O
NOME de João Afonso de Aveiro figura, com merecido relevo, na prodigiosa história dos nossos descobrimentos e nos luminosos fastos da literatura
portuguesa.
João Afonso foi marinheiro insigne e poeta afamado.
Por este começo, haveria de concluir-se que João Afonso
de Aveiro, o mesmo João Afonso de Aveiro, se apaixonou pelo mar e se
enamorou das musas.
Há, porém, quem pretenda que um era o piloto e outro
o escritor.
Contra a opinião corrente, suponho poder demonstrar
que, na realidade, de dois se trata.
O DR. JOAQUIM DE MELO FREITAS referiu-se a João Afonso de
Aveiro sem
cuidar do problema(1). Para o ilustre escritor houve um só João Afonso,
poeta palaciano e navegador temerário, filho do alcaide da vila de
Almoster João Gonçalves e de D. Catarina Garcia da Gama.
Criado de D. Diogo, Duque de Beja e irmão de El-Rei
D. Manuel, João Afonso de Aveiro, por virtude da execução
do Duque de Bragança, foi obrigado a fugir para as ilhas, e de lá
escreveu a Fernão da Silveira, pedindo-lhe que intercedesse por ele. O
célebre Coudel-Mor respondeu-lhe em verso, aludindo a este homizio:
Cá depois que vós passastes
a essas ilhas,
sam cá feitas maravilhas
mais do que nunca cuidastes.
/
4 /
Como homem de letras, João Afonso escreveu poesias, cujos manuscritos
ficaram em poder de um dominicano da capital, e o seu nome figura no
catálogo dos poetas portugueses do século XV e no Cancioneiro de GARCIA DE RESENDE.
Como homem do mar, João Afonso, pelo correr do ano de 1486(2),
descobriu o reino e terras de Benim e trouxe a PortugaI a pimenta da
Guiné; e a sua glória toda está nas informações que, por si e pelo
embaixador que veio em sua companhia, deu a D. João II de um rei chamado
Ogané, que ao monarca português se afigurou ser o recôndito e decantado Preste João das
Índias.
O escritor aveirense reproduz, com poucas alterações, o que indica ter
lido em TEÓFILO BRAGA. No estudo deste professor sobre os Poetas
palacianos encontram-se, de facto, várias referências a João Afonso, que
importa registar com precisão(3).
No sumário de um dos capítulos da obra, lê-se o seguinte: «Por ocasião
da prisão do Duque de Bragança, o poeta João Afonso de Aveiro retira-se
para as ilhas».
Mais além, TEÓFILO BRAGA refere que o Duque de Bragança foi justiçado com todas as formalidades aviltantes, ficando o seu
corpo, durante uma hora, exposto à contemplação do povo, e logo
continua: «A impressão causada por esta catástrofe aparece nas trovas do Coudel-Mor: «a João Affonso de
Aveiro, que se foi a viver nas Ilhas, e
de lá
lhe escreveu que fizesse algumas cousas por elle, em que entrou falar a
sua dama, e despachar outras com a senhora Ifante e c'o Duque; mas isto
veo no tempo da morte do
Duque». Este João Afonso de Aveiro era filho de João
Gonçalves, alcaide de Almoster, e de Catarina Garcia da Gama. Era criado
do duque Dom Diogo, quarto duque de Beja, irmão de el-rei D. Manuel.
Deixou várias poesias manuscritas, em poder de um dominicano de Lisboa.
O Coudel-Mor, que então se chamava Fernão da Silveira o Bom,
para se distinguir do outro Fernão da Silveira comprometido
na segunda conspiração, escreve a João Afonso de Aveiro sob a impressão
da morte do duque:
Vay cá tempo tam contrairo
com agoagens sobre a terra... ».
Numa outra página, diz TEÓFILO BRAGA: «Em 1486, o
poeta João Afonso de Aveiro, que fugira para as ilhas por
/
5 /
ocasião da sentença contra o duque de Bragança, fez a descoberta da terra de Beny, além da Mina no Rio dos escravos, e lá morreu.
Daqui veio a primeira pimenta da Guiné».
Finalmente, pondo em relevo que o
Coudel-Mor é de todos os poetas do
Cancioneiro o mais cheio de alusões históricas, ilustra a afirmação com
vários exemplos, um dos quais o seguinte: «Em uns versos do Coudel-Mor
ao poeta
João Afonso de Aveiro, que fugiu para as Ilhas, descrevendo
as alterações do rei no em 1483, diz ele na rubrica: «mas ysto
veo no tempo da morte do Duque.»
Por agora, saliento apenas que TEÓFILO BRAGA enfileira ao lado dos que
supõem a existência de um só João Afonso de Aveiro.
Parece que o erudito escritor aveirense, MARQUES GOMES, não manteve
sempre a mesma opinião sobre o curioso problema.
Nas Memórias de Aveiro, publicadas em 1875(4), em
"O Districto de Aveiro", datado de 1877(5), no
catálogo da Exposição Districtal de Aveiro em 1882, impresso
no ano
seguinte(6), e nos
Subsídios para a historia de Aveiro,
de 1889(7), refere-se exclusivamente ao piloto, sem atribuir-lhe o dom da poesia.
Era, assim, lícito concluir que MARQUES GOMES considerava o navegador
João Afonso de Aveiro pessoa diversa do poeta seu homónimo.
Todavia, em 1898, o paciente investigador organizou um
folheto, muito interessante e hoje raríssimo, com que o "Campeão das Províncias" desejou contribuir para a celebração do
centenário da descoberta da Índia. E aí, manifesta-se pela
existência de um só João Afonso de Aveiro, arrojado navegador e prendado cultor das musas(8).
RANGEL DE QUADROS é de outro parecer(9). Para o benemérito
investigador, a identidade dos nomes e da época em
/ 6 /
que viveram induziu em erro, levando alguns a admitir que houve um só João Afonso,
marinheiro e poeta. A verdade, porém, é que de dois se
trata, supondo RANGEL DE QUADROS não haver sequer entre ambos o mínimo
parentesco.
A razão, pouco convincente, de que
o primeiro se daria
melhor com os perigos e aventuras marítimas do que com
as musas, acrescenta outras não decisivas mas, sem dúvida, de maior
vaIor.
Por um lado, nem na Biblioteca Lusitana, de DIOGO, BARBOSA MACHADO, nem
no Cancioneiro Geral, de GARCIA DE RESENDE, há qualquer indicação
de que o poeta João Afonso de Aveiro tenha seguido a vida do mar.
Por outro lado, escritores antigas e modernos
− como RUI DE PINA, JOÃO
DE BARROS, GARCIA DE RESENDE, PEDRO DE MARIZ, o Padre ANTÓNIO CARVALHO
DA COSTA, LUCIANO CORDEIRO, o Cardeal SARAIVA e ALEXANDRE MAGNO DE CASTlLHO
− falando do piloto
João Afonso, não lhe atribuem o dom da poesia nem o apontam como
criado do Duque de Beja.
O poeta era filho de João Gonçalves e de D. Catarina da Gama, fidalgos
de elevada posição. Pela nobreza da sua ascendência e pelos seus merecimentos pessoais
− pois João Afonso tornara-se notável pelo talento, pela erudição e pela agudeza de espírito
− o tomou D. Diogo
como um dos criados
mais dignos da sua consideração.
Além das poesias recolhidas no
Cancioneiro Geral, João Afonso deixou
manuscrito um livro de Poesias várias, que se guardava na
livraria do Convento de S. Domingos, em Lisboa.
Frei MANUEL HOMEM chama ao ilustre aveirense pessoa insigne nas letras
e nas virtudes. E informa, na sua obra Ressurreição de Portugal e morte
fatal de Castella, que, segundo afirmava um religioso do Convento de S.
Domingos, num livro escrito por ordem de D. Manuel, João Afonso compôs
ainda, em 1479, a poesia intitulada Perdição de Castella.
Quanta ao piloto, RANGEL DE QUADROS supõe que era filho do arrais Afonso Anes Primor e que nasceu à roda de 1443.
Não indica, porém,
quaisquer razões que fundamentem a suposição.
Creio que RANGEL DE QUADROS se firmou no que precipitadamente leu em
MARQUES GOMES. Nos Subsídios para a história de Aveiro(10), recordam-se
os nomes de esquecidos marinheiros aveirenses que o autor pacientemente
descobriu em documentos da antiquíssima Confraria de Santa
/
7 /
Maria de Sá, achando-se a determinada altura esta indicação: − «1443, Janne Annes Falconete, arraes; 1441, Vicente Affonso, idem;
1443, João Affonso, filho Affonso Annes Primor, idem». Sem dúvida, o ano de
1443 é o do documento em que se encontra a referência ou o da inscrição
nos livros da Confraria e o nome evocado é o de João Afonso, filho de
Afonso Anes Primor.
Não se lhe atribui a categoria de Piloto, mas a profissão de arrais. Nem
é de admitir qualquer imprecisão nos termos, pois que na lista
aparecem as designações de arrais, de piloto e de mestre-piloto.
De resto, acabada a enumeração, MARQUES GOMES escreve: «A estes nomes
e
ao de João Afonso, pode talvez acrescentar-se o de Fernão de Oliveira...». Aqui, João Afonso é o famoso piloto dos descobrimentos
− outro,
portanto, na opinião de MARQUES GOMES, muito diferente do arrais João
Afonso, filho de Afonso Anes Primor.
Continua, assim, a ignorar-se a filiação e a data do nascimento do
afamado marinheiro, não importando, por agora, as copiosas notícias de
RANGEL DE QUADROS sobre este − a maior parte delas, aliás, sujeitas a
revisão.
Ainda não há muito, ÁLVARO FERNANDES, referindo-se ao piloto João Afonso
de Aveiro, esclarecia que, além deste, houve um outro aveirense com o
mesmo nome, escritor e poeta. E acrescentava que, «dos dois aveirenses
homónimos,
o geralmente conhecido é o navegadoor.»(11).
Simples nota a uma referência acidental ao afamado piloto, não menciona
as razões em que se estriba para julgá-lo pessoa diversa do poeta.
O senhor DR. JOSÉ PEREIRA TAVARES, em estudo publicado no
Arquivo do
Distrito de Aveiro, de que é um dos ilustres directores, ocupa-se, não
do piloto, mas do poeta João Afonso
(12).
/
8 /
Considera-os, porém, uma só pessoa, dizendo que João Afonso de
Aveiro,
poeta palaciano, figura entre os navegadores do século XV que tornaram
possíveis as façanhas marítimas de Bartolomeu Dias, Vasco da Gama,
Álvares Cabral e outros.
Transcreve os artigos insertos na
Grande Enciclopédia Portuguesa e
Brasileira sobre o piloto e o poeta(13), o primeiro fundado nos
historiadores e o segundo na Biblioteca Lusitana, de BARBOSA MACHADO. E
admitindo a possibilidade de se tratar de dois indivíduos, acrescenta
que, no entanto, é para ponderar, a favor da afirmação, corrente até aos
nossos dias, de se tratar de um só, a referência que no Cancioneiro
Geral se faz a «Ioam affonso daueiro», numa poesia do Coudel-Mor, que
tem a seguinte introdução: «Trouas do coudel-moor a Ioam affonso
daueiro, que se foy a viuer nas ilhas, & de laa lhe escreueu...».
Esta exposição resume as diversas atitudes dos escritores que, com maior
ou menor desenvolvimento, se têm ocupado de João Afonso de Aveiro.
Uns falam do marinheiro sem lhe atribuírem o dom da poesia e outros
escrevem sobre o poeta sem lhe outorgarem a profissão de piloto.
Há os que supõem um só o homem do mar e o homem de letras e os que
repartem por dois as glórias do ousado navegador e as do poeta
palaciano.
Tudo me leva a crer, como escrevi ao princípio, que a razão está por
estes últimos: o navegador é pessoa diversa do poeta.
Ambos nasceram na antiga, nobre e notável vila de Aveiro. Ambos usaram o
mesmo nome e apelido. Ambos viveram no último quartel do século XV.
Um serviu o Rei de Portugal e outro foi criado do Duque de Beja. O
primeiro dominou as ondas e o segundo cultivou as letras. Aquele
descobriu terras e este escreveu poesias.
Procurarei demonstrá-lo, resolvendo, assim o espero,
um velho e interessante problema.
É sabido, e os autores afirmam-no sem discrepâncias,
que o poeta João Afonso de Aveiro foi criado de D. Diogo,
/
9 / 3.º Duque de Beja e 4.º Duque de Viseu(14), irmão de EI-Rei D. Manuel.
E é ponto assente «que fe foy a viuer nas ilhas» e de lá escreveu a
Fernão da Silveira, pedindo-lhe «que fyzeffe algũas coufas por ele»,
entre as quais entrou «dalIar a fua
dama, & defpachar outras com a senhora jfante, & co duq»,
pedido que chegou «no tẽpo da morte do duq» − como tudo se lê na
introdução das trovas do Coudel-Mor recolhidas no Cancioneiro Geral de
GARCIA DE RESENDE(15).
São, porém, lamentavelmente imprecisas e contraditórias as referências
dos escritores no que respeita aos pormenores que interessam ao meu
estudo.
TEÓFILO BRAGA, afirmando primeiro que João Afonso se retirou para as
ilhas, declara depois, e por duas vezes, que para ali fugiu, o que o Dr.
MELO FREITAS repete.
Aquele, ora diz que a fuga se deu por ocasião da prisão do Duque de
Bragança, ora escreve que teve lugar por ocasião da sentença que o
condenou; este pretende que João Afonso teve de fugir para as ilhas em
virtude da execução do Duque de Bragança.
Do que afirma TEÓFILO BRAGA haveria de concluir-se:
− que a fuga de João Afonso de Aveiro foi anterior à execução do Duque de Bragança,
tendo-se verificado pela altura da sua prisão ou da sentença
condenatória; que o Duque a que alude o Coudel-Mor naquela passagem
«mas yfto veo
no tẽpo da morte do duq», e com o qual, a pedido de João,
Afonso, teria de «defpachar algũas coufas», era o de Bragança; e,
finalmente, que os versos de Fernão da Silveira se referem apenas às
alterações verificadas no reino em 1483,
e não também às posteriores.
Creio não serem de aceitar estas conclusões.
Aqueles dois versos do Coudel-Mor
Paffam ca tãtas mudãças
que não vaI nẽhuũ terçeyro,
parecem inculcar o entendimento de que João Afonso lhe pedira qualquer
intercessão junto da Senhora Infanta e do
/
10 /
Duque, senão também junto do Rei. Mas dela se teria escusado Fernão da
Silveira:
Polo qual qm não de conta
diffo que me ca mandaftes,
perdoae poys efta afronta
temos ca. que não leyxaftes.
Ca defpoys que v' paffastes
heeffas ylhas,
ffam ca feytas marauilhas
mays do que nũca cuydaftes.
Não sei de relações do poeta João Afonso com o Duque
de Bragança que o autorizassem, não apenas a solicitar o seu
valimento, mas a com ele «defpachar algũas coufas», ainda
que por intermédio de um terceiro.
Seja como for, é de todo incompreensível que João
Afonso, tendo fugido para as ilhas no conhecimento da condenação do Duque de Bragança, e exactamente por virtude
dela, se permitisse pedir-lhe qualquer protecção ou o despacho de alguns
negócios.
E ainda que a fuga fosse anterior à sentença, apenas
motivada pela prisão do Duque de Bragança, João Afonso
havia de pressentir, como aquele pressentiu e disse a Aires
da Silva, que «um homem tal não se prende para soltar»...
Sem considerar mesmo o que o pedido de intercessão
teria de comprometedor para o foragido, bem sabia este não
poder atendê-lo quem se encontrava a ferros de El-Rei e, possivelmente,
já condenado por sentença − aliás desnecessária... − à dura justiça do seu cutelo vingador.
Estas considerações e o que na poesia se lê, em confronto
com a introdução, levam-me a concluir que a «senhora jfante»
era a Infanta D. Beatriz e o «duq» seu filho D. Diogo, Duque
de Beja e Viseu.
Seria, assim, o homízio de
João Afonso de Aveiro consequência da prisão, condenação ou execução do Duque de
Bragança e anterior à morte de D. Diogo.
Com este, e não com aquele, teria o Coudel-Mor de
despachar o que João Afonso lhe solicitava; mas a sua carta
chegou tardiamente, pelo tempo em que sucumbia, crivado
de punhaladas, o último Duque de Viseu.
E a poesia de Fernão da
Silveira referir-se-ia, portanto,
não só às mudanças operadas no reino por virtude da conspiração do Duque
de Bragança, que João Afonso em certo
modo conhecia, mas ainda às verificadas em consequência
da nova conjura − que não seria mais do que o prosseguimento da primeira
− e da sua duríssima repressão.
Como compreender, porém, que recusada a intercessão
do Coudel-Mor − por impossível quanto a D. Diogo e por
/
11 /
inútil quanto a D. Beatriz − o poeta João Afonso de Aveiro tivesse
regressado ao reino para mais tarde dele levantar ferro como navegador?
Como compreender que D. João
II, além de ter-lhe perdoado qualquer
intervenção ou cumplicidade nas conjuras da nobreza, lhe houvesse ainda
confiado barchas, barinéis ou caravelas para um reconhecimento longínquo
e particularmente importante?
Não atino com resposta satisfatória para as duas perguntas. E chego a
supor impossível encontrá-la, quando considero a perseguição implacável
movida pelo Rei aos
conjurados e à qual só Álvaro de Ataíde viria a escapar,
pode dizer-se que por verdadeiro milagre.
Continuo a supor, como pretendem TEÓFILO BRAGA e o Dr. MELO FREITAS, que
o poeta João Afonso de Aveiro foi obrigado a fugir por virtude da
prisão, da condenação ou da execução do Duque de Bragança.
Estaria, assim, de algum modo comprometido nas conspirações da nobreza
contra D. João II. E tal como os irmãos do Duque de Bragança fugiram para
Espanha, o Marquês de Montemor para Sevilha, o Duque de Faro para
Andaluzia e outros fidalgos para Castela, assim João Afonso teria fugido
para as ilhas.
O que desde logo impressiona, é que houvesse passado às ilhas por ter
culpas na conspiração, ficando todavia o amo, cujas responsabilidades
eram incomparavelmente maiores.
Que pedisse ao Coudel-Mor para interceder por ele, causa também certo
reparo, dada a situação daquele como regedor das justiças e confidente
de D. João II, bem conhecedor, portanto, da firmeza inquebrantável do
Rei na perseguição dos conspiradores.
E mais espanta que João Afonso lhe solicite uma intercessão junto do
Duque, a quem poderia dirigir-se directamente como a senhor e amigo e
que, de resto, bem sabia ser a pessoa menos indicada, pelos seus
compromissos, para obter-lhe o indulto do monarca.
Tudo, porém, podia assim ser
− pela menor intervenção de João Afonso na
conjura, pela amizade que o ligava e pela confiança que depositava no Coudel-Mor, pelo convencimento de que o Rei ignorasse as
responsabilidades do Duque de Beja e até pela suposição da impunidade
deste.
Pode todavia admitir-se − e talvez mais razoavelmente
− que o homízio,
longe de ser determinado por qualquer compromisso na conjura,
significasse exactamente a recusa formal de João Afonso a aplaudi-la,
assim caindo no desagrado do Duque de Beja e por isso se vendo obrigado
a sair do reino
/ 12 / para
mais tarde, não sem alguma descautela, solicitar os
bons oncios do Coudel-Mor junto de D. Diogo e de sua Mãe.
Ainda que a carta para Fernão da Silveira fosse um pedido
de intercessão, é de ponderar que na rubrica da poesia de
resposta se não fala, ao menos expressamente, no Rei − único
que poderia conceder o desejado perdão, se de um conspirador se tratasse.
Ponho agora em relevo que TEÓFILO BRAGA, ora dizendo
que João Afonso fugiu na altura da prisão do Duque de Bragança, ora referindo que fugiu por ocasião da sentença contra
ele proferida, uma vez afirma que o poeta se retirou para
as ilhas.
Ajusta-se melhor esta versão ao que escreveu Fernão da
Silveira. Na realidade, dizer que João Afonso fe foy a viuer
nas ilhas, como se exprime o Coudel-Mor, não é o mesmo
que afirmar ter sido obrigado a fugir para as ilhas.
Notei já que aqueles dois versos de Fernão da Silveira
certificando que, em face das mudanças operadas no reino,
passou a não valer nenhum terceiro, consentem supor que
João Afonso lhe pedira para interceder por ele.
Esta interpretação poderia querer amparar-se às palavras
que encimam a poesia, onde o Coudel-Mor diz que João
Afonso lhe escreveu que fizesse algumas coisas por ele.
Mas, como ali se explica, nessas coisas entrava «fallar a
fua
dama, & defpachar outras com a senhora jfante, & co duq»,
e não se recusou Fernão da Silveira a satisfazer aquele primeiro pedido:
Mas tornando a fenhora
que mandaftes que falaffe,
nem faley nem vy tal
ora
que a vyfta me cheguaffe.
Mas nã cuydo que me paffe,
fe a vyr,
& feraa graça fyntyr
que de vos lhe mays lẽbraffe.
Porem tudo o que tyrar
dela v' farey faber,
vos viuei em efperar,
pois mantem mays q comer.
Se no que João Afonso pedia ao Coudel-Mor para fazer por ele se
compreendia o assim falar a sua dama, não pode
atribuir-se a estas palavras o significado de uma pretendida
intercessão, no sentido de obter-lhe indulto para presumíveis
responsabilidades em qualquer conjura.
Do que se diz na introdução
− «que fyzeffe algũas coufas por ele, em que
entrou fallar a fua dama, & defpachar outras
/
13 / com a fenhora ifante, &
co duq» − é ousado concluir, como pretende o Dr.
MELO FREITAS, que João Afonso de Aveiro, obrigado a fugir para as ilhas
por virtude da execução do Duque de Bragança, pedia ao Coudel-Mor que
intercedesse por ele.
Como arriscado é concluir que, sendo a fuga determinada, não por
compromissos do homiziado na conjura, mas exactamente por tê-la
repelido, assim caindo no desagrado do Duque de Beja, por isso João
Afonso solicitava a intercessão de Fernão da Silveira junto daquele e de
sua Mãe.
A verdade é que se desconhecem os assuntos que João Afonso pedia ao
Coudel-Mor para despachar com a Senhora Infanta e com o Duque.
Afigura-se-me, porém, pelas razões expostas e por mais uma, que não se
tratava de quaisquer coufas relacionadas
com as conspirações da nobreza, de pedido de intercessão para obter
qualquer indulto do Rei ou do Duque − daquele por estar João Afonso de
Aveiro envolvido nas conjuras ou deste por lhes ter recusado o seu apoio.
De facto, O Coudel-Mor, depois de referir as alterações
e desconcertos que iam pelo reino e de confessar a sua ignorância do que se passava nas ilhas, afirma o prazer que lhe
daria a vizinhança de João Afonso, lá ou cá; e ponderando
que por toda a parte se encontram pedaços de mau caminho,
propõe-lhe que, sem mais diligências, passem a viver na companhia um do
outro:
Eftas coufas eram de caa,
Iaa nam fey nem nas deuynho,
mas querya caa ou laa
teru' fempre por vezinho.
Se queres, façamos nynho
fem mays arte,
poys fe acha em cada parte
pedaços de mao caminho.
Isto dá a entender que João Afonso podia regressar livremente ao reino,
fixar aqui residência «fem mays arte», sem
necessidade de qualquer intercessão do Coudel-Mor − evidentemente porque «fe for a viuer nas jlhas» por motivos
de todo alheios às conspirações da nobreza.
Nem é de admitir que a proposta ou convite de Fernão da Silveira fosse
uma armadilha para haver às mãos um foragido e entregá-lo à vingança do
Rei.
Por um lado, a sua reconhecida integridade de carácter e a grande
amizade que revela consagrar a João Afonso não lhe consentiriam o
aviltante procedimento.
Por outro lado, D. João II saberia desembaraçar-se de um
inimigo homiziado nas ilhas com a maior facilidade, ele que
/
14 /
soube perseguir e aniquilar todos os que se esconderam no reino ou
fugiram para longes terras.
O Dr. MELO FREITAS fundou-se apenas em TEÓFILO BRAGA para aventar,
excedendo-o nas afirmações, que João Afonso teve que fugir para as
ilhas, em virtude da execução do Duque de Bragança, de lá escrevendo a
Fernão da Silveira a pedir-lhe que intercedesse por ele.
O fecundo autor dos Poetas palacianos baseia-se somente na poesia do
Coudel-Mor para afirmar, aliás com as imprecisões apontadas, que João
Afonso fugiu para as ilhas por ocasião da prisão ou da sentença que
condenou a ser publicamente degolado o mais poderoso fidalgo de
Portugal.
Esta pretendida fuga é uma acusação de cumplicidade nas conspirações da
nobreza contra D. João II. Não a consente a poesia do Coudel-Mor e nem
os que a fazem invocam para ela outro fundamento.
Bem limpo o nome do poeta João Afonso de Aveiro da nódoa de conspirador,
os versos de Fernão da Silveira, ao contrário do que o senhor Dr. JOSÉ
TAVARES inadvertidamente supôs, ajudam ainda a provar que aquele é
pessoa diversa do navegador seu homónimo.
O Duque de Bragança foi preso em
30 de Maio e executado em 29 de Junho de 1483(16).
Apesar de tudo, importa admitir ainda uma vez a hipótese de que, por
essa altura, teria João Afonso fugido para as ilhas.
É geralmente aceite que o piloto João Afonso de Aveiro
seguiu com Diogo Cão na sua primeira viagem ao longo da costa ocidental
de África.
Teria sido exactamente por virtude das elogiosas referências que Diogo
Cão fez a D. João II do seu famoso piloto que o monarca lhe confiou a
expedição ao Rio Formoso, da qual haveria de resultar a descoberta do
reino e terras de Benim.
Nem o Rei de Portugal cometeria empresa tão arriscada, importante e
dispendiosa a quem não tivesse dado provas de possuir qualidades sobejas
para levá-la a bom termo(17).
/ 15 /
Ora Diogo Cão saiu de Lisboa
antes de 31 de Agosto de 1482, só
regressando à capital do reino muito proximamente de 8 de Abril de
1484, como se encontra apurado(18).
Quer dizer: o piloto João Afonso de Aveiro não podia ter fugido para as
ilhas por virtude da prisão ou da execução do Duque de Bragança,
respectivamente em 30 de Maio e 29 de Junho de 1483, pois andava a
sulcar ondas
do Atlântico e a descobrir terras de África, em companhia
de Diogo Cão, havia cerca de nove ou dez meses, só regressando ao reino
uns dez ou onze meses depois de o poderoso fidalgo ter «morrido morte
natural», degolado numa praça de Évora.
Se por tal motivo um João Afonso de Aveiro se tivesse visto obrigado a
fugir para as ilhas, esse seria o poeta, não podendo de modo algum ser o
piloto(19).
/
16 /
O facto de se ter passado uma esponja sobre a infundada
acusação da fuga, em nada altera a solução do problema.
Se ao ser preso o Duque de Bragança
João Afonso de
Aveiro se retirou para as ilhas, como também diz TEÓFILO
BRAGA, ou, como refere o Coudel-Mor, de for a viuer nas
/
17 /
[Vol. XVII - N.º 65 -
1951]
jlhas», havendo de supor-se que por aquela altura, --- a solução terá de ser, claro está, precisamente a mesma.
Só o poeta podia então ter saído do reino e escrever das ilhas a Fernão
da Silveira, pois o Piloto abandonara Lisboa muitos meses antes e andava
errando por ignorados caminhos da costa ocidental africana.
Interessa supor que João Afonso se tenha retirado para
as ilhas antes da conspiração do Duque de Bragança.
O Coudel-Mor, dando-lhe conta dos desvairados tempos
que iam pelo reino, diz logo a seguir:
Quem quifera fazer guerra
foylhe feyta,
em quem coube auer fofpeita
per fy mefmo fe defterra.
É clara, nos primeiros dois versos transcritos, a alusão
à nobreza revoltada contra o Rei e à guerra implacável que este moveu
àquela e, nos dois últimos, a revelação do homízio de alguns fidalgos que, pela sua cumplicidade, se viram obrigados a
abandonar o reino.
A notícia parece impor o entendimento de que João
Afonso de Aveiro «fe foy a viuer nas ilhas» por qualquer
ignorado motivo de todo estranho às conspirações e que para ali seguiu
antes destas − aliás não seria para ele novidade o que, como tal, o Coudel-Mor
lhe transmite nos seus versos».
Em que precisa época, porém, teria o poeta João Afonso
saído para as ilhas?
Sem documentos que o esclareçam, é impossível a resposta.
Todavia, se se pretende que o mesmo era o piloto, é seguro que João
Afonso de Aveiro «fe foy a viuer nas jlhas» antes de 31 de Agosto de
1482, data da partida de Diogo Cão.
/
18 /
Seria, assim, aproximadamente dez meses depois da saída
para as ilhas que João Afonso escreveu ao Coudel-Mor e este lhe
respondeu.
Até à partida de Diogo Cão para a sua primeira viagem,
os portugueses haviam tentado a ocupação de algumas ilhas, realizado a
de outras e descoberto muitas mais.
O reconhecimento da costa africana não tinha ultrapassado o Cabo de
Santa Catarina, que Rui de Sequeira atingira
em 25 de Novembro, não se sabe se de 1474 se de 1475.
Para além ficava o desconhecido; e Diogo Cão foi precisamente
encarregado de desvendá-lo, seguindo, quanto possível para diante, como convinha à realização do projectado
plano de alcançar o Oriente.
Não podia o Coudel-Mor, tão achegado a D. João lI,
ignorar que tal era a incumbência do navegador e, portanto,
que João Afonso de Aveiro andava por desconhecidas terras.
Donde escrevia então João Afonso, por quem enviava a
sua carta e para que paragens e por que emissário lhe mandaria Fernão da
Silveira a resposta?
Do piloto, que se foi a descobrir terras ignoradas da
costa africana, não sabia o Coudel-Mor o paradeiro; mas conhecia o do poeta, que se foi a viver nas ilhas e a quem
prometia enviar notícias da sua dama:
Porem tudo o que tyrar
dela v' farey faber.
Como o faria saber àquele João Afonso de Aveiro, que
andava perdido por terras desconhecidas de África?
É forçoso concluir que o poeta que se correspondia com
Fernão da Silveira era outro muito diverso do piloto que
acompanhava Diogo Cão.
Apura-se, a meu ver com segurança, que o poeta João
Afonso de Aveiro saiu do reino antes da morte do Duque
de Beja e Viseu, pois pedia ao Coudel-Mor para tratar alguns
assuntos com ele − pedido que não podia ser satisfeito porque
«veo no tẽpo da morte do duq».
Sabe-se que D. Diogo foi morto pelo próprio D. João Il
em 28 de Agosto de 1484(20).
Ora o piloto João Afonso chegou da primeira viagem
com Diogo Cão pouco antes de 8 de Abril de 1484.
Poderia ter partido para a expedição ao Rio Formoso e
descoberta do reino e terras de Benim imediatamente, depois
da sua chegada a Lisboa, à roda de 8 de Abril de 1484, e antes
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19 /
da morte do Duque de Beja e Viseu, em 28 de Agosto do mesmo ano?
Afigura-se-me que não lho consentiriam a necessidade de um merecido
repouso e os preparativos, evidentemente demorados, da nova viagem − é
de notar que Diogo Cão só iniciou a sua segunda viagem no outono de
1485, muitos meses depois de terminada a primeira − além de que se não
descobre razão alguma que o imponha ou permita supô-lo.
Se houver de acreditar-se neste ponto o cronista GARCIA DE RESENDE,
João
Afonso de Aveiro terá descoberto o reino e terras de Benim em 1486(21)
−
e então, e fosse qual fosse
a data da sua chegada a África, era seguro haver saído de
Lisboa muito depois da morte de D. Diogo.
Os mais modernos e conceituados historiadores dos descobrimentos, têm-se
esforçado por corrigir as imprecisões, os erros e as contradições dos
cronistas, recolhendo amoravelmente e estudando com superior critério
magníficas fontes de carácter epigráfico, cartográfico e diplomático.
Não obstante os extraordinários progressos feitos, as dúvidas
esclarecidas, os problemas solucionados, continua a imprecisão
relativamente às viagens de João Afonso de Aveiro, ao menos quanto a alguns pormenores de manifesto
interesse.
O ilustre Prof. Doutor DAMIÃO PERES, por exemplo, ensina que a
exploração do reino de Benim foi realizada pelo famoso descobridor
aveirense entre 1484 e 1486, mais adiante afirmando que tal exploração teve lugar pelos anos
de 1484 e 1485(22).
Sem dúvida, esta incerteza não contradiz a afirmação de GARCIA DE
RESENDE, adoptada pela generalidade dos autores, nem destrói, pois não
colide com elas, as razões invocadas para marcar o início da viagem de
João Afonso de Aveiro posteriormente à morte do Duque de Beja e Viseu.
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20 /
E assim, de novo se chegaria a concluir que, não ignorando o Piloto a
morte de D. Diogo, a carta que escreveu ao Coudel-Mor um João Afonso de
Aveiro só podia ser do poeta seu homónimo.
Quero ainda admitir, contrariando a minha profunda convicção, que João
Afonso de Aveiro tenha iniciado a viagem de que resultou a descoberta
do reino e terras de Benim antes da morte do Duque de Beja e Viseu,
entre a sua chegada com Diogo Cão, por volta de 8 de Abril de 1484, e o
assassínio de D. Diogo.
Observo, de fugida, que ficariam em tal caso sem sentido, relativamente
ao piloto, as notícias do Coudel-Mor referentes às transformações
operadas no reino por virtude da conspiração do Duque de Bragança.
Mas podia então, evidentemente, o piloto João Afonso escrever ao seu
amigo na ignorância da morte do Duque de
Beja e Viseu.
De que ilhas, porém, escrevia?
Não é natural que por ilhas se deva entender, em desacordo com as designações então usuais, qualquer ponto da
costa ocidental da África visitado pelo navegador.
De resto, e aceite que o poeta saiu do reino por qualquer motivo alheio
às conspirações, seria mais razoável supor que escrevia da Ilha da
Madeira, da qual o dadivoso D. Afonso V fizera mercê a D. Diogo, com
seus portos, rendas, direitos e jurisdições.
Além de tudo, e muito principalmente, a resposta do
Coudel-Mor esclarece que João Afonso «fe foy a viuer nas
ilhas». Esta maneira de dizer traduz, sem sombra de dúvida, o propósito
de João Afonso de Aveiro de permanecer nas ilhas, de ali viver com
estabilidade, de lá fixar residência.
Outra muito diversa, como bem sabia Fernão da Silveira, foi a intenção
do navegador João Afonso ao sair de Lisboa. Este ia, não a viver nas
ilhas, mas a cumprir a missão que o Rei lhe confiara e da qual
prontamente regressaria a dar conta dos resultados obtidos.
Na realidade, João Afonso de Aveiro voltou das terras que descobrira,
trazendo em sua companhia um embaixador do rei de Benim. E «entre as
muitas cousas que el-rei D. João soube do embaixador deI-rei de Beni, e
assi de João Afonso de Aveiro, das que lhe contaram os moradores
daquelas partes, foi que ao oriente deI-rei de Beni, per vinte luas de
andadura, que segundo a conta deles, e o pouco caminho que andam, podiam
ser até duzentas e cincoenta
léguas das nossas, havia um rei, o mais poderoso daquelas partes, a que
eles chamavam Ogané, que entre os principes
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21 /
pagãos das comarcas de Beni era havido em tanta veneração como àcerca de
nós os Sumos Pontífices».
(23).
Se mais tarde lá veio a morrer, foi porque de novo para
ali seguiu com
outra missão.
Uma vez mais se chega a concluir que João Afonso de
Aveiro, o poeta que
se foi a viver nas ilhas e de lá escreveu ao Coudel-Mor, era outro muito
diferente do Piloto que andou a descobrir terras africanas.
Relembro agora, por certo já escusadamente, as razões
invocadas pelo escritor aveirense RANGEL DE QUADROS.
Não digo apenas que o piloto se daria melhor com os
perigos e aventuras marítimas do que com as musas.
Por aqueles tempos remotos, os pilotos
− que, «durante mais de três
séculos, foram os únicos depositários da ciência náutica a bordo dos
navios de Portugal» − eram, por via de regra, pessoas humildes, gente
do povo, cheirando a maresia, habituada a afrontar e vencer, serena e heroicamente, as arremetidas traiçoeiras das vagas.
A sua escola era o mar e só na frequência das suas aulas aprendiam a
desprezar temores, a enfrentar perigos, a ambicionar triunfos, a
compreender a linguagem dos astros, dos ventos, das correntes e das
marés e a fixar rumos de glória aos navios das descobertas.
Destes seria o piloto João Afonso de
Aveiro − tão arraia miúda que nem
sequer se lhe conhecem os nomes dos pais e não, como o poeta seu
contemporâneo e homónimo, pessoa de qualidade, filho de gente nobre,
aluno de outra escola, com diversos programas e compêndios, onde se
ensinava a arte de frequentar os salões da fidalguia e se apurava o
gosto de fazer versos.
Quanto à lista dos escritores que, ocupando-se do piloto João Afonso
de Aveiro, lhe não atribuem o dom da poesia nem o apontam como criado do
infeliz Duque de Beja, só há a dizer que poderia alongar-se extraordinariamente.
Não conheço mesmo historiador ou estudioso da história dos nossos
descobrimentos marítimos, cujo nome agora me ocorra, que confira ao
ousado navegador aquela prenda ou lhe outorgue este aristocrático
mester.
E de tudo me parece poder concluir-se com segurança que um era o
apreciado poeta e outro o Piloto audacioso.
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22 /
O estudo que me proponho e a que este serve de introdução, é
exclusivamente sobre o navegador aveirense do século XV − humilde e
heróico marinheiro que tanto enobreceu o seu berço.
Amor da terra comum, a outrora vila e hoje cidade sempre «linda,
cantante, arejada, que desabrocha como uma
fresca flor aquática, como um enorme nenúfar branco, de entre as águas
que por todos os lados a cingem, a atravessam em canais, a banham, a
reflectem, a espelham, lhe erguem um hino claro, fremente, entusiástico,
apaixonado»?
Amor dos homens que a serviram, realçando as suas incomparáveis belezas
com os encantos das suas virtudes e
as maravilhas dos seus heroísmos?
Para além de tudo isso, o meu trabalho pretende ser uma tentativa de
reparação, em consciência devida pelos aveirenses a um dos que, andando
ousada mente a acender luzeiros pelos negros caminhos do continente
africano e de lá trazendo punhados de informações que despertaram o
maior interesse e, por felicidade, aumentaram as esperanças da
realização de um sonho, mais, eficazmente contribuíram
para a descoberta do caminho da Índia.
Ao menos por agora, deixo de
lado aquele João Afonso de Aveiro que repousadamente escrevia, sobre
laudas de papel, lindos versos, para ocupar-me do outro João Afonso
de Aveiro que arriscadamente traçava, sobre ondas de mar,
luminosas rotas − este bem lavado de qualquer simples suspeita de
traição ao Rei de Portugal D. João II, que devotadamente serviu,
acrescentando em muito as suas glórias e preparando outras maiores para
o seu afortunado sucessor.
ANTÓNIO CHRISTO |