F. Ferreira Neves, O jazigo da casa dos Maias, em Aveiro, Vol. XVII, pp. 30-35

O JAZIGO DA CASA

DOS MAIAS, EM AVEIRO

A CASA dos Maias, de Aveiro, teve o seu jazigo nas duas capelas laterais da igreja do convento de Carmelitas descalços de Aveiro, por mercê de D. Brites de Lara e Meneses, padroeira deste convento e senhora das ditas capelas(1).

Esta igreja era e ainda é hoje da invocação de Nossa Senhora do Carmo.

O contrato referente ao padroado e capelas foi feito por esta ilustre senhora com os frades por escritura de 25 de Agosto de 1626, lavrada pelo tabelião Belchior Correia de Vasconcelos e trasladada pelo tabelião Domingos Gomes Pimentel, sendo João da Maia de Araújo procurador de D. Brites de Lara e Meneses.

Esta, quando veio residir para Aveiro, era já viúva de D. Pedro de Médicis, irmão do Grão-duque da Toscana, e do seu matrimónio não tinha tido filhos. Aqui passou a viver como numa pequena corte, tendo tomado para sua camareira-mor D. Maria Dias de Araújo, casada com António da Maia, ambos naturais da próxima vila de Esgueira.

Vamos ver como as duas referidas capelas entraram na posse dos Maias.

João da Maia Araújo ou simplesmente João da Maia, filho destes, veio a ser veador de D. Brites de Lara e Meneses, a qual, mais tarde, para o honrar e recompensar pelos muitos serviços que já lhe tinha prestado, fez-lhe doação da capela da parte do Evangelho, em 9 de Julho de 1635, para si e seus herdeiros e suas sepulturas e de seus parentes. A esta capela foi dada a invocação de Nossa Senhora do Pilar.

À sua segunda camareira-mor, D. Inês da Silveira, que então a servia, doou, em data não distante da precedente, / 31 / a outra capela da parte da Epístola, para si e seus herdeiros, e para suas sepulturas. Esta capela teve a invocação de S. Sebastião, e mais tarde, a de Santo Cristo.

Estas doações foram confirmadas por D. Brites de Lara e Meneses no seu testamento feito em 13 de Maio de 1647 por mão de frei Manuel de S. Jacinto, pregador Geral da Ordem dos Pregadores e morador no convento de S, Domingos de Aveiro.

Este testamento foi aprovado no dia 22 do dito mês e ano pelo escrivão Baltasar Pais Coelho, da vila de Aveiro, e aberto em 4 de Junho de 1648, dia do falecimento da testadora, pelo Dr. Simão Rodrigues Taborda, juiz de fora de Aveiro; foi em seguida lançado no maço primeiro da provedoria da comarca de Aveiro, desde folha 9 verso até folha 15 verso, e no livro de notas de Baltasar Pais Coelho desde folha 46 até folha 69.

A referida D. Inês da Silveira faleceu em 9 de Fevereiro de 1637, sem geração, e ainda em vida de D. Brites de Lara. No seu testamento pedia a esta que ficasse administradora da capela que lhe havia doado ou que para ela nomeasse administrador.

D. Brites de Lara e Meneses nomeou então administrador desta capela ao dito João da Maia e depois dele a seus herdeiros. Assim ficou este na posse das duas capelas, a qual se transmitiu a seus descendentes durante cerca de um século. Nestas capelas foram sepultados os seus administradores e outros membros da família dos Maias, até à extinção da Casa,

Para esclarecimento do que fica dito, transcrevemos de um manuscrito do século XVIII os passos do testamento de D. Brites de Lara e Meneses referentes às doações das capelas a D. Inês da Silveira e a João da Maia.

«Ignez da Sylveira m.ª camareira mor me servio 46 annos com tanta liald.e e amor como a todos hé notório pelo q. eu lhe fiz m. de hũa capella em o meu con.to de N. Sr.ª do Carmo desta villa por hũa carta m.ª aqual está escrita em pergaminho, firmada por m.ª mão; e selada com o selo de m.as armas em cera vermelha com fita azul pendente na qual capella q. hé da parte da Epistola está sepultada, quero, e mando, q se guarde esta carta de m. da d.ª capella assim e da maneira q. nella se contém com missa cotidiana perpetua, que se comessou a dizer desde o dia do seu falecim.to com o q. lhe fasso m. e pago seus servissos.

«João da Maya cavalr.º da ordem de Christo fid.º de m.ª caza meu veador me servia m.tos annos como fiel, verdadeiro, e lial creado, por lhe fazer m. e pagar servissos lhe passei hũa carta em q lhe fiz m. da capella / 32 / da p.te do Evang.º do meu Conv.to de N. Sr.ª do Carmo em q está sepultado, a qual carta está em pergaminho escrita firmada com o sinete de m.as armas impressas em cera vermelha asinada por m.ª mão com fita vermelha pendente na qual capella tem missa cotidiana perpetua q comessou a se dizer desde o dia do seu falecim.to com juro perpétuo de vinte mil reis cada hum anno como a de Ignez da Silveira em q eu digo q eu quero e mando, q se págue, e dê aos Rilig.os do d.º meu conv.to do Carmo, e assim mando se guardem todas as clauzulas das d.as cartas q são passadas na forma da escritura q com os d.os Rilig.os celebrei q.do me institui padroeira.

João da Maya cavalr.º da ordem de Christo fid.º de m.ª caza e meu veador ficou por herdeiro de Ignez da Sylveira m.ª camareira mór, a qual me pedia em seu testam.to foce administradora da sua capella de q lhe fiz. m. ou nomiace administrador q.m me parecese: Logo então q D.s a levou p.ª si, nomiei administrador na forma do testam.to a João da Maya, e depois delle nomiei administradores a seus herdeiros pello q eu declaro o q hei feito, e se hé necessário aqui de novo fasso nova nomiação de administradores aos herdeiros de João da Maya assim da maneira q conforme o testam.to e direito devo fazer.»


D. Brites de Lara e Meneses exarou ainda no seu testamento o seguinte:

«Em caso q se existem algũas demandas, ou dúvidas sobre a execussão deste meu testam.to e comprim.to da escritura q fiz sobre o meu conv.to de N. Sn.ra do Carmo, ou Provisoens das duas capellas de João da Maya meu veador q foi e de Ignez da Silveira m.ª camareira mór q foi, mando q o que agenciar as tais demandas, e impugnar por execussão deste meu testam.to, escritura, e provizoens se lhe dê por dia tanto quanto parcer a meus testamenteiros o q. efectivam.te se pagará.»

A carta que D. Brites de Lara e Meneses mandou passar a João da Maia em 1635 é do seguinte teor, conforme o referido manuscrito:

«D. Brites de Lara, e Menezes, f.ª dos Ex.mos Duques de Vila Real viuva de D. Pedro de Médicis meu sn.r filho dos sereniss.os Grão Duque da Toscana, etc.

Havêndo resp.to aos m.tos annos q João da Maya caval.ro do habito de Christo meu veador e fid.º de m.ª caza tem continuado em meu servisso, e ao grande zelo, e satisfação / 33 / [Vol. XVII - N.º 65 - 1951] com q sempre procedeu nelle, e por desejar de lhe fazer m.ce hei por de lhe dár hũa capella no meu Mostr.º de N.ª Sr.ª do Carmo de Rilig.os descalsos desta villa de Aveyro q hé a q fica logo abaixo do altar colateral do cruzeiro da parte do Evangelho da qual lhe fasso m. de hoje p.ª sempre p.ª elle e seus herdr.os, e poderá nella mandar fazer sepultura ou sepulturas p.ª se interrar elle e seus sucessores e parentes, e mais pessoasq elle, ou q.m dipois delle possuir a d.ª capella ordenarem, de maneira q seja seu interro proprio, e ao diante o será dos seus na forma q elle quizer, e outro sy poderá nela instituir a obrigação de missas e mais sufragios q lhe parecer, e no retabolo do altar pôr as imagens a q tiver mais devoção; de modo q a d.ª capella tenha a invocação q elle escolher, e em tudo a ordene, e disponha como couza sua q hé, e p.ª isso poderá logo tomár posse della com authorid.e de justiça, ou sem ella, e mandar pôr o escudo das suas armas no arco, ou fronteespicio, e nas mais partes q quizer, e fazer todos os mais actos de verdadeiro sn.r, e possuidor da d.ª capella, a qual elle e seus descendentes, e herdr.os possuirão sempre livre sem incargo algum de a ornar, ou fabricar, porq pello contrato q tenho feito com os Rilig.os do d.º meu Mostr.º tem elles obrigação de fabricar, e ornar os sinco altares, q são meus, e na forma em q a d.ª cap.ª era minha, e a possuira se não fizéra m.ce della, com a mesma liberdade, e izenção será do d.º João da Maya a q.m a dou, e ao R.do Prior e mais Rilig.os encomendo lhe deem a posse da d.ª capella, e o reconheção por s.r della; e porq assim me apraz todo o sobred.º lhe mandei passar p.ª seu titulo esta carta de m.ce e doação por mim assinada e selada com o meu sinete. Dada em Aveyro aos 9 dias do mez de Julho Thome de Pinho a fez por mandato de S. Ex.ª de 1635.
D. Brites de Lara e Menezes».

O dito João da Maia, comendador da Ordem de Cristo, da igreja de S. Salvador de Tangil, faleceu solteiiro e sem geração, em 22 de Dezembro de 1646, ainda em vida de D. Brites de Lara e Meneses e foi sepultado na sua capela de Nossa Senhora do Pilar. A ele sucedeu seu irmão António da Maia de Araújo que tomou posse das duas capelas em 12 de Março de 1647, e faleceu em 16 de Agosto de 1667, tendo sido sepultado também na referida capela.

Nesta foram também sepultadas sua mulher D. Maria Ana de Andrade da Gama e sua irmã, D. Branca da Maia Araújo, que depois do falecimento de seu marido, Jacinto da Rocha Pimentel, foi também camareira-mor de D. Brites de Lara e Meneses e faleceu em 5 de Maio de 1674. / 34 /

António da Maia Araújo casou-se com D. Maria Ana de Andrade da Gama em 9 de Abril de 1628 e dela teve doze filhos, dos quais o mais velho foi João da Maia da Gama.

Este era ainda de menor idade quando D. Brites de Lara e Meneses fez o seu testamento, mas nele lhe legou um juro perpétuo de cinquenta mil reis. Assim, declarou:

«A João da Maya da Gama criei, e por amor q lhe tenho lhe deixo e quero fazer m.ce pello q ao d.º João da Maya da Gama deixo sincoenta mil reis de juro perpetuo de q se póde tirar padrão com tal condição q elle os não poderá vender, dár, alienar, trocar, descambar, hipotecar, senão q delles e nelle se fará hua fórma de morgado perpetuo o qual se chamará com o nome de Maya, porq assim sejão sempre vivas as memórias da m.ce q lhe fiz, e servissos q me fizérão; e sendo D.s servido q o d.º João da Maya morra antes de haver este juro, e sem ter filhos ligitimos de ligitimo matrimonio substituão no d.º juro seus irmaons e os filhos descendentes de seus irmaons por suas antiguidades, precedendo sempre os varoens ás femeas.»

João da Maia da Gama, por morte de seu pai, entrou na posse das sobreditas capelas. Foi cavaleiro da Ordem de Cristo, ajudante da cavalaria do Minho na guerra da aclamação e juiz da alfândega de Aveiro.

Casou quatro vezes, e da sua quarta mulher, D. Ana Correia do Amaral, teve dois filhos: Luís da Maia da Gama de Abreu e Pedro da Gama da Maia; e três filhas: D. Francisca da Gama, D. Maria de Nazaré e D. Margarida Micaela, tendo as duas últimas sido freiras no convento de Jesus de Aveiro.

João da Maia da Gama faleceu em 1 de Outubro de 1688 e foi sepultado na capela de Nossa Senhora do Pilar; sua quarta mulher, D. Ana, faleceu em 21 de Março de 1688, e foi sepultada na capela do Santo Cristo.

Luís da Maia da Gama de Abreu, filho primeiro de João da Maia da Gama foi administrador das duas capelas com o juro perpétuo de cinquenta mil reis impostos no almoxarifado do ducado de Aveiro. Faleceu solteiro e sem geração em 30 de Agosto de 1697 e foi sepultado na sua capela de Nossa Senhora do Pilar.

Seu irmão Pedro da Gama da Maia, baptizado em 19 de Outubro de 1686, sucedeu-lhe na administração das ditas capelas e juro. Não se casou e faleceu em 14 de Junho de 1712, com vinte e seis anos de idade. Também foi sepultado na capela de Nossa Senhora do Pilar. Com ele se extinguiu a Casa dos Maias. / 35 /

Nos padroados e juro das duas capelas sucedeu a Pedro da Gama da Maia sua irmã D. Maria de Nazaré, freira no convento de Jesus, onde professara no ano de 1705. A esta sucedeu sua irmã D. Margarida Micaela da Gama, também freira no mesmo convento onde professara em 1714. Nenhuma das duas foi sepultada nas capelas da igreja do convento do 'Carmo.

Como se vê, a capela de Nossa Senhora do Pilar foi reservada especialmente para as sepulturas dos administradores; a capela do Santo Cristo serviu para as sepulturas de outras pessoas da família, e assim, nesta foi sepultado em 1 de Maio de 1714 Carlos Luís da Gama da Maia, filho terceiro de Manuel da Maia da Gama, irmão de João da Maia da Gama; em 17 de Fevereiro de 1722, Carlos Ribeiro da Maia da Gama.

Em alguma das duas capelas, mas que não podemos indicar com segurança, foram ainda sepultados: em 14 de Junho de 1729, Manuel da Maia da Gama de Abreu, irmão de João da Maia da Gama; em 18 de Abril de 1716, D. Serafina da Graça, filha de Manuel da Maia da Gama; em 8 de Julho de 1716, D. Luísa da Gama de Andrade e Abreu, filha de António da Maia Araújo.

Tendo-se extinguido a Casa dos Maias, os frades não consentiram em mais nenhum enterramento de pessoas desta família nas referidas capelas, depois do ano de 1729. Com efeito, Luís da Maia Ribeiro da Gama, que foi arcipreste de Guimarães e morreu em Aveiro em 29 de Janeiro de 1731, foi sepultado por depósito na igreja de S. Miguel, até se resolver a demanda com os religiosos do Carmo, a qual deve ter sido favorável a estes.

Actualmente, como recordação dos Maias, apenas existe um brasão de pedra com as armas dos Gamas e Maias, suspenso no arco da capela de Nossa Senhora do Pilar. Tal brasão deve ter sido feito por volta do ano de 1711, em vida do Pedro da Gama da Maia. Esta é a data que figura no muro do adro da igreja, cujo portal tem ornatos idênticos aos que cercam o mencionado brasão. Devemos notar que numa das paredes da capela do Santo Cristo existe uma lápide sepulcral com um brasão em lisonja, mas com as armas picadas.

Aveiro, Novembro de 1950.

FRANCISCO FERREIRA NEVES

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(1)Veja-se Genealogia dos Maias, em Arq. do Dist. de Aveiro, vol. VI, pág. 47.

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