HÁ
duas inscrições no nosso distrito que precisam de ser estudadas. Está uma na Igreja de S. Lourenço do Bairro e outra na igreja de Lamas.
Da primeira tratou ANTÓNIO DE VASCONCELOS, neste
Arquivo de Aveiro, voI. VII, págs. 55 a 57.
Já me referi à segunda no volume XIII, no meu artigo «Santa Maria de
Lamas». Estas inscrições são conhecidas há muito tempo, sobretudo a da
igreja de Lamas.
Da de S. Lourenço do Bairro diz ANTÓNIO DE VASCONCELOS: «Foi desenhada
e aberta pelo lapicida numa placa de calcário das pedreiras de Ançã, em
belas letras capitais, umas redondas outras angulares, misturadas com
algumas
unciais, todas elas de formas bem conhecidas por serem vulgares em
títulos de livros ou capítulos nos códices caligráficos dos séculos Xl e
XII, assim como nas melhores inscrições da época. Tem muitas letras
conjuntas, outras inclusas, algumas suprimidas com indicação de sinais
braquigráficos, mas tão distintamente desenhadas e tão nitidamente
gravadas que a sua leitura não oferece embaraços a quem não seja
inteiramente analfabeto em epigrafia.»
Também a inscrição de Lamas foi desenhada e aberta
numa pedra de Ançã, mas nesta as letras são quase todas alemãs maiúsculas. Dou em seguida a
leitura das duas e respectivas traduções, seguindo quanto à de Lamas o
Santuário Mariano, que na forma ortográfica diverge um pouco da
inscrição, como pode ver-se pela fotografia.
S. Lourenço do Bairro
Sob honore sancti Laurencii
peIagiolus presbiter hanc edifi
cavit
ecclesiam quam cero
perfectam Vermudus conimbri
afie ecclesie religiousus dedicavit
Episcopus VIII calendas novembris
era MaCCXVIlIl |
Em honra de S. Lourenço, o presbítero pelagiolo edificou esta
igreja
a qual concluída tardiamente, foi sagrada
por Bermudo, religioso bispo da igreja Coimbra, no dia 8 antes dos
Calendas de novembro da era de 1219. |
[Vo1. XVII -
N.º 66 - 1951]
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82 /
Santa Maria de Lamas
Dedicata fuit haec ecclesia de
Santa Maria de Lamas ab Episcopo
Dom
Michaelo Colimbriensi
et per manus Veremundi eccle-
siae Presbyteri, sub era 1208
sexto idus Maii, in festivita-
te sanctorum Gordiani Epi-
machi, in honorem sanctae
Mariae Virginis, ano ab ln-
carnatione Dei 1170 regnante
apud Portugale Alfonso comi-
tis Henrici et Reginae Theresiae
filio, multorum sanctorum
Reliquiae in
praefactas ecclesiae
altaribus habentur de sepulchro
B. Mariae Virginis, et reliquiae
Sanctorem Felicissimi et Aga-
piti, S. Sebastiani, et sanctae
Marinae et de Sepulchro Domi-
ni, et qui scripsit vivat in
aeternum. |
Esta igreja de Santa Maria de
Lamas foi consagrada pelo bispo
de Coimbra
D. Miguel por
mãos de Veremundo presbítero
da igreja, na era de 1208,
dez
de Maio dia dos santos Gor-
diano e Epimaco, em nome
de Santa Maria Virgem,
ano da Encarnação do
Senhor de 1170, reinando
em Portugal Afonso, filho
do Conde D. Henrique e
da Rainha Teresa. Há
nos altares desta igreja
relíquias de muitos santos
do sepulcro da Virgem Maria
de S. Felicíssimo e Agapito
S. Sebastião e Santa Ma-
rinha e do sepulcro do Se-
nhor. Tenha vida
eterna quem escreveu isto. |
Haverá entre estas duas inscrições alguma outra relação além da
contemporaneidade? Penso que sim. Já por várias vezes, em artigos
anteriores, me referi às invasões de Almansor, no fim do século X, e
como elas foram, sobretudo a
de 998, a ruína dos povos da beira-mar, com a destruição de
suas riquezas e templos. A reconstrução destes, sem exceptuar mesmo as
Sés do Porto e Braga, só se fez, vagarosamente, no correr dos dois séculos imediatos.
S. Lourenço do Bairro e Santa Maria de Lamas, vilas agrícolas, a que se
reteremos documentos antigos, vem certamente dos tempos romanos,
atravessando as dominações goda e árabe, na sua função produtora,
respeitada por todos. Tiveram seus templos, que Almansor não poupou,
pois lhe ficavam à beira da estrada de Lisboa ao Porto, por onde seguiam
as suas tropas vitoriosas. E como estas, muitas outras. Não sei como à
roda da Igreja de Santa Maria de Lamas se formou a lenda de que ela era
a mais antiga de toda a região. Já disse e tenho elementos para dizer
que esta lenda não tem fundamento. Outras igrejas se reconstruíram muito
antes de Santa Maria. A de Valongo, já em 1110, isto é, 60 anos antes,
estava reconstruída. Por circunstâncias desconhecidas, aqueles dois
templos de Santa Maria de
Lamas e de S. Lourenço do Bairro só nos aparecem reconstruídos em 1170 e
1181. A de Lamas foi sagrada em tempo
do bispo Miguel, por mão de Bermudo, a de S. Lourenço foi
sagrada pelo bispo Bermudo. No meu artigo Santa Maria
/
83 / de Lamas sugeri que o Bermudo, por cujas mãos foi sagrada a igreja de
Lamas, era o mesmo Bermudo que depois foi bispo, isto é, aquele que em
1181 vem a sagrar a igreja de S. Lourenço do Bairro. Desta maneira, os
dois templos foram sagrados pelo mesmo sacerdote.
Não temos conhecimento de outras lápides comemorativas da sagração dos
templos em terras do Vouga. Acredito que outros existiram e foram
perdidos em novas reconstruções. E que essas inscrições lapidares não se
destinavam só a perpetuar a memória de um acontecimento importante, eram
também e sobretudo documento necessário à prova dos direitos
jurisdicionais do bispo perante o rei e perante o mosteiro de Santa
Cruz.
O mundo cristão é obra dos apóstolos, e desde o seu tempo vem abrindo os
braços por todas as partes da Terra. O mundo católico romano é sonho de
Gregório VII, realização sua e dos seus imediatos sucessores com a
cooperação do mosteiro de Cluny. No ocidente peninsular, especialmente
no condado portucalense, os bispos não só não obedecem a Roma, como
ainda tinham um ritual e leis canónicas sobre o casamento e família que
divergiam muito dos romanos. Gregório VII ainda tentou mandar um
emissário a entender-se com Sisenando e D. Paterno, primeiro bispo de
Coimbra depois da reconquista. Mas este morreu no caminho e Gregório VII
pouco lhe sobreviveu. Pode dizer-se que a romanização eclesiástica do
condado só começou com D. Henrique e os bispos que com ele ou em seu
tempo vieram − monges de Cluny − Geraldo de Braga, Maurício de Coimbra.
O processo foi longo e fez-se por dois modos: − o da subordinação
directa dos bispos ao papa, e o da isenção dos mosteiros da jurisdição
dos bispos para os colocar na sujeição imediata de Roma. Quer dizer, a
par da hierarquia eclesiástica que punha na cabeça o papa, este criava-se
com os mosteiros um poder paralelo e de algum modo inimigo dos bispos
com que se assegurava da obediência destes. Este último caminho foi o
mais demorado.
Há no alvorecer da história portuguesa gigantes adormecidos que precisam
despertar na nossa consideração e respeito: o santo Arcebispo Geraldo; o
diabólico arcebispo Gelmires de Compostela; o hábil político João
Peculiar,
também arcebispo de Braga. É sobretudo ao compostelano
que Portugal deve a sua existência; é ao último que deve a plenitude da
sua independência política. Sem a protecção e amizade de Diogo Gelmires,
D. Teresa não podia sustentar-se na doação de seu pai, depois da morte
do conde Henrique; sem a cooperação inteligente e eficaz de João
Peculiar, Afonso Henriques não se teria libertado tão facilmente da
vassalagem ao Imperador de Leão e Castela.
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84 /
O bispo D. Gonçalo de Coimbra morreu em 1128,
D. Teresa e seu marido ou amante, Fernando Peres de Trastâmara, tinham resolvido entronizar a D. Telo, Arcediago,
mas a revolução que deu o governo a Afonso Henriques,
não lho permitiu. Afonso Henriques entronizou Bernardo,
por não ter confiança em D. Telo. Este fora companheiro
do falecido bispo D. Gonçalo, amigo do metropolita de
Compostela. Afonso Henriques queria a independência
política de Portugal e a restauração da igreja portuguesa
em Braga.
Pouco tempo depois, porém,
Afonso Henriques estava
nas melhores relações com D. Telo.
Este D. Telo foi o fundador do mosteiro de Santa Cruz.
D. Afonso Henriques também se intitula seu fundador.
D. Telo foi o executor; Afonso Henriques o grande protector;
a luz que orientou os passos dos dois foi sem dúvida a inteligência e
astúcia de João Peculiar, monge de Cluny, e mestre escola da Sé de Coimbra. Este Homem, forte em acção
e espírito, procurava realizar dois interesses que já vinham
combinados desde os primeiros tempos do conde D. Henrique; o religioso, de subordinação dos bispos a Roma e
criação de mosteiros livres da jurisdição dos bispos e na
obediência directa ao papa; o político, da criação da igreja
portuguesa servindo a Portugal independente.
É minha opinião que, durante os governos do conde
D. Henrique e de D. Teresa, os movimentos dos bispos
portugueses obedeceram sempre ao ritmo do interesse dos
governantes. Não é este o lugar próprio para tratar deste
assunto, nem o comporta o programa do Arquivo. Basta-nos
por agora dizer que a rejeição de D. Telo, a eleição de Bernardo e a fundação da Santa Cruz, parecem obedecer ainda ao mesmo
pensamento, isto é, ao interesse político do governante.
Criado o mosteiro dos Cónegos regrantes de Santo Agostinho, logo as desinteligências surgiram entre ele e o bispo.
Este entendeu tê-lo sob a sua jurisdição imediata e obrigou
os cónegos a actos de humilhação afirmativa desta obediência.
Dirigiram-se a Roma D. Telo e João Peculiar a solicitar do
papa Inocêncio II a isenção para o seu mosteiro. E o papa
concedeu-lha pelo breve de 20 de Maio de 1135. Quer dizer,
o mosteiro e todas as terras que tinham sido doadas e aquelas
que de futuro por qualquer título lhe viessem a pertencer,
ficaram isentas da jurisdição do bispo e sujeitas ao mosteiro.
Um bispado dentro do bispado. A guerra entre a Sé e o
mosteiro durou séculos. Estudou-a ROCHA MADAHIL no seu
valioso e fecundo trabalho «O Privilégio do Isento de Santa Cruz de Coimbra».
É para este estudo admirável e sem
dúvida o mais completo sobre o assunto, que remeto o leitor.
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85 /
O bispo D. Miguel Salomão governou o bispado de
1162 a 1176. Durante o
seu tempo o mosteiro triunfou largamente. O bispo fez-lhe largas
concessões, reconheceu o Isento obrigando os cónegos pela força a
assinarem, no que era apoiado por Afonso Henriques. As liberalidades
deste bispo deram origem a alguns dos lances mais violentos de luta
entre o mosteiro e a Sé. Miguel fora cónego de Santa Cruz e daí a razão
das liberalidades. Bermudo sucedeu a este bispo. E foi ele que sagrou a
igreja de S. Lourenço em 1181, como na qualidade de presbítero da igreja
de Coimbra, e como representante de D. Miguel, tinha sagrado a de Lamas
em 1170.
Salvo o devido respeito, parece-me que as palavras «quam
cero perfectam»
da inscrição de S. Lourenço assim traduzidas: «a qual concluída
tardiamente» podem levar a supor que o
bispo quis com elas fazer uma espécie de recriminação por aquela obra
ser feita tão tarde, como quem lembra que era obrigação ter-se feito
antes. Creio que é bem diferente o real significado delas: o presbítero
Plagiolus tinha construído aquele templo mas não o tinha concluído. Este
trabalho de conclusão só foi feito muito mais tarde. Isto aconteceu lá como aconteceu noutros lugares, em todos os tempos. Os templos
raramente são feitos de uma assentada, são algumas vezes cuidado de
várias gerações. Foi o que aconteceu com a actual igreja de Lamas, que
levou cem anos a construir.
Na lápide de S. Lourenço chama-se Bermudo
religiosus episcopus. Deve
ter sido amigo e partidário de Miguel. A menos, não consta que tivesse
tomado alguma atitude contra o mosteiro, para desfazer os erros de
Miguel, como fizeram os seus imediatos sucessores. Esta circunstância e
o ele chamar-se religiosus levam-me a crer que também Bermuda
fosse um cónego de Santa Cruz e, portanto, um continuador e respeitador
da obra de Miguel, isto é, um respeitador do isento. Reconhecer o isento
era reconhecer a circunscrição territorial na qual se exercitava a
jurisdição de Santa Cruz, ao lado da circunscrição onde chegava o poder
do bispo. As lápides são assim uma demonstração de que as duas igrejas
pertenciam à jurisdição episcopal e indirectamente o reconhecimento da
outra jurisdição, o que nenhum outro bispo, nem antes nem depois, fez.
AUGUSTO SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |