças
/
116 /
importantes do simbolismo daquela religião
(19). Em Olissipo igualmente
se documenta a existência do referido culto.
O Rev. EUGÉNIO JALHAY dedica ao baixo-relevo de Tróia sábias
considerações no fasc. 5: do voI. XLVI da revista Brotéria (1948),
terminando o seu relato com as seguintes interrogações:
«Finalmente, notemos também a circunstância de o
Mithraeum de Tróia
estar situado numa feitoria ou entreposto de embarques, que outra coisa
não parece ter sido essa antiga povoação. No grande porto de Óstia, que
então e ainda hoje é o porto marítimo de que se serve Roma, havia nada
menos que cinco
(20).
Seria o deus Mitra um protector especial dos
viajantes? Teria vindo de Óstia, através do Mediterrâneo e do Atlântico,
o baixo-relevo de Tróia
(21)?»
VERGÍLIO CORREIA (O domínio romano) reproduzira também o referido
baixo-relevo no 1.º vol. da História de Portugal, de Barcelos, fazendo
dele um breve relato (págs. 251 e 257). GARCIA Y BELLIDO (op. cit.)
reproduz igualmente, e descreve, a figuração mitraica de Tróia.
Adiante voltaremos ao assunto, frisando apenas, por agora, que o
pormenor das manaias do Menino-Jardim, longe de afastar a hipótese
de a estátua datar da época luso-romana,
parece, antes, contribuir poderosamente para dar razão àqueles
contemporâneos de PINHO QUEIMADO que assim a consideravam «ha quem diga que é do tempo dos romanos»)...
Ao característico vestuário consagra o conhecido
Dictionnaire des Antiquités grecques et romaines d'après les textes et les monuments, de
DAREMBERG et SAGLIO, a seguinte nota:
«Bracae ou Braccae −
Les braies ou pantalons ont été, presque jusqu'à la
fin des temps anciens, considérés par les Grecs et les Romains comme un
vêtement caractéristique des Barbares1. Tandis que tous les peuples
qu'ils qualifiaient ainsi (au moins en Europe et en Asie) se défendaient
contre les intempéries de climats très inégaux, en s'enveloppant les jambes et les cuisses de pantalons tantôt larges et flottants, et
comparables à des sacs, que les Grecs appelaient pour ce motif Θúλαχοι 2,
tantôt étroitement ajustés, aucune pièce du costume ne leur
/ 117 /
paraissait à eux-mêmes plus étrangère et n'était plus en dehors
de leurs habitudes. Elle est très fréquemment représentée dans les
oeuvres d'art, où elle sert toujours à faire reconnaître des
personnages ou des divinités barbares [BARBARI]. 3
Cependant il vint un temps
où des Romains qui habitaient
ou faisaient la guerre dans les pays des Barbares, obéirent à leur
tour à la nécessité qui avait forcé ceux-ci à se couvrir les jambes.
Dans les bas-reliefs de la
colonne de Trajan, où sont représentées les campagnes de cet empereur
dans les contrées voisines du Danube au commencement du II.e siècle, on voit un
très grand nombre de Romains,
soldats et officiers, portant des chausses étroites qui descendent un
peu plus bas que le genou. La figure 873, détachée d'un de ces bas-reliefs,4 permet d'examiner
cette partie du
costume, en quelque sorte
séparément; car le soldat qui la porte a le reste du corps nu. On voit que
la culotte était serrée autour de la taille, probablement à l'aide d'une
ceinture (πεpίξωμα)5 pareille
à cette des braies gauloises. Dans les figures voisines, et dans celles
qu'on peut observer sur d'autres monuments, la cuirasse ou la cotte
couvrant les hanches ne permet pas de saisir ce détail.
. . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
1 HEROD. V, 49; VII, 61;
EURIP. Cycl. 182; CIC.. Ad fam. IX, 15, 2: «braccatae nationes»;
cf. ln Pison. 23; VIRG, Aen. Xl, 777: «barbara tegmina
crurum»; TAC. Hist. lI, 20: «braccae barbarorum tegmina»;
OVID. Trist. V, 7, 49: «laxis arcent male frigora braccis»; cf. IV,
6, 47; V, 10, 34; et JUV. VIII, 254; HYGIN. Poet. astr. I, 8.
2 ARISTOPH. Vesp. 1087; Schol. EURIP.
Cycl. 482; Hesych.
3 Voy. les exemptes reproduits aux articles BARBARI, AMAZONES, AUXILIA, SCYTHAE, PARIS, MITHRAS,
etc.
4 FROEHNER, Col. Trajane, pI. LXIX et XX.
5 VARR. ap. J. Lyd. De magistr. lI, 13, Cette ceinture est
visible dans les bas-reliefs de l'arc d'Orange, (Caristie, Monum.
d'Orange, pl. XVI), où des braies sont figurées parmi les dépouilles des Gaulois; Comp. les braies trouvées dans les tourbières
du Jutland (ENGELHARDT, Thorsbjerg Mosefund). Voy. aussi
de Longpérier, BulI. de l'Athenaeum français, 1856, p. 42.»
Só dentro da figuração habitual ao culto de Mitra ou então nas
representações iconográficas de barbari, que os romanos
empregavam em seus monumentos, aquela peça de vestuário tem
/
118 / explicação e se encontra. Ora a religião mitraica espalhou-se no
mundo latino por virtude, principalmente, das expedições militares dos
romanos. E passado o período da dominação romana, uma estátua destas não
fazia sentido nem a civilização cristã a admitia ou justificava.
Temos, pois, como verdadeira a tradição de que
PINHO
QUEIMADO duvidava.
Assim, a estátua pertence (quanto a nós, bem entendido) à época luso-romana, quer represente uma figura do panteão de Mitra, quer um
bárbaro da estatuária decorativa romana.
Na fig. 6 reproduzimos o baixo-relevo do monumento
de Adamclissi, na Dobrogea, que representa justamente um
/
119 /
bárbaro prisioneiro dos romanos, vestido com as características bragas, como a estátua do Museu de Aveiro; e comunica-me o Prof.
ALEXANDRE PHILADELPHEUS, antigo director do Museu nacional de Atenas,
que outros prisioneiros bárbaros, idênticos, se encontram esculpidos num
arco triunfal em
Saint-Rémy (França); e na Grécia, em Corinto, a porta triunfal da Agora
apresenta, ligadas a quatro colunas da ordem
coríntia, outras tantas colossais estátuas de cativos bárbaros, no
género da figura em causa.
Na Bulgária e na Roménia, outras se conhecem também, segundo aquele
eminente arqueólogo, meu distinto amigo.
Desejaríamos extratar as obras de LABORDE e ESPÉRANDIEU
a propósito de prisioneiros gauleses do império romano, e
bem assim as de BEMIDORF e NIEMANN, mas a bibliografia de
que em Portugal se dispõe é muito limitada e com isso nos
temos de conformar.
Declarámos acima que às palavras de PINHO QUEIMADO associávamos,
para a
constituição global da interpretação erudita da estátua, a atribuição de
MELO FREITAS, embora por ele indocumentada.
Estamos, segundo o escritor aveirense, em presença dum Esculápio. Sem
reticências ou reservas de espécie alguma
ele o afirma; não lança sequer a ideia a título de hipótese; escreve =
o Esculápio do Jardim dos Tavares = (loc. cit.),
como se se tratasse de identificação há muito assente e incontestável,
não obstante debalde a termos nós procurado por toda a bibliografia
aveirense.
Vimos ainda a simpatia
condicionada – talvez um Esculápio – com que MARQUES GOMES e, por último, o Sr. Dr. ALBERTO
SOUTO, acolheram essa identificação
(22).
Analisada, tanto quanto nos foi possível, a
composição
escultórica, e fixados alguns pontos que se nos afiguram suficientemente
comprovados, é oportuno, agora, perguntar se
/
120 /
aquela estranha composição poderá, de facto, ser uma estátua de
Esculápio, e se, na realidade, o será.
Esculápio, o Asclépios da mitologia grega, deixou suficiente registo nos
mais consagrados escritores do velho Mundo; referem-lhe os divinos
predicados HOMERO, HESÍODO, PÍNDARO, PAUSÂNIAS, GALIENO, ESTRABÃO, e
outros mais. Às
suas substanciais narrativas tem ido historiadores e biógrafos de todos
os tempos buscar a base de quanto, a seu respeito, povoa as mitologias,
as enciclopédias, e os dicionários da Fábula.
A descoberta, já no século presente, de magnífico material arqueológico exumado de variadíssimos santuários(23), e
a atenção que a esse remoto período da história da Medicina tem sido
prestada por eminentes Professores da especialidade, como os italianos
ADALBERTO PAZZINI e PIETRO CAPPARONI, e, em França, JULES GUIART e
LOUIS LENOURY, permite-nos trazer ao perturbante problema o confronto,
sempre
vantajoso, de elementos muito para ponderar e que se afiguram fundamentais.
Não só a título informativo, como, ainda, para fixarmos
ideias necessárias, caracterizaremos Esculápio utilizando para isso as
páginas a ele consagradas pelo grande historiador da Medicina, na
Universidade de Lyon, Prof. JULES GUIART, seguramente um dos mais
recentes e cuidadosos estudos que o assunto tem merecido:
«ESCULAPE. –
ASKLÉPlOS ou ESCCLAPE parait avoir vécu au XIll.e s.
avo J. C. HOMÈRE n'en fait nullement un dieu, mais
il parle de lui comme du plus grand médecin de l'époque. Il était
prince de Tricca et d' Ithome, villes de Thessalie situées au pied
de la chaîne de Pinde. II passe pour avoir inventé un remède
souverain contre les hémorroïdes, une sonde pour explorer les
plaies, l'art de panser celles-ci avec des bandelettes et des ligatures, l'art enfin de réduire les fractures et les luxations. Quant à
ses remèdes, ils consistaient principalement en racines et en
infusions de plantes, dont CHlRON lui avait enseigné les vertus. Il mêlait aussi les charmes et
les enchantements à la pratique médicale
et croyait, comme ORPHÉE et CHlRON, aux effets salutaires
/
121 / et à l'action calmante de la musique. Si l'on en
croit
GALIEN, on lui doit aussi d'avoir jeté les premiers fondements de l'hygiène: pour vivre vieux et bien portant il conseillait en effet la
sobriété, jointe aux exercices du corps, teIs que la
gymnastique, les courses à pied et l'équitation. Avec le temps son
caractère humain disparut et la reconnaissance des hommes l'ayant
divinisé, il prit pIace dans l'Olympe grec, comme fils d' APOLLON et
comme dieu de la médecine.
Voici maintenant sa légende telle que la
racontent les poètes.
Plusieurs fables courent sur sa naissance, toutefois, d'après la plus
répandue, il serait le fils de la nymphe CORONIS et d' APOLLON. La nymphe,
déjà enceinte des oeuvres du dieu, l'aurait trompé avec un simple mortel. ARTÉMIS, pour venger son
frère, tua l'infidèle d'une de ses flèches. Mais APOLLON, voulant sauver
l'enfant, ouvrit le ventre de la mère aussitôt après sa mort et c'est
ainsi qu' ESCULAPE naquit par opération césarienne. C'était la seconde,
la première ayant été pratiquée par MERCURE sur SÉMÉLÉ, pour donner le
jour à Dionysos.
L'éducation d'ESCULAPE fut alors confiée à CHlRON, qui lui apprit le
traitement des blessures et les vertus des simples, ce qui constituait
toute la chirurgie et toute la médecine de l'époque. Plus tard il prit
part, en qualité de médecin, à la fameuse expédition des Argonautes, où il se rencontra avec HERCULE et
ORPHÉE. Les princes grecs, qui l'accompagnaient, furent tous atteints
de maladies diverses, dont il les guérit, aussi revint-il en Grèce avec
une renommée considérable. Dès lors il accomplit des guérisons tellement merveilleuses que PLUTON s'en émut, et,
craignant de voir les Enfers se dépeupler, le fit foudroyer par JUPlTER.
Dès qu'il fut mort on lui rendit les honneurs divins.
ESCULAPE est généralement représenté sous les traits d'un homme mûr,
barbu, portant une chevelure assez longue que ceint parfois un bandeau;
son visage doux et grave rapelle celui de
JUPlTER. Il est généralement drapé dans un manteau ramené
sur le bras gauche, de manière à envelopper les jambes, mais en laissant
le bras droit et la poitrine à decouvert; les pieds sont chaussés de
sandales. Il s'appuie toujours sur un bâton autour duquel s'enroule un
serpent. On raconte que se trouvant un jour dans la maison d'un de ses
malades ESCULAPE vit venir à lui un serpent, la gueule menaçante,'
instinctivement il tendit son bâton et la bête s'y enroula. Telle serait l'origine du
fameux «bâton serpentaire», dont on a fait l'attribut de la médecine,
mais que l'on confond presque toujours avec le caducée de MERCURE,
symbole des messagers et des marchands n'ayant rien à voir avec la
médecine. Aux Pieds du dieu on voit parfois l'omphalos de Delphes, la
Pierre sacrée d'APOLLON. Cest qu'en effet le culte d'ESCULAPE est né de
celui d'APOLLON, le père ayant simplement délégué ses pouvoirs à son
fils pour écouter
/
122 /
les prières des malades et les guérir. Nous verrons du reste qu'à
Epidaure, si ESCULAPE est à la peine, APOLLON du moins partage avec lui
les honneurs.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Les serpents jouaient un grand rôle dans le culte d'ESCULAPE;
c'étaient en somme les animaux qui lui étaient consacrés. Le
Serpent, divinité chthonienne est en effet le symbole de l'inspiration prophétique, comme il est aussi
l'emblème de la santé,
car il se rajeunit sans cesse en quittant sa vieille peau. Les
prêtres égyptiens les entouraient déjà d'un véritable culte, mais, en
Grèce, le redoutable Cobra se transforme en une inoffensive couleuvre,
que les prêtres d'ESCULAPE dresseront, comme nous le verrons plus tard, à différentes supercheries médicales». (La
Médecine Crecque aux temps heroïques de Minos à Homere;
1925, págs. 32-35).
Os clássicos DAREMBERG et SAGLIO, por sua vez, caracterizam Esculápio nestes precisos termos (op.
cit.):
Presque toujours Esculape est
figuré vêtu d'un manteau qui, laissant le bras droit et une partie du buste découverts, est
ramené sur le bras gauche et enveloppe les jambes à peu près entièrement.
Il tient ordinairement le bâton du voyageur,
autour duquel s'enroule un serpent, symbole de divination chez
les Crecs et qui est l'acolyte de toutes les divinités médicales. Ses
autres attributs les plus ordinaires sont une coupe, un rouleau ou une
tablette pour écrire, l'omphalos de Delphes, le globe
du monde . . . . . . . . . . . .
Outre le serpent, qui manque rarement à côté de l'image d'Esculape,
le chien lui était consacré, en mémoire de celui qui l'avait découvert sur
le mont Titthéion, et la chèvre en souvenir de celle qui l'avait nourri;
mais, à cause de ce souvenir même, on s'abstenait en beaucoup de lieux
de la sacrifier. On offrait au dieu communément un coq.
As descrições da figuração escultórica de Esculápio assemelham-se na
generalidade dos arqueólogos, razão pela qual não acumularemos muitos
mais depoimentos; transcreveremos unicamente MAXIME COLLIGNON, e CAGNAT
et CHAPOT;
diz o primeiro destes autores:
L'art archaïque le représente jeune et imberbe. Dans la
statue chryséléphantine exécutée pour Sicyone, Kalamis avait encore
suivi cette tradition, et représenté le dieu imberbe, appuyé
sur un sceptre, tenant en main une pomme de pin. À quelle
date s'introduit dans l'art le type plus âgé qui finit par prévaloir,
et que reproduisent la plupart des statues conservées?
Otfried Müller attribue cette innovation à un artiste de l'école
pergaménienne, Phyromakhos, auteur d'une statue d'Asclépios
consacrée dans le Niképhorion de Pergame. Mais avant cette date, l'art
industriel du IV.e siècle connaissait déjà te type classique du
dieu-médecin: les ex-voto trouvés sur l'emplacement
/
123 / de l' Asclépiéion d'Athènes ne permettent pas d'en douter. L'école de
Phidias, en créant l'idéal de Zeus, a sans doute aussi mis en faveur ce
nouveau type d'Asclépios, qui offre avec celui de Zeus les plus grandes
analogies.
«Dans l'art, le dieu de
la médecine est une sorte de Zeus, aux traits
adoucis; l'expression du visage, quelques fois imberbe, est clémente et
sereine; sa large poitrine est à découvert, et l'himation
jeté sur l'épaute drape le bas du corps. Il s'appuie sur un
sceptre, ou sur un bâton noueux; un serpent s'enroule à ses pieds. C est
le type que reproduisent les
monnaies de
Pergame, dans le groupe où il est associé à Hygie et à
Télesphoros, et ta statue de Florence qui est peut-être inspirée par
l'oeuvre de Phyromakhos»; (op. cit.,
pág. 314) – fig. 7.
Esculape(24), (Aesculapius), resumem os consa-grados CAGNAT e CHAPOT
no clássico Manuel d'Archéologie romaine (T. l, 1917, pág. 421),
romain n'est autre chose que l'Asklépios des grecs. C'est
d'ailleurs d'Épidaure que, pendant la terrible peste de 290 avant
J. – C., on avait fait venir un des serpents familiers du dieu de la médecine, qui, à l'arrivée devant Rome, avait quitté son navire et
gagné l'île du
Tibre. Les rites du culte restèrent en ltalie ce qu'iIs étaient, de même
que l'image du dieu. C'est celle d'un homme mur, à longue barbe, les
cheveux parfois ceints d'un bandeau; il porte presque
/
124 / toujours un manteau qui laisse découverts le bras droit et une partie du
buste, et ramené sur le bras gauche, mais qui enveloppe à peu près
compIètement les jambes. Son atribut spécifique est le bâton du médecin en tournée, bâton noueux, fait sans
doute d'un bois à lui consacré et autour duquel le serpent s'enrouIe.
Généralement Esculape est debout; tantôt íl a le bâton
appuyé au creux de l'aisselle droite, la main gauche dissimulée
dans les replis du manteau; à ses pieds l'omphalos, pour une
raison qui nous échappe(25); tantôt il manie un bâton plus
court, n'atteignant qu'à mi-corps
(26), et
il place la main líbre
sur la hanche; ou il présente une patère(27), ou íl tient un
volumen(28), voire un bouquet de pavots(29).
Plusieurs animaux lui sont
consacrés: le chien, en souvenir de celui qui l'avait
découvert enfant, exposé sur une montagne; la chèvre, en
mémoire de celle qui l'avait nourri; le coq, qu'on avait coutume de lui
sacrifier.
Esculape n'apparait guère couché ou assis que dans les bas-reliefs(30) et alors accosté d'habitude de sa fille Hygie
déesse de la santé, dont les Romains ont conservé le nom, traduit à
l'occasion par Salus ou Valetudo. Le type de celle-ci
est moins fixe que celui d'Esculape.
Através das transcrições que acima ficam, já o leitor a
quem o assunto interesse pode fixar ideias acerca do tipo escultórico usual representativo de Esculápio (fig. 8); propositadamente
sacrificámos a brevidade da exposição, transcrevendo
por extenso aqueles descritivos, porque por experiência própria conhecemos como será difícil compulsar a bibliografia
da especialidade, mormente a quem viva longe das grandes
bibliotecas; espécies houve, que desejaríamos consultar, e
que, não obstante toda a diligência empregada, não lográmos encontrar não só em Coimbra como nas bibliotecas de Lisboa; e as que
citamos não são, também, vulgares.
Fixou-se, como dizemos, o tipo clássico de Esculápio.
Mas as variantes, de
pormenor, nos acessórios próprios,
são numerosas. Se DAREMBERG et SAGLIO registam, por exemplo, que «un certain nombre de statues qui
ont été conservées, concordant avec les médailles, nous montrent
Esculape sous les traits d'un homme mûr, barbu, portant
/ 125 /
une chevelure abondante que ceint un bandeau», LOUIS LENOURY, por
sua vez, que dedicou magnífica dissertação à história do caduceu
(31),
não há muitos anos, frisa bem
expressamente que «dans les statues d'Esculape, le serpent n'est pas
toujours enroulé autour du bâton. Il est tantôt libre, tantôt enroulé
autour du bras ou autour du corps»...
Dans le sanctuaire
d'Épidaure, Esculape avait une statue d'or et d'ivoire, oeuvre du
sculpteur Trasymides, de Paros. II était représenté assis sur un
trône, la main gauche appuyé sur le bâton traditionnel, mais le serpent se tenait libre à la droite du dieu qu'en
effleurait
la tête du bout des doigts. Cette statue nous est connue par les monaiies
d'Épidaure et par la description donnée par Pausanias.» (pág.
41).
No Esculápio de Ampúrias, por exemplo, existente no Museu de Arte e
Arqueologia de Barcelona, e reproduzido por GERHART RODENWALDT no
volume consagrado a Arte Clásico (Grecia y
Roma)
(32) e também em
/
126 /
ANTONIO GARCÍA Y BELLIDO, Hispania Graeca, III, láminas LVII a LX, e
descrito no voI. II, págs. 130 e segs., que discute a proveniência
daquela obra de arte, a serpente não se enrolava no bastão: «le faltan
los anteblazos y el baston rústico característico; pero se conserva,
como pieza aparte, la serpiente enroscada».
Exemplos de bastões volantes, por vezes de bronze, não escasseiam
também, conquanto a interpretação outorgada por LENOURY a esta peça seja
a de que se não trata dum bastão mas dum autêntico tronco de árvore,
alusão, justamente, à Arvore da Vida.
A história e interpretação moderna desses dois símbolos
– bastão e serpente – reunidos tanto no caduceu de Mercúrio
como na figuração de Esculápio, são curiosíssimas e encontram-se traçadas com superior erudição na obra de LENOURY
e em MARCEL BAUDOUIN, Préhistoire du Caducée; não as reeditaremos aqui
porque nos afastariam do objectivo limitado das nossas considerações,
conquanto intimamente com ele se relacionem, fácil nos sendo, por
consequência, a articulação respectiva se necessário fosse ou se
pretendêssemos alongar-nos.
Não nos embrenharemos, também, na discussão do mito de Esculápio e sua
relacionação com o culto solar, nem tampouco na explanação da tese da ofiolatria(33), pois, embora
tudo aqui pudesse encontrar cabimento, considerado o nosso
especial ponto de partida, a verdade é que não só não temos
interesse de qualquer natureza em alongar estas breves notas, como
inteiramente reconhecemos nada poder acrescentar de novo, neste momento,
para o debate dessas conhecidas teses, interessantíssimas, aliás.
Diremos apenas que a Lusitânia conheceu e praticou
o culto de Esculápio. LEITE DE VASCONCELOS (Rel. da Lusit.,
IlI, 263) regista inscrições dedicadas ao deus em S. Tiago
de Cacém, em Lisboa, em Vizela e em Braga.
HUBNER (Notícias arqueológicas de Portugal) cita e transcreve duas
provenientes das termas da Rua dos Retroseiros, de Lisboa, e nos
Elementos para a História do Município de Lisboa, vols. I, III e VIII,
o templo consagrado a Esculápio é igualmente referido, bem como na
Revista Archeologica (pág. 33 do voI. III) em artigo de BORGES DE
FIGUEIREDO.
Acrescentaremos, por nossa vez, que no Museu de Beja se encontra uma
estátua daquela divindade, revestida de himation, à qual falta já a
cabeça.
/
127 /
Da fixidez dos tipos escultóricos clássicos dão-nos
conta PERROT et
CHIPIEZ, notando que, ao contrário do que no fetichismo acontece, pois
lhe é indiferente a forma.
...«ll en est tout
autrement des dieux du polytheïsme. L'artiste est
appelé à les distinguer par le choix et par la combinaison des formes dont il se sert pour créer des
types dont chacun
doit être la traduction sensible d'une idée générale.
. . . . . . Tel est le principe que la statuaire grecque s'est
efforcéé d'appliquer, et un plein succès a couronné son effort.
Devant un fragment de torse viril, I'archéologue saura dire si
c'est celui d'un Zeus, d'un Hermes, d'un Apollon ou d'un Bacchus.
Suivant que le sculpteur se sera proposé de représenter
tel ou tel de ces dieux, il aura donné plus ou moins de largeur aux
épaules, et plus ou moins de fermeté aux chairs de son marbre.
Là ce seront des muscles puissants, signes d'une force adulte
qui bat son plein; ici on sentira la vigueur sèche et nerveuse
de l'éphèbe rompu aux exercices de la palestre; ailleurs le contour sera plus souple: il
ira même parfois jusqu'à rappeler les
rondeurs du corps de la femme et à rendre le sexe presque douteux. Que
si l'on vient ensuite à retrouver la tête qui complète la statue, tout y sera en rapport avec
le caractère du buste,
tout, jusqu'au moindre détail de la face, la fraîcheur d'une peau lisse
et tendue ou les rides qui sillonnent le front, la chevelure assemblée
en grandes masses qui donnent à l'ensemble un air de majesté, ou courte
et dure comme un fin gazon, ou bien encore relevée en chignon sur le sommet du crâne
et répandue sur le cou en boucles maltes et tombantes, Ia barbe enfin, qui est
ample et fournie chez un Zeus, un Poseidon ou un Esculape, tandis qu'il
n'y en a pas trace sur le menton de ceux des immortels, Apollon et
Bacchus, que l'imagination a voulu
parer des grâces d'une jeunesse éternelle.» (Histoire de l'Art dans
l'Antiquité, pág. 21 do vol VII).
Observaremos contudo que nos
períodos mais adiantados
já da estatuária greco-romana e, principalmente, fora dos países de
origem, onde as oficinas dispunham de modelos de inteira pureza e a
tradição se mantinha ainda viva, a confusão é, por vezes, possível, e o
arqueólogo encontra-se, não raro, em dificuldades, quando o emblema
diferenciador desapareceu
por mutilação ou porque constituísse acessório volante, que
se juntava à estátua.
Exemplo curioso da dificuldade que a falta dum atributo decisivo faz,
encontra-se em PIERRE PARIS, Le Musée archéologique National de Madrid
(1936); descrevendo bronzes hispânicos, reproduz (PI. XLII) uma figura
barbada, tronco nu,
descalça, himation envolvendo o corpo da cinta para baixo
e traçado sobre o braço esquerdo, mão direita não se percebe bem como, e escreve: «un Esculape (?) ou simplement
/
128 / un orateur dont une heureuse patine
noire fait valoir par un habile jeu de lumière et d'ombre la noble tête phidiesque, le vigoureux torse
nu et la draperie largement plissée
qui enveloppe la taille et les jambes. C'est, dans la série
nombreuse et trop souvent banale des images du dieu
debout, présentant sa coupe à remèdes, une des plus vivantes et du style le plus dégagé.
É fundamental, portanto, a peça característica de cada
tipo de divindade, e o seu desaparecimento pode induzir o
arqueólogo em erro, ou levá-lo, prudentemente, a reservar uma
classificação definitiva da peça em discussão.
Será este último o caso da estátua do Museu de Aveiro,
pelo desconhecimento irreparável que há do emblema por
ela exibido, outrora, na mão direita.
Percorrendo a colecção que a antiguidade nos legou, de
figuras de deuses e de heróis, várias cabeças encontramos
absolutamente idênticas à da estátua aveirense, representando, por
exemplo, Júpiter, Neptuno, Hermes, Diónisos,
Esculápio, Hércules.
Por esse lado, portanto, a atribuição lançada por MELO
FREITAS em 1911 podia aceitar-se, embora outras lhe pudessem igualmente caber se considerássemos apenas a cabeça.
A posição da serpente também não impede a sua aceitação pois sabemos já que muito variou através dos tempos;
além disso, articulando a sua presença com o módulo clássico da cabeça do gigante, a hipótese de se tratar dum Esculápio justifica-se. Não sei, mesmo, se tal associação se não
deverá considerar decisiva para a identificação, pois a não se tratar
dum Cronos mitraico – o que não poderá nunca ser,
visto faltar a cabeça de leão, colocada, ao menos, em miniatura, sobre o peito, e não se encontrarem vestígios de asas,
mesmo postiças, de encaixar – a serpente não poderá constituir característica fundamental senão de Esculápio, dentro,
evidentemente, dos tipos clássicos, impostos à nossa consideração pelo módulo grego da cabeça e pela época luso-romana que supomos dever assinalar-se à feitura da estátua,
visto excluirmos, por enquanto, a hipótese de se tratar duma
falsificação, inábil, do século XVI, que o pormenor das bragas, e as invulgares dimensões da estátua nos levam a rejeitar, sem que mais fortes razões se invoquem para essa cómoda solução.
Com um tridente na mão e um golfinho ao lado (ou
mesmo sem ele) poderíamos pensar num Neptuno (fig. 9);
com um tronco de árvore, ou massa, na mão, e com uma pele de leão, seria
Hércules. Etc.
A serpente, porém, enroscada na estátua, faz pender
grandemente o prato da balança a favor de Esculápio, se,
evidentemente, excluirmos a hipótese dum emblema na mão
/
129 /
[Vol.
XVIl - N.º 66 - 1951]
direita, hoje desaparecido, incompatível com Esculápio e decisivo a
favor doutro; essa particularidade dificilmente
virá a obter solução; só pelo
aparecimento doutra estátua, idêntica e completa, a poderia ter.
Percorrendo a copiosa relação dos principais atributos das divindades,
cuidadosamente organizada pelos arqueólogos franceses R. CAGNAT e V.
CHAPOT (Manuel d'Archéologie romaine, I, 467 e segs.), encontramos a
serpente a condicionar a simbólica de Aesculapius, Apollo, Bacchus, Bonus
Eventus, Ceres, Cybele, Genius, Genius Mithriacus, Hecate, Hercules (infans),
Hygia, lsis, Mithra, Nantosvelta, Pluto, Rosmerta, Sabazius, Salus;
excluindo, da lista, as oito divindades femininas aí relacionadas, a
figuração das dez restantes, masculinas, só no caso de Esculápio coloca
em posição primacial, que pode chegar até excluir por completo qualquer
outro atributo, a serpente.
Mas o pormenor das bragas, como resolvê-lo?
A presença de tal peça de indumentária, de características e
proveniência definidas, significaria então, muito simplesmente, que a
estátua proviria da oficina dum centro mitraico, e teríamos assim
perante nós um caso interessante de adaptação dum velho mito a uma ideologia diferente; sobreposição de
civilizações: diríamos, por exemplo, um Esculápio mitraico; em vez do
clássico himation, que
aparece em quase todas as figurações do deus da Medicina, as bragas
características dos adeptos de Mitra, que assim teriam englobado no seu
panteão aquela divindade grega, de culto muito espalhado em todo o mundo
clássico.
/
130 /
Exemplos de adaptações dessas fornece-nos em abundância a história das
religiões de todos os tempos, sem exclusão, sequer, do cristianismo.
FRANZ CUMONT, o historiador máximo do mitraísmo,
regista, com exemplos vários, que o mazdeísmo sofreu alterações de
adaptação em contacto com os cultos indígenas; «certains rapprochements
entre les conceptions réligieuses des deux races durent fatalement se
produire.» (Les Mystères
de Mithra, pág. 16, 2.ª ed.).
E mais adiante:
«Un certain nombre de figures ont été empruntées telles
quelles aux tvpes traditionnels de l' art gréco-romain,
Ahura-Mazda, détruisant les monstres soulevés contre lui, est un Zeus
hellénique foudroyant les géants; Verethraphna est transformé en un
Hercule; Hélios est l'éphebe à longue chevelure monté sur son quadrige habitueI, Neptune, Vénus, Diane, Mercure, Mars, Pluton, Saturne se
présentent à nous sous leur aspect ordinaire avec les vêtements et les
attributs que nous leur connaissons de longue date. De même les Vents,
les Saisons, les Planètes avaient été personnifiés avant la propagation
du mithriacisme, et celui-ci n'a fait que reproduire dans ses temples
des modèles depuis longtemps vulgarisés.» (pág. 184).
...«comme le judaisme alexandrin, le mazdéisme en Asie-Mineure s'était
humanisé sous l'influence de la civilisation hellénique. Transporté dans
un monde étranger, il dut se plier aux usages et aux idées qui y régnaient, et la faveur avec laquelle il
fut accueilli l encouragea à
persévérer dans sa politique conciliante. Les dieux iraniens, qui
escortèrent Mithra dans ses pérégrinations, furent adorés en Occident,
sous des noms grecs et latins; les yazatas avestiques y revêtirent
l'apparence des immorleIs siégeant dans l'Olympe, et ces faits
suffisent à montrer que, loin de témoigner de l'hostilité aux vieilles
croyances gréco-romaines, la religion asiatique cherche à s'y accommoder,
du moins en apparence. Un myste pieux pouvait, sans renier sa foi,
consacrer une dédicace à la triade capitoline Jupiter, Junon et Minerve;
il prenait seulement ces appelations divines dans un sens différent de
leur accéption ordinaire.» (págs. 149-150).
No próprio mithraeum de Mérida (segundo PIERRE PARIS,
citado por VERGÍLIO CORREIA na História de Portugal, ed. de Barcelos, voI. I, pág. 249) apareceu uma estátua de Esculápio, «de tronco
nu,
teatral e vulgar»
(34), o que favorece a coexistência,
/
131 / de resto evidente, do culto de Esculápio na sede de tão
importante mithraeum como foi Mérida.
Uma oficina daí ou dalgures terá lançado a simbiose dum Esculápio, ou do
deus de que na verdade se trate, envergando as bragas de Mitra, deus
supremo da ocasião. Demais a mais, Mitra era venerado como sendo o deus
que distribui a saúde à Humanidade.
Mera hipótese, é claro, e natural desejo de encontrar explicação
racional para o estranho simbolismo da estátua aveirense.
Como quer que seja, verifica-se que a oficina donde a estátua provém
deve ter sido inteiramente distante de Roma, e muito reduzidas as
possibilidades artísticas do escultor; a cabeça, tê-la-á copiado duma
moeda ou dum ex-voto, tudo isso perfeitamente acessível; ainda conseguiu
dar vida ao réptil e à mão que o domina, mas já lhe não foi possível
vencer as dificuldades do material e das dimensões da estátua no resto
do corpo, que lhe saiu como se vê
(35), caso se não devam considerar
retoques, já do tempo dos Tavares, certos pormenores anatómicos mais
estranhos, como os vincos das costelas e da espinha dorsal.
Em resumo, portanto: para a estátua arcaica do Museu de Aveiro poder
representar um Esculápio, como queria MELO FREITAS em 1911, teremos de o
aceitar então influenciado pela iconografia mitraica; assim
condicionada, poderá ser, de facto, o deus da Medicina; doutra forma,
não. Mas decidir, agora, se, na verdade, aquele velho gigante pretendeu,
ou não, interpretar a figura de Esculápio, é resposta que dificilmente,
no estado actual dos nossos conhecimentos, se poderá dar; pelo menos,
enquanto o desconhecimento do emblema da mão direita subsistir.
Doutras estátuas arcaicas, assim incompletas, dizia avisadamente PIERRE
PARIS (op. cit., pág. 106): Pour la plupart
/
132 / nous devons nous contenter de les désigner comme gréco-romaines, car
elles manquent de ces traits particuliers qui classent les écoles.
Escrevendo da conhecida estátua de efebo da
Villa Albani, assinada por
Stéphanos, discípulo de Pasitelès, e que é do tipo de Argos, do tempo de
Agélaidas, MICHEL FOLMAN
(Introduction à l'étude de la Sculpture archaïsante-greque et greco-romaine), Paris, 1935, pág. 18) anota: «La structure du corps, les épaules larges et saillantes, la forme de la tête,
l'agencement des cheveux, l'attitude raide, le geste conventionnel, sont
pris d'un modèle archaïque».
Lá como cá... e mais não acrescentaremos.
*
Outro problema a considerar é, ainda, o da presença da
descomunal estátua em Aveiro, qualquer que seja a interpretação que
venha a ser atribuída ao colosso.
Donde terá ela vindo?
Trabalho de oficina local não é; Aveiro propriamente
dita não se documenta na época luso-romana; duma cabeça
de Jano que há poucos anos ainda se dizia ter sido encontrada na cerca
do próprio convento de Jesus, depois Museu, foi esclarecida pelo Sr. Dr.
FERREIRA NEVES (Arquivo do Distrito de Aveiro, voI. XI, de 1945, pág.
48) a proveniência: veio de Portalegre, trazida pelo Engenheiro-Director
das Obras Públicas, João Honorato da Fonseca Regala. A esse
esclarecimento posso acrescentar – e nunca é de mais insistir no
restabelecimento da verdade – que o próprio organizador do Museu a que
ela foi doada – JOÃO AUGUSTO MARQUES GOMES – deixou registada aquela mesma
declaração de proveniência na história do Museu de Aveiro que iniciou
no
Campeão das Províncias, em 1921, como acima dizemos
(36);
e por igual forma LEITE DE VASCONCELOS se lhe refere no artigo
que em defesa de MARQUES GOMES publicou no Diário de
Notícias, em 24 de Novembro do mesmo ano
(37); temos presente qualquer
das duas peças bibliográficas.
/
133 /
Dos arredores de Aveiro não faltam estações romanas, como é sabido;
nenhum santuário, porém, se registou ainda no qual a estátua de Aveiro
pudesse estar integrada, o que, aliás, não quer dizer que não venha a
encontrar-se.
Há, portanto, o problema do transporte para Aveiro, quer referido ao
tempo dos Tavares (1503) quer antes, visto que podia o gigante ter sido
trazido anteriormente já para a vila, por outra família de tratamento e
curiosidade.
Consideradas as dimensões e peso do monólito, os deficientes meios de
transporte e os caminhos da época, só uma hipótese é plausível: a
estátua deve ter vindo embarcada; doutro modo não chegaria inteira ao
seu destino. E se não foi esculpida na própria sede do santuário donde
os Tavares (ou quem a trouxe para Aveiro) a recolheram, há ainda a
considerar o primitivo transporte da oficina para o santuário; pelas
mesmas razões acima apresentadas, esse transporte tinha de ser por mar;
e assim, parece legítimo concluir que tanto a oficina como o santuário
que primeiro recebeu a imagem terão de ser, necessariamente,
procurados em locais confinantes com o mar ou cursos de água.
A análise laboratorial do calcário em que ela foi talhada é elemento
científico de primeira ordem que não pode ser dispensado no estudo
definitivo do problema, que apenas enunciamos e cuja complexidade
invulgar absolutamente reconhecemos.
Já acima vimos, aliás, que o porto de Óstia, na Itália, foi apontado por
EUGÉNIO JALHAY como possível proveniência do baixo-relevo mitraico de
Setúbal (Tróia), donde teria vindo «através do Mediterrâneo e do
Atlântico».
E FRANZ CUMONT declara, em consequência do especial estudo a que dedicou
a sua vida inteira:
«Nous avons des preuves nombreuses qu'une bonne partie des sculptures
destinées aux cités provinciales était, sous l'empire, exécutée à Rome.
C'est probablement le cas pour quelques-uns de nos monuments trouvés en
Gaule, et même pour ceux qui ornaient un mithréum de Londres.») (op.
cit., pág. 182).
«Néanmoins la majorité de nos monuments a sans
aucun doute été exécutée
sur place.... la certitude d'une fabrication indigène ressort pour
beaucoup d'autres encore de la nature de la Pierre employée.» (pág.
193).
O jardim dos Tavares, em Aveiro, ficava, como é sabido, sobranceiro ao
esteiro; as condições de desembarque não podiam ser mais favoráveis.
E que o transporte do pesadíssimo bloco se fez sem prejuízo do seu
recorte escultórico, a integridade da estátua, ainda hoje verificável, o
demonstra.
/
134 /
Que concluir então?
Que estamos em presença duma figuração que não cabe
nos moldes definidos até ao presente?
Esteticamente, já acima o frisámos, a serena majestade daquela veneranda
cabeça impede-nos de aceitar que a figura seja a dum prisioneiro
bárbaro; do mesmo modo a posição solene, convencional, do braço direito,
e a serpente, contrariam a hipótese, pois tudo isso ficava sem
explicação plausível: apenas o problema das bragas receberia solução
aceitável.
Quanto a data, logo de princípio registámos que os olhos do gigante
apresentam pupilas gravadas, circunstância essa que nos leva a colocar o
trabalho para aquém do século II depois de Cristo, de acordo com a
cronologia fixada para
outras estátuas romanas da Península por GARCIA y BELLIDO (op. cit.) e
por outros arqueólogos bem documentados.
Tenho, pois, para mim, e enquanto demonstração convincente se me não
fizer do contrário, que a estátua do Museu de Aveiro é obra da arte
romana provincial do séc. III e que representa uma figura mitológica do
panteão greco-romano (deus, semi-deus, génio ou herói), a que a
ideologia mitraica não é estranha.
O século IV afigura-se avançado demais para uma obra desta natureza,
atenta a transformação social de então, iniciada com o Cristianismo.
Em Materiales de Arqueología española, notam com justeza os arqueólogos
GOMES-MORENO e PIJOAN que se encontram «hoy, pasados ya los tiempos
heroicos de WINCKELMANN, que fijó los tipos de los Inmortales»; novos
horizontes se apresentam e novas hipóteses surgem; «a WINCKELMANN, para
sus investigaciones, eran suficientes los mármoles de las colecciones
romanas; hoy es necesario inventariar todo lo que se encuentre de
esculturas clásicas, hasta los pequenos bronces y tierras cocidas, donde muchas veces se descubren rasgos de
los modelos perdidos.»
Chamando, pois, a atenção dos arqueólogos nacionais e estrangeiros para
a escultura arcaica do Museu de Aveiro, e divulgando, pela gravura e
pela transcrição da bibliografia respectiva, a sua existência
multi-secular, limitamo-nos, por agora, a enunciar os votos seguintes:
1.º – que a veneranda estátua possa, muito em breve, ser retirada do local
onde provisoriamente se encontra desde 1911, com prejuízo da sua
conservação (pois sobre ela descarregam as águas duma conduta dos
telhados), e que seja recolhida onde se possa examinar e estudar
convenientemente.
/
135 /
2.º – que se promova largo debate crítico acerca do seu
simbolismo e data, a fim de tudo ser definido com a
possível segurança e de harmonia com o excepcional interesse que este raro exemplar de estatuária
arcaica – único em colecções portuguesas – indiscutivelmente apresenta.
Ao distinto Director do Museu
– Senhor Dr. Alberto Souto – a quem a
história de Aveiro e dos seus tesouros,
culturais sempre mereceu inteligente e carinhosa atenção,
confiadamente entrego o apelo aqui formulado para que a
intenção que o ditou não venha a ser inteiramente perdida
e possa receber, por seu prestigioso intermédio, o apoio oficial de que necessita.
Será mais um serviço, e valioso, a somar aos muitos que à cidade de
Aveiro e à Arqueologia nacional dedicadamente
tem prestado e que todos os estudiosos lhe reconhecem, tributando-lhe a elevada gratidão de que, por seu muito merecimento, se
tornou credor.
ANTÓNIO AUGUSTO DA ROCHA
MADAHIL |