APÓS o desastre, em 711, da batalha de Guadalete, em
que se acabaram os dias da monarquia visigótica, a ocupação da península
pelos árabes fez-se com pequena resistência de seus habitantes. De uma
maneira geral,
pode dizer-se que estes aceitaram pacificamente os conquistadores. Deste
modo, os homens livres que, à maneira dos actuais proprietários rurais,
viviam do cultivo de suas terras, sujeitando se às exigências
tributárias que o vencedor lhes impôs, foram mantidos na posse de seus
bens, respeitados nas suas crenças, nas suas leis, usos e costumes
particulares. Os godos chamavam a estes homens privados; os novos
conquistadores chamavam-lhes moçárabes.
Começada, dez ou onze anos depois do desembarque, a reacção contra os
invasores por Pelágio, nas Astúrias, foi-se esta desenvolvendo
lentamente durante mais de sete séculos, até à libertação completa do
solo peninsular em 1492.
À medida que as fronteiras do reino cristão das Astúrias se dilatavam,
os seus reis, proprietários de todas as terras
apresadas, por uma nova concepção do direito de propriedade e de
soberania, iam-nas distribuindo pelos seus homens ou confirmavam-nas
aos que com sua autoridade e seu nome
as apresavam. Chamaram-se estes proprietários livres − presores e depois
herdadores. Sobre estes não pesava outro encargo além do de serviço
militar. Este serviço era o do fossado, isto é, o de acompanharem o rei,
a cavalo, com
escudo e lança, nas incursões em terras de infiéis, que se faziam todos
os anos na Primavera, e eram destinadas a colher os inimigos de
surpresa, aprisionando-os, talando-lhes os campos e carregando a maior
presa possível. Por estarem sujeitos a este serviço chamavam a estes
homens cavaleiros vilãos.
Este tributo era pessoal, mas com o andar do tempo e com o avanço da
reconquista, como a sua base era a propriedade, foi o encargo pouco a
pouco ligando-se a esta.
/
176 /
E quando pela distância não foram mais necessários os serviços destes
vilãos cavaleiros de Além Douro, substituíram-se estes por um tributo em
géneros ou dinheiro que onerava as propriedades, as quais, por isso, se
chamavam afosseiradas.
Para o Sul do Douro, e sobretudo do Vouga, ou porque ali fosse mais
duradoura a luta de fossado ou porque a este encargo se juntassem outros
de diversa natureza, predominou o nome de cavalaria em vez de fossado ou
fossadeira. E chamavam-se terras de cavalaria aquelas que suportavam
este encargo.
O escritor ROCHA MADAHlL publicou no
Arquivo do
Distrito de Aveiro, vol. VIII, o Rol das Cavalarias do Vouga, depois de
o ter lido através de fotografia que mandou tirar na Torre do Tombo,
onde se encontra o original.
«O documento não se encontra datado»
− diz aquele erudito escritor − «é
constituído por dois pequenos pedaços de pergaminho cosidos um ao outro;
no verso, em letra muito mais recente, foi assim sumariado: − Declaração
dos foros que se haviam de pagar a Elrei dos lugares de Vouga,
Avellans e outros nomeados.
«A isto se acrescentou a data de 1328 a tinta diferente, restando ainda
averiguar se ela se deve entender como era de César ou como ano de
Cristo; portanto, 1328 ou 1292, reinado de Afonso IV ou de D. Dinis.»
Para elucidar o leitor sobre o que deve entender-se por
Cavalarias,
ROCHA MADAHlL recorre às Inquirições de Afonso III, ao Elucidário de
VITERBO e a HERCULANO. Este último não achou melhor definição de
Cavalaria do que a passagem do referido Rol:
«Hoc est forum quod debent facere quando dominus rex fuerit in
fossado,
vel in hoste vel in anuduva; debent ire cum suo corpore et debent levare
unum poldrum et unum scutum et unam lanceam et debent stare cum suo
corpore septem domas.»
Antes de entrar no exame detalhado das
Cavalarias do Vouga, importa
definir melhor o que eram as Cavalarias e as modalidades que apresentam
em face dos documentos. ALEXANDRE HERCULANO começa por estabelecer
alguma diferença entre a propriedade sujeita à fossadeira e a que
suportava o encargo da Cavalaria. É que aquela só estava sujeita àquele
tributo, fossado, isto é, o proprietário dela era obrigado na Primavera
de cada ano a ir ao fossado, a cavalo, com escudo e lança. Nenhum outro
tributo pesava sobre ela. Quando este serviço se tornou desnecessário,
pelo avanço da reconquista, o encargo transformou-se, como já disse, num
tributo em géneros ou dinheiro. Na Cavalaria, além
/
177 /
[Vol. XVI -
N.º 63 - 1950]
do fossado, o senhor da terra era obrigado à anúduva e ainda a outros
tributos, de diversa natureza, como a colheita, lutuosa, etc. O que era
a anúduva di-lo ainda HERCULANO
baseado numa outra passagem do Rol das Cavalarias do
Vouga: «et quando fuerint in anuduva non debent facere nisi mandare cum
una vara in sua manu. Et si forte non fuerint cum illa debent pectare 7
bragales (e quando forem
ao serviço das muralhas nada mais devem fazer que mandar com uma vara na
mão. E se porventura não forem, devem pagar sete bragais)».
O fossado transformou-se num imposto sobre a propriedade e de tal
maneira definitivo que no século XIII quase estava perdida a origem
dele.
Na Cavalaria, a obrigação do serviço militar manteve-se e só o da
anúduva era substituído por um tributo, quando dispensado.
ALEXANDRE HERCULANO atribui a diferença entre as propriedades
fossadeiras e as de Cavalaria à circunstância histórica de serem aquelas
as dos presores, isto é, dos cristãos que as tomaram com o sacrifício de
guerra, na reconquista, enquanto as Cavalarias correspondiam às terras
dos moçárabes que passavam à zona cristã por virtude da mesma
reconquista que os respeitava na posse delas, sem nenhum sacrifício de
guerra por parte deles.
Além destas Cavalarias havia outras, com outros encargos além dos
indicados, às quais o mesmo historiador atribui uma origem diversa:
foram os reis que as criaram elevando alguns dos seus colonos
voluntários à categoria de herdadores, dando-lhes as terras e
impondo-lhes a obrigação do cavalo para o fossado e anúduva, e ainda
outros encargos. Os reis, nos séculos da reconquista, eram os maiores
proprietários de seus estados. Era com os réditos dessa fazenda que eles
pagavam os encargos gerais da administração pública.
No século XIII, quando chegava ao fim a grande transformação lenta dos
servos da gleba em colonos voluntários, os bens do rei dividiam-se em
dois grandes grupos: prédios reguengos e aforados. Nos primeiros não
havia o direito de sucessão. Se os filhos eram continuadores dos pais na
habitação e cultivo das terras, era porque ali tinham nascido e por uma
questão de conveniência deles e do senhorio, mas este podia removê-los
sem que eles pudessem legalmente opor-se-lhe; igualmente eles podiam
abandonar as terras sem que ao senhorio ficasse o direito de
reconduzi-los a elas, como acontecia com os servos da gleba. A prestação
era certa quanto à razão, mas incerta na quantidade, visto pagarem uma
medida por cada tantas de produção. A razão era estabelecida de acordo
com a fertilidade das terras e outras circunstâncias.
/
178 /
Os cultivadores de casais ou terras aforadas tinham o direito de
sucessão. Estas propriedades passavam de pais a
filhos, podiam ser partidas, doadas ou vendidas, ainda que
juridicamente constituíssem um todo, encabeçando um deles a obrigação
desse todo. Nos casais reguengos também se falava em foro, mas ali este
representava o tributo imposto à habitação. Terra reguenga, que não
tivesse casa, não pagava foro.
Feitas estas considerações gerais, sem nos determos nas numerosas
modalidades que aquelas duas grandes categorias tomavam, nas suas
divergências de terra para terra, o que não teria maior interesse para o
nosso caso, podemos fazer a pergunta:
− Que natureza tinham as Cavalarias do Vouga? Viriam
da presúria, da imposição em terras de moçárabes? É um problema complexo
e de difícil resposta. Só o estudo de cada uma delas nos habilitaria a
dá-la. Podem ter origens diversas. Esse estudo, porém, torna-se quase
impossível, à falta de documentos. As considerações que vou fazer são
apenas uma contribuição. Outros as farão melhores.
Estas são as Cavalarias mencionadas pelo Rol:
«...in arcus una. in auelaas. duas. / Jn Oes una. et
est de martino laurêcij. Magofores. una. in alfelas. una. / boralia.
duas. Açiquiss. duas. Reqardanes quĩque in spiel. septem. Jn paradela /
duas in quasaio. duas Jn orone. duas. Jn Sagadães tres Jn bbrunido.
duas. et fuit / una de. p. menendj Jn laeses. duas. et fuit una de
martino petri et alia de paiam / in cristello. una. Jn ualle maiorj
una. et fuit doruilido, Jn soutello. una. Jn arinus. una. Jn maciata.
duas J (sic) lamas. una. et fuit de laurẽcio / et fontes. una. et fuit
de petro budel. Jn caluanes. una. et fuit de irmigia / Jn lauri. una.
et fuit de batalia. Jn ourol. una in agueta. Jn auca. una. / in illauo.
duas. et fuit una de formã et villa de milio. una. et fuit / de michaele
de sereẽs. Jn aueiro. tres. et fuit una de pelagio da / poza in sáá.
una. in isgeira. tres. villario. una. Jn exxio, tres. / Jn Oes. dagada.
una.. hoc est forũ quod / debẽt facere quando Dominus. Rex fuerit in
fosado uel // in oste uel in anudoua debẽt ire cum suo corpore et debẽt /
leuare unum. poldrũ et unũ scutũ, et unã lãceam et debent / stare cõ
suo corpore. septem. domaas et debẽt cõtare post / quam exeãt de sua
casa et quando fuerít inn (sic) anudoua nõ / debẽt facere nisi mãdare cõ
una uara in sua manu / et si forte nõ fuerit cõ illa. debẽt pectare.
septem. braga / es quas tãtum solebãt
pejtare in tẽpore de uestro patre / et modo. posuerũt pro. decem.»
/
179 /
Todos estes povoados existem ainda com a excepção do Cristelo, que me
parece ser o de Valongo do Vouga e não o da Branca, como supôs ROCHA
MADAHIL.
Pela sua situação, vê-se que eles se estendem por todo o termo do velho
Julgado de Vouga, obedecendo a sua indicação ao mesmo critério que
orientou a Inquirição de D. Dinis, de 1282. A localização de Cristelo na
Branca estenderia a esta freguesia a terra de Vouga, o que se me afigura
não ser possível por pertencer a Branca ao território portucalense.
Comecemos por Valmaior. Na Inquirição de Afonso
II de 1222 − metade da
vila pertencia aos herdadores e outra metade ao rei.
Da Inquirição de D. Dinis de 1282 consta: «Item
Joham Martis disse que a
quintha ẽ que mora Pedro Piriz e o quinõ hy cõparou steuã rudrigit que
ouuiu disser que est caualaria». Por aqui se vê que a Cavalaria estava
incluída
na metade dos herdadores.
Em Segadães:
«Item disse petro iohannis
neto que a ĩ seghadaes III
Caualarias e tẽ nas os erdadores» −
Também Recardães era metade reguenga e metade de
herdadores.
«Item da freighesia de Regardães
Jojanne Aluo disse que a ĩ Regardães V
Caualarias e dis que tem inde duas peças e Egreia de Agada que li
mandárõ da Caualaria de Joanne aluo e dise que tem a Egreya de Reguardaes hũa peça desta
Caualaria e dise que ergreya despiel outra peça..........»
Mas quem eram estes herdadores? Seriam descendentes ou representantes
dos primitivos presores, dos moçárabes confirmados após a reconquista na
posse de suas terras, ou serão antigos colonos voluntários, elevados à
categoria de cavaleiros?
A circunstância de em algumas freguesias os inquiridores de 1282 terem
identificado as cavalarias sem grandes dificuldades pode levar a supor
que elas fossem de instituição recente. Este argumento tem muito pouco
valor. Os casais reguengos, como os dos mosteiros e igrejas e outros,
conservavam-se através dos séculos como base da organização da
propriedade. Os seis casais reguengos que a Inquirição de 1227 menciona
em Crastovães, ainda foi possível identificá-los num tombamento de 1749.
Outro tanto aconteceu com as cavalarias. É minha opinião que elas vêm de
/
180 /
muito longe; vêm do tempo de Afonso V e do imperador Fernando.
Aqueles herdadores eram realmente os herdeiros ou sucessores dos
antigos presores ou dos moçárabes. É certo que os reis fizeram doações a
colonos voluntários, elevando-os à categoria de cavaleiros, mas estes
homens, que descendiam dos antigos servos da gleba, não se chamavam herdadores. Era ainda muito cedo para que as duas classes sociais se
confundissem. Também as propriedades destes cavaleiros se não chamavam
cavalarias.
Mas não era só com doações a servos voluntários ou homens livres que os
reis conseguiam cavalos e cavaleiros para o fossado e para a hoste. Os
séculos XI e XII foram o grande período de constituição e renovação dos
municípios, pequenos laboratórios onde nasceram os grandes princípios da
liberdade dos povos; onde o homem, cansado de lutar sozinho com os que o
escravizavam, começou a sentir a força do agregado quando este
enfrentava, como pessoa jurídica, o bispo, o nobre ou mesmo o rei. E
todos aqueles que no município podiam, por seus haveres, sustentar
cavalos, eram vilãos cavaleiros e deviam servir o rei no fossado e
hoste, de acordo com o que estatuía a carta de constituição. Também as
terras destes vilãos cavaleiros se não chamavam cavalarias.
Já em artigos anteriores me referi algumas vezes e com propósitos
diferentes a Egas Erotis. Este homem vivia, no fim do século X, nas suas
terras dentre o Douro e o Vouga. Veio Almançor e ele fugiu para o Norte,
deixando as propriedades com os servos que as cultivavam. Mas quando, em
1017, Afonso V, rei de Leão, levou as suas armas vitoriosas até Montemor,
logo ali se lhe apresentou o filho do mesmo Egas Erotis, D. Gonçalo
Viegas, a mostrar-lhe a relação das suas propriedades e a pedir-lhe que
lhas confirmasse. E o rei mandou fazer a destrinça das que tinham sido
adquiridas e das que vinham de avoenga. Esta divisão tornava-se
necessária, porque certamente eram diferentes os encargos que haviam de
pesar sobre elas. Um encargo seria, porém, certo para umas e para outras
se dele não fossem expressamente isentas: era o do serviço militar.
Em 1064 D. Fernando retomou Coimbra. Também a ele correm os filhos de
D. Gonçalo a pedir-lhe confirmação do inventário confirmado por Afonso
V. E este fê-la; mas mais tarde, em 1077, um descendente do velho
Gonçalo, teve de voltar à carga, porque Sisenando, governador geral de
toda a terra entre Douro e Mondego, a Ocidente de Lamego, parece que
não estava disposto a respeitar algumas das terras que Pelaio
Gonçalves alegava serem suas. É que Sisenando dava aos seus apaniguados
vilas ermas e terras incultas para
/
181 /
edificar, povoar e cultivar. É possível que quisesse dar algumas de
Pelaio Gonçalves, Por este inventário verifica-se que lhe pertenciam, na
região do Vouga, as seguintes vilas: Sala (Sá - Aveiro); Sagadanes
1/4. (Segadães);
Santa Maria
de Lamas 1/2; Recardanas 1/2 (Recardães); Farelanes 1/2 (Cavadas); Castrelo
1/2 (Cristelo); Arraval 1/4. (Arrabel); Feramontanos 1/3 (Fermentões);
Vale Longun 1/3 (Valongo); Casal de Lausato (Águeda); Iafafi 1/2 (Jafafe);
Cristoualannes 1/4 (Crastovães); Faramontanelos (Fermentelos);
Paredela (Paradela); Aurentana (Ourentã); Alavario 1/3 (Aveiro); Padaranes (Pedaçães).
Com excepção de Fermentelos, Pedaçães, Arrabel, Crastovães, Jafafe,
Fermentões, todas as outras tinham cavalarias. Mas justificam-se estas
excepções.
Fermentelos, ou por compra, ou por troca ou por qualquer outro motivo,
tinha passado a reguengo. É nesta situação que a encontramos na
inquirição de 1222.
Pedaçães: O velho Gonçalo Viegas tinha-a comprado ao conde D. Diogo. Era
terra de nobre e por isso imune. (P. M. H., Doc. DXLIX).
Crastovães: Não figurava no inventário de 1050 e, na inquirição de 1222,
com excepção dos casais de Grijó e Santa Maria de Vagos, todo o restante
era reguengo.
Arrabel e Cristelo: Devem ter formado uma só cavalaria, porque são
ligados.
Esta coincidência de recaírem as cavalarias sobre aquelas vilas de que
foi senhor na totalidade ou em parte Gonçalo Viegas é que fundamenta no
meu espírito a conjectura de que as respectivas cavalarias fossem
impostas nas partes que lhe pertenciam, como encargo militar. E o que se
diz das terras de Gonçalo Viegas, diz-se de outras, porque nas
condições desta havia naturalmente outras.
Se inquirirmos das outras terras do
Termo de Vouga em que há cavalarias,
deparamo-nos como uma origem semelhante à daquelas, isto é, confirmação
aos seus possuidores, que as tinham por si e por seus antepassados desde
o tempo dos mouros, ou aos que as tinham de presúria, ou aos que as
receberam quando apresadas pelo rei ou em seu nome, para povoação,
edificação e cultivo.
Em 1103 o presbítero Inácio fez doação ao bispo Maurício, de Coimbra, de uma propriedade que tinha em Esgueira, na qual se incluía a Igreja. Diz o documento «...omni mea racione quod in ipsa
predicta ecclesia heredito vel in ipsa uilla parentum meorum vel de
apresuria temporibus Sesnandi consulis Colimbriensis.» (Doc. Med.
n.º
100).
Veio-lhe, pois, a propriedade de herança dos pais e a estes por presúria
no tempo de Sesinando. Como, porém,
/
182 /
Esgueira, ao tempo de Sesinando, já há muito estava em
poder dos cristãos, não deve tratar-se de uma presúria desta época, mas
duma daquelas muitas doações daquele cônsul de terras que foram de
presúria, revertidas por qualquer circunstância ao domínio real, e
então por ele de novo dadas a gente sua com aqueles encargos a que me
venho referindo. E em 1282 havia cavalarias em Esgueira.
As cavalarias de
Ílhavo e Aveiro deverão ser anteriores
a Sisenando, talvez constituídas em tempo de Afonso V.
Disse, quando tratei do julgado de Vouga, que este fôra,
no período que decorre da tomada de Coimbra em 987 pelos mouros à sua
retomada pelos cristãos em 1064, o grande campo das correrias árabes e
cristãs. Era natural que esta região sofresse, por isso, grande
despovoamento, que os matagais crescessem e se multiplicassem as feras.
Em 1088, Sisenando fez doação de terras entre
Ílhavo e Sôza a certo
presbítero de nome Rodrigo, para ele edificar e plantar, segundo a sua
vontade e posses, podendo deixá-las a quem quisesse. A leitura do
documento relativo (Port. Mon. H., doc. DCXXXXIX) pode levar-nos
a supor que o presbítero foi chamado por Sisenando e que só depois da doação é
que começou a edificação e plantio. É o próprio Rodrigo que nos diz que
assim não foi, num documento de doação que fez à Sé de Coimbra, em 1095,
daquelas mesmas terras (P. M. H., doc. DCCCXV). Chama-lhes ele Ripas
Altas. Por este nome, que corresponde ao actual lugar de Ribas Altas, e
por outras indicações do documento, vê-se que era grande o trato de
terras doadas, as quais, a Ocidente, vinham até
Ílhavo. Ora diz Rodrigo, que já então não era presbítero, porque tinha sido lançado fora daquela dignidade (de ea dilfnitate
dejectus) que depois que o rei Fernando tomou Coimbra, restituiu aos
cristãos as suas propriedades e deu-lhes liberdade de as apreender,
edificar e plantar; que, à morte do rei Fernando, seu filho Afonso VI
confirmou aquela concessão. Confiado nela, o presbítero entrou naquela
densíssima floresta (?) que desde antigos tempos era habitação de feras
(...ista igitur auctoritate confissus ingressus sum et ego densissimam
silliam que ab antiquis temporibus habitaculum erat bestiarum...) e lá
gastou quanto tinha em edificações e plantações de todo o género.
Receoso da inveja dos homens e da possibilidade de ser prejudicado,
tratou de conseguir carta de segurança de Sisenando, que lha deu pelo
documento referido. Deste modo, quando Sisenando lhe fez a doação, já a
grande obra de plantação e edificação estava pronta. Ribas Altas tinha
surgido com a sua igreja daquela espessa floresta habitada por feras.
Não creio que Fernando e Sisenando tivessem dado aquelas terras sem o
encargo das cavalarias, que
/
183 /
sempre se impunha e até presumia, se não houvesse declaração contrária.
A este tempo também Ílhavo já existia e era terra de
herdadores. A inquirição de 1222 não menciona ali nenhum
reguengo ou foro. Em tempo do rei Fernando, um tal Recemundo filho de
Maurele e Baselissa fez doação do que tinha, em vários lugares, ao
mosteiro de Vacariça. São esses lugares: Nigreles − MarneI onde chamam
Arravel − Ílhavo −
Tarouquela − Recardães − Carvalhaes − Antolini e Nespereira − Ferreirolos
e Castro − Seixoselo.
O facto dos descendentes do velho Gonçalo Viegas terem
quinhões em todas estas terras menos em Ílhavo levou-me a
crer que este Recemundo talvez fosse um seu parente. Esta suspeita
avolumou-se com os nomes que confirmaram o documento que parecem ser os
mesmos descendentes de Gonçalo Viegas − Pelágio ou Pelaio Gonçalves, Ero
Gonçalves e Sueiro Gonçalves.
Poderia continuar com mais algumas indagações sobre as terras que o Rol
nos aponta como sujeitas a cavalarias, mas tal não é necessário visto o
meu propósito ser apenas a justificação da natureza que lhes atribui e a
determinação da época em que foram constituídas.
Da inquirição de Afonso II de 1222 e da de D. Dinis de 1282 tiram-se
duas conclusões:
a) As cavalarias não se tinham transformado, como o fossado, num tributo
em dinheiro ou géneros sobre a terra. Elas mantiveram a sua natureza
primitiva de serviço pessoal com base na terra.
Ao Norte do Douro o
fossado, isto é, a
obrigação do serviço militar de
cavalo, à medida que
se tornou desnecessário pela maior distância do inimigo, foi-se
convertendo num tributo de géneros ou dinheiro, que recaía sobre a
propriedade do vilão cavaleiro. E este tributo foi-se pouco a pouco
desligando da pessoa e aderindo à terra, e de tal maneira que a tradição
da sua origem em muitos lugares desapareceu.
b) O serviço das cavalarias não foi certamente exigido durante os
primeiros reinados, pois de outra maneira ficariam sem justificação as
inquirições de Afonso III e D. Dinis.
Os inquiridores de D. Dinis foram especialmente incumbidos de inquirir sobre as
cavalarias e sobre reguengos e foros «os
quais sõn ascõdudos e aleados e mal parados». Que o fim principal foi
indagar das cavalarias, mostra-o o trabalho feito em que se vê que essa
foi a maior preocupação dos inquiridores. A inquirição de D. Dinis não é
um trabalho isolado, antes deve considerar-se como uma continuação das
inquirições de Afonso II e sobretudo de Afonso III.
/
184 /
É conhecida a carta mandada por Afonso III, em 1265,
ao Juiz, Tabelião e Rico Homem de Viseu, ordenando-lhes que inquirissem
das terras foreiras ou reguengas que homens daquele julgado tivessem
vendido, dado ou testado a Ordens, nobres ou outros homens, com perda
dos foros ou direitos reais; das herdades daqueles que as abandonaram,
para irem viver em terras de nobres ou das Ordens; e dos casais despovoados; e que fizessem reverter os primeiros ao cabeça
do casal e os segundos e terceiros para serem dados a homens que
pagassem o foro e direitos que pagavam em tempo de seu
pai e avô.
E diz mais a carta:
«Item mando quod milites qui a tempore patris mei
et auuy mei abuerunt aliquas meas hereditates de caualaria quod serviant eas de collecta et de caballo et de iugada
sicut vilani et ordines similiter et dent unde mihi omnes
alias meos foros et directos quos inde dederunt tempore
patris mei et auuy mei ad dies assignatos de anno ad quos
eos mihi dare debuerint.»
Esta última parte da carta de Afonso III, que HERCULANO
diz ser certamente uma carta circular, deixa-nos ver com
muita exactidão o que eram as cavalarias: Propriedades
sujeitas a encargos vários em géneros ou dinheiro e ao serviço pessoal a cavalo; mostra-nos ainda que algumas destas
propriedades tinham sido dadas no todo ou em parte a cavaleiros (fidalgos), igrejas e Ordens, isto é, a pessoas isentas,
razão por que não pagavam nem foros, nem direitos, nem
serviço pessoal a cavalo. E ordenava que os seus possuidores, quaisquer que fossem, pagassem pelas propriedades,
como estas pagavam em tempo de seu pai e avô.
Nada tem que ver, portanto, estas cavalarias com os cavaleiros vilãos dos grémios municipais, porque estes tinham a sua
obrigação criada e definida nos respectivos forais, e o
critério era a riqueza pessoal e não esta ou aquela propriedade.
A inquirição de D. Dinis em 1282, em terras do Vouga,
é, como disse, uma continuação deste trabalho. E o exame dos resultados
mostra-nos como era necessária. Em Arcos as duas cavalarias estavam: uma
com Santa Cruz e outra
com a Sé de Coimbra. Em Oliveira do Bairro, uma com Fernão Martins e
outra com o Bispo de Coimbra. Em Eixo
estava uma com os filhos de D. Domingo, outra com um
Conde, e outra com o mosteiro de Grijó; a de S. João de
Loure estava com o bispo de Coimbra. Em Recardães andavam as terras de algumas divididas por igrejas e particulares.
E assim em quase todas. Quais seriam as providências
/
185 /
tomadas por D. Dinis em face das conclusões da Inquirição
de 1282? Haverá alguma relação entre esta inquirição e
o Rol das cavalarias? Confrontemos.
Como se vê, não há uma correspondência completa entre
a inquirição e o Rol. Qual dos documentos dirá a verdade?
É possível que D. Dinis se não tenha conformado com o resultado da inquirição. O trabalho dos inquiridores foi
incompleto e vago. Chega a levantar-se no espírito a suspeita de que eles tivessem interesse em contrariar este inquérito. O
inquiridor Domingos Gonçalves era de Adofernando, uma quinta da
freguesia de Valongo que ainda hoje mantém talvez o mesmo aspecto de
outrora. É de supor que este
homem conhecesse melhor a sua freguesia que as outras. Também, por outro
lado, havendo ali povoados que vinham
/
186 /
de séculos, não era natural que neles a tradição se perdesse ou
obliterasse mais que nas outras freguesias. Entretanto, foi em Valongo
que os inquiridores só encontraram informações confusas, contraditórias,
não tendo chegado a nenhuma conclusão segura. Vejamos:
«Pedro Martins, da Cadaveira, disse que duas leiras que lavram em
Brunhido que são reguengo.»
«Domingos Pires de Valongo, disse que há em Arrancada uma cavalaria,
que a tem D. Maria, viuva de Estevão Mendes da Costa; que ouviu dizer
que o rei havia torto no Beco; que havia em Brunhido um casal del Rei.»
«Martin Durão de Arrancada disse que havia uma cavalaria em Brunhido e
que tinha o Rei um casal ali.»
Tudo vago, tudo impreciso. Não há duas testemunhas que combinem. Uma diz
que há uma cavalaria em Arrancada, outra diz que é Brunhido. Duas dizem
que há em Brunhido um casal reguengo, outra que são duas leiras, e ainda
outra que é só metade destas. A testemunha de Arrancada não fala na
cavalaria deste povoado, mas fala da de Brunhido que é povoado vizinho.
Se compararmos esta inquirição com a de 1282 e com o
Rol das cavalarias
nota-se que a intenção de esconder a verdade é manifesta. Sessenta anos
antes, em 1222, disseram os inquiridores que Brunhido era Reguengo e
dele eram prestameiros os filhos de Fernando Brunedo. Só se referiram os
inquiridores de 1282, vagamente, a duas cavalarias − uma em Arrancada,
outra em Brunhido − O Rol dá-nos 5, sendo 2 em Brunhido, 2 em Lanheses,
e uma em Cristelo. E todas identificadas. Como é que os inquiridores,
poucos anos antes, em 1282, que eram «os mays ansiães que nós achamos»
não conheciam nem nunca ouviram falar nestas cavalarias? O mesmo sucedeu
noutras freguesias. Sempre incompletos. Em nenhuma eles definiram as
obrigações dos detentores das terras de cavalaria. E, todavia, eles
encontraram no caminho quem lhes podia dar informações seguras e
precisas de toda a terra de Vouga: foi João Domingues, de Casal de
Álvaro, que informou haver em todo o termo de Vouga 62 cavalarias e
meia; e Martin Pires de Oronhe, antigo Juiz do julgado extinto de Ois,
que indicou com exactidão todas as cavalarias deste julgado. Ora se em
Ois, no antigo julgado, que era um desmembramento do de Vouga, havia
conhecimento perfeito das cavalarias, como é que
neste as ignoravam, quando é certo que não havia muito
tempo que o porteiro dali as andou reclamando, como disseram os de
Ílhavo e Verdemilho? «Gonçalo Pais disse que viu demandar a Pedro Sem
Vinho duas cavalarias em
/
187 / Ílhavo»; «Domingos Martins disse que viu
o Porteiro de Vouga demandar esta cavalaria (Verdemilho)».
Foram estas e outras razões que me levaram a dizer que D. Dinis não
deve ter ficado contente com este inquérito, e daí a necessidade de
outros. E estes seguramente se fizeram em terras de Alquerubim,
Recardães, Águeda e outras. (Rol das Cavalarias do Vouga − ROCHA MADAHlL,
pág. 10).
O Rol das Cavalarias do Vouga deve representar um resumo e parte da
sentença final do longo processo da inquirição da terra do Vouga. Desta
maneira o Rol será posterior à inquirição.
O Rol das Cavalarias traz a data de 1328 a tinta e
letra diferente do
texto. ROCHA MADAHIL hesita se se trata da era de Cristo ou de César.
Sendo anos de Cristo, é o ano de 1290.
Em 1540, D. João III julgou um processo rumoroso entre a Sé de Coimbra
e o seu Deão. Em 1194 Afonso Henriques tinha doado à Sé de Coimbra −
Mata − Tamengos e Aguim. Em 1238, D. Sancho II coutou-lhe estas mesmas
terras e acrescentou-lhes Tavonde. D. Manuel deu foral à Vila Nova de
Monçarros, em cujo termo se compreendem aquelas terras. Fernão de Pina,
que lavrou aquele foral, em vez de reconhecer o direito das terras à Sé,
reconheceu-o
somente ao Deão. D. João III julgou contra o Deão e entre as razões da
sentença diz:
«E porque a ordenação no segundo livro titolo corenta dizia que as
Igrejas usassem somente daquelas coisas que lhes foram concedidas e
outorgadas pelas inquirições que se tiraram por mandado de El-rei D.
Dinis na era de Cesar de 1328.»
Houve assim na era de 1328, ano de 1290
− uma inquirição em que foram
definidos os direitos do rei − Não seria o julgamento final a que me
referi e de que saiu o Rol das Cavalarias? Assim o creio. Embora o
Rol
das Cavalarias, definindo os encargos delas, se referira só ao serviço
militar a cavalo e à anúduva, parece fora de dúvida de que sobre as
propriedades chamadas de cavalaria pesavam outros encargos. É o que se
deduz da provisão referida de 1265 e de outros documentos. Quando os
inquiridores de 1282 bateram às portas de Aveiro a perguntar pelas
propriedades de Cavalaria, ninguém quis jurar, reunindo-se o conselho para lhes dar a
resposta de que o rei só tinha ali uma colheita, sendo todos os outros
direitos de Pedreanes. E também os de Esgueira responderam que o rei não
recebia alí nenhum fôro das Cavalarias, pois o recebia o Convento de Lorvão.
Em tempo de D. Dinis, mantinha-se o serviço militar, mas
/
188 /
a anúduva tinha já sido convertida em géneros ou dinheiro, ao menos nos
anos em que não era necessária.
Eu creio que houve em terras do Vouga muitas outras cavalarias além das
mencionadas no Rol. Perderam-se,
umas por abusos dos nobres e do clero, outras por honras e coutos
concedidos a fidalgos, Igrejas e Ordens, pelos reis. Aguieira, Barrô,
Aguada de Cima e de Baixo, Perrães, Aguim e muitas outras terras foram
coutadas à Sé de Coimbra e a Mosteiros, de modo que as propriedades de
Cavalaria, que
porventura ali houvesse, ficaram por esse facto isentas. No
princípio do século XII − diz GAMA BARROS na Hist. da Ad. Pub. em Port.,
voI. II, pág. 434) − «era doutrina já estabelecida que a concessão da
carta de couto envolvia em si mesma a isenção de encargos certos,
porque, segundo notámos a outro propósito, coutar uma terra, dizia então
El-rei D. Dinis, era escusar os seus moradores do serviço militar (de
haste e de fossado), dos outros serviços pessoais e de tributos pecuniários ou em géneros, directos ou indirectos (de foro), e,
finalmente, das multas aplicadas ao fisco (e de toda a peita)».
AUGUSTO SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |