No despretensioso estudo que fiz de
Talábrica, publicado neste Arquivo do
Distrito de Aveiro, Fasc. n.º 55, a págs. 214 e segs., prometi ocupar-me
de Vacca, em artigo seguinte. Mas só hoje venho tratar do assunto,
porque não tenho tido sobras de tempo para estas divagações.
Disse naquele artigo que só dois escritores latinos fazem referência
ao oppidum Vacca: PLíNIO e AÉTHlCO. Ainda quanto ao primeiro há
dúvidas, pois só o arquétipo de Toledo, citado por GASPAR BARREIROS,
menciona aquele oppidum. Se pusermos este exemplar à margem, por
suspeita de interpolação, ficamos afinal reduzidos à vaga referência de AÉTHlCO
− «Occeanus Occidentalis habet formosa oppida − Bracara − Iacusa Augusta
− Vacca...» É pouco. Acresce a circunstância de que AÉTHlCO
é um escritor grego, do século IV depois de Cristo. Tratando-se de um
oppidum
importante, como pôde ser esquecido por tantos escritores que se
ocuparam da Lusitânia, como MELA, PLÍNIO, ESTRABÃO,
APlANO e tantos outros? Como já disse, tudo o que se escreveu sobre
Vacca apoia-se unicamente naquelas duas referências e, não obstante ser
muito o que se disse, nenhum esclarecimento novo foi aduzido sobre a
situação daquele oppidum. Apenas Frei BERNARDO de BRITO trouxe ao tabuleiro da discussão
as duas inscrições farejadas e encontradas
nos muros de OsseIa e Branca, que, se fossem verdadeiras, removiam
definitivamente todas as dúvidas sobre a existência e localização de Vacca. A crítica põe-lhe reservas.
E assim, dos escritores que têm tratado da estação luso-romana do
Cabeço de Vouga, chamaram-lhe uns Vacca,
[VoI. XVI -
N.º 62 - 1950]
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outros Talábrica, e outros negam que tivesse tido algum dos dois nomes.
Conjecturas, devaneios, literatura, bairrismo. Conclusões seguras? Poucas! As informações dos documentos medievais são escassas e
imprecisas: os testemunhos materiais do espólio até agora revelado nada
dizem sobre o nome.
As escavações mandadas desinteressadamente executar pelo Sr. SOUSA
BAPTISTA, de Arrancada, e presididas pelo investigador ROCHA MADAHIL,
vieram imprimir novos rumos e novas possibilidades a estes estudos. Na
verdade, o revolvimento das terras pôs a descoberto panos de muralha
ainda levantados, alicerces de antigos muros de defesa e outros de casas
junto deles, com alguma diversidade de forma e aspecto. Estamos, pois,
em presença duma realidade material, perante livros de pedra escritos
pela mão rude dos pedreiros, de utensílios vários, de moedas, que todos
têm urna voz de interpretação, sem dúvida difícil, contudo possível. É
para estas muralhas e alicerces e para muitos mais que ainda não estão a
descoberto, que temos de voltar os nossos olhos, procurando interpretar
tudo o que nos dizem no seu mutismo.
Estou certo de que muito se
concluirá com segurança e que,
algum dia, virão à luz do sol inscrições que recompensarão com a verdade
todos os esforços feitos. Já algumas lamentavelmente se perderam. Pedi a
todos os proprietários do Cabeça de Vouga que guardem cuidadosamente
quantos objectos encontrarem.
Vamos ao assunto:
A quem quer que visite o
chamado Cabeça de Vouga,
também conhecido pelo nome de Monte MarneI, logo se lhe toma patente que
uma grande fortaleza ali teve o seu assento e que para a fazer se aliou
à estratégia natural do lugar urna obra imensa e inteligente do homem. Este maciço ergue-se sobre uma base quadrangular definida pelas linhas
que vão da ponte sobre o MarneI à Contença, daqui à estrada que vem de Carvalhal e ao campo
marginal de Vouga, e depois pela estrada real até à ponte sobre o MarneI.
Termina superiormente em dois cones, o Cabeça Redondo e, a Nascente, o
Cabeça da Mina. Entre eles uma pequena depressão na qual assenta a
capela do Espírito Santo. Estes dois cones foram truncados, formando-se
no Cabeça Redondo uma secção com leve inclinação a Poente e de forma
elipsoidal irregular; o Cabeço da Mina foi cortado em circunferência. A
secção do Cabeço Redondo é grande, com área aproximada a um hectare, e
circundado de um talude de três a quatro metros de altura; na base deste
e acompanhando-o em toda a volta, alarga-se novo plano com mais de
trinta metros de largo e novo talude para o Norte e Poente; há ainda
outro terraço mais largo que o segundo, e outro talude mais alto que os
anteriores.
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No Cabeço da Mina, para Poente, Norte, Nascente, a estrutura dos cortes
e terraplenamentos é a mesma. Estes cortes e terraplenamentos
representam um trabalho de grande envergadura. Eu sei, e isto há-de
parecer estranho aos meus leitores (e já tenho a felicidade de saber
que alguns conto), que obras destas, munitiones oppidi, se faziam noutro
tempo,
com muito mais rapidez e facilidade do que hoje, embora o homem não
tivesse então as máquinas, instrumentos e ferramentas de que dispomos
hoje. Adiante direi porquê. É certo, entretanto, que a fortificação do
Monte MarneI revela, ainda hoje, admirável grandeza e importância do
esforço humano nos escassos vestígios que nos restam dela. Damos na
página anterior uma pequena figura representativa do Monte e dos seus
terraços. É feita sem escala e sem rigor, apenas uma
forma aproximada para orientação do nosso estudo.
Comecemos pelo Cabeço Redondo. Circundando o primeiro terraço A e
acompanhando a parte externa do talude, levantava-se a primeira muralha.
Ainda se não descobriram fragmentos de panos ou de alicerces desta
muralha, mas é certo existirem, sobretudo a Poente e Sul, onde as suas
cristas estão à tona. Vimo-las há muitos anos, revimo-las
ainda há pouco. Também o general JOÃO DE ALMEIDA no seu trabalho
notável sobre os castelos de Portugal se refere a elas.
Já não será fácil dizer qual a altura desta muralha, porque o desnível
do terraço superior para o inferior deve ter sido modificado pela acção
das águas e sobretudo pelo aproveitamento de todas estas terras para
cultura durante séculos. Entretanto, considerando a profundidade dos
alicerces das construções interiores, postos a descoberto pelas
escavações de ROCHA MADAHIL, não andaremos muito longe da verdade
atribuindo-lhe aproximadamente quatro metros. As escavações feitas
neste terraço revelaram alicerces de construções várias, que deveriam
ficar adjacentes à muralha; estas, feitas em pequena zona assinalada com
a letra X, acompanhavam a mesma muralha, em toda a volta, pois é certo
que os alicerces existem em toda a extensão Norte e Poente, do que não
tenho dúvidas em face das muitas e particulares observações que ali fiz
durante muitos anos. Novas escavações hão-de revelá-lo. A Poente, na extremidade Sul, a muralha
inflectia-se para dentro, formando o corredor duma entrada. Havia,
assim, uma porta para esta fortaleza, voltada a Sudoeste, olhando o
MarneI, onde ainda então não havia a velha ponte. Examinando bem o
aspecto do terraço a partir deste ponto, pode ainda adivinhar-se larga
rua que seguia a Nordeste, onde a muralha se inflectia de um
e outro lado para formar corredor da outra porta, voltada
para o Vouga. Beirando esta rua, há ainda cristas de alicerces que, uma
vez descobertos, revelarão a configuração
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geral dos arruamentos e construções internas. É a Poente
que a muralha devia ter o seu máximo de resistência e de fortificações
auxiliares, porque é este o lado mais acessível do monte. Iguais
cuidados deviam ter orientado as fortificações de Nordeste para defesa
da porta que deste lado olhava o Vouga. A Nascente o terraço aperta-se
para terminar em curva bastante fechada.
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Pela configuração deste lado,
somos
facilmente levados a conjecturar a continuação das muralhas para
Nascente, formando como que uma espécie de corredor de ligação com a
fortaleza do Cabeço da Mina. Dentro deste corredor ficaria o templo
pagão, hoje representado pela capela do Espírito Santo. Se das muralhas,
a que atrás me refiro, encontrei vestígios, que lá estão à espera de
quem os faça sair do seu esconderijo multi-secular, das paredes do
corredor devo dizer que nada encontrei. E não é para estranhar a
ausência destes elementos, porquanto a superfície
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86 / naquele local deve ter sofrido grandes modificações por motivo da
cultura constante e ainda pela remoção de terras para encher as covas
das pedreiras próximas, do lado do Sul, que devem ter fornecido
abundância de pedra para as construções. Entretanto, escavações
cuidadosas, quer do lado do Cabeço de Vouga, quer do lado oposto, no
Cabeço da Mina, poderão patentear os entroncamentos e trazer a verdade
desta conjectura. Adiante voltarei a referir-me a esta particularidade.
Ao primeiro terraço seguia-se
outro com uma largura de trinta metros aproximadamente, separado de um terceiro, de maior largura, por
um talude igual ou
mais alto que o primeiro. Este terraço só é hoje reconhecível a Poente,
Norte e Nascente; pelo lado Sul, se existiu,
foi desfeito pelos trabalhos agrícolas.
Só na parte Norte, e numa pequena extensão, encontrei restos de parede
que bem podem ter sido feitos em época posterior para sustentação de
terras. Não posso, portanto, afirmar que junto a este talude tenha havido outra cintura de muralha.
Passemos agora ao Cabeço da Mina. É circular a configuração do primeiro terraço. Tudo leva a crer que a sua cintura de
muralhas acompanhasse o respectivo talude, mas as escavações feitas sob a orientação de ROCHA MADAHIL revelaram
coisa diversa, de difícil explicação. Tenho de reproduzir aqui a
descrição feita por aquele acatado investigador para não fazer voltar o
leitor ao n.º 28 deste Arquivo, onde ele publicou um
trabalho valiosíssimo sobre a estação do Cabeço de Vouga.
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E ainda, para facilitar e
esclarecer as considerações que vou fazer sobre as muralhas descobertas,
seguirei a planta e fotografias das construções ali publicadas. Por esta planta se vê
que em vez das muralhas acompanharem o talude em forma
circular, formavam sobre o terraço um rectângulo de 40 metros
de lado aproximadamente. Este rectângulo não ocupava todo o terraço,
acompanhava o talude pelo Poente e Sul e afastatava-se dele pelo
nascente e norte. Diz ROCHA MADAHIL:
«Junto à cisterna, do lado Poente, a escavação revelou a existência
dum muro orientado de Norte a Sul (fig. 5).
Descarnando a construção em comprimento e profundidade,
deparou-se um lanço de muralha de 0,55 de largura na actual
extremidade superior e 0,60 na base, 3,30 de altura que até
aí se encontrava completamente soterrada em terra humosa
e raizame, lanço que se estendia por 41,25 (fig. 6). Esta
muralha, porém, constituída por duas fiadas apenas, de arenito, de
aparelho rectangular, romano, sem enchimento intercalar, não é um paredão singelamente corrido em toda a sua extensão:
contrafortam-na oito pilares equidistantes, com saliência igual para
ambas as suas faces.
«Na extremidade Sul da muralha, esta inflecte em ângulo
recto para Nascente, pouco existindo desse lanço por ir encontrar a rocha
viva, e acima do nível desta tudo haver desaparecido; o
declive do terraço era para Poente, para o lado da
muralha contrafortada.
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88 /
«No extremo Norte, em ângulo recto também, outro lanço de muralha se pôs
a descoberto, em alinhamento perfeito, com 0,90 de espessura, sem mais
contrafortes do que um ressalto perto da extremidade Nascente e medindo
34,65 ao fim dos quais volta para Sul, em ângulo recto também, mas
desaparecendo a breve trecho, como o lanço Poente Nascente, pela
elevação natural do terreno. O grande rectângulo muralhado apresenta as
suas linhas mais importantes voltadas a Poente e a Norte.
«Dentro do recinto, que deve ter sido imponente, a avaliar pelo que resta de seus muros, que justificam perfeitamente a
expressão, Castellum Marnelis dos documentos medievais, encontraram-se
alicerces de construções de vária idade; num
pequeno grupo chegado ao Sul divisam-se paredes de casas circulares de
grande raio que outras, rectilíneas,
posteriormente
atravessaram. Mais perto da cisterna, fazendo triângulo com as duas
linhas,
completas de muralha, avulta um grande grupo de alicerces, onde há
nítidas sobreposições também e paredes circulares; um rectângulo,
distinto destas, mede 7,50 por 5,20; dentro deste, uma base de
alvenaria de algum altar, eu lareira, que dificilmente se poderá
precisar. Um pouco a Sul deste rectângulo perfeito, a 3,40 da cisterna,
dois lados de outro, formados por blocos bem aparelhados, de invulgar
solidez e espessura; uma destas pedras apresenta duas letras gravadas,
de leitura insegura, possivelmente um T e um A.
«Descarnada a muralha contrafortada, notou-se, na extremidade Norte,
que além de inflectir para Nascente, voltava igualmente para Poente, em
ângulo recto também, prolongando o alinhamento que trazia.
«Seguida essa nova pista, desobstruiu-se então um corredor de 4,20 de largura (fig. 7) limitado por outro lanço de
muralha, paralelo ao primeiro (contrafortado). Entre os dois
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panos de muralha pôs-se a descoberto alguma coisa de verdadeiramente
estranho e talvez inédito em arquitectura arqueológica de Portugal: uma
série de bastiões semicilíndricos, interiormente de 2,90 de diâmetro e
1,60 de fundo, de paredes de 0,50 de espessura, separados uns dos outros
por parapeitos de metro de altura e fresta livre daí para cima
Todos os
bastiões, porém,
de que restam quatro (e vestígios de um quinto), em média de 2,80 de
alto, apresentam uma particularidade notável: a curvatura é voltada para
o
interior do corredor (fig. 8) e nela se não depara vestígio de entrada
ou postigo de comunicação, ou de observação, para dentro do semi-cilindro,
que se não sabe
como seria à frente, do lado da encosta, nem tão pouco se teria
cobertura abobadada ou não; esvaziou-se uma dessas construções (figo 9)
e verificou-se então que interiormente a pedra é da mesma forma,
aparelhada, e que a face interna da curva apresenta a mesma perfeição.
«Da parte convexa, as paredes assentam num ressalto muito bem
construído, cuja altura varia com o declive do terreno, e da largura
exterior de 0,10.
«Ao fundo do corredor, fazendo a ligação das suas muralhas, há um
ressalto de 0,80 de altura (fig. 10).»
Não podia deixar de transladar para aqui esta descrição,
clara e rigorosa de ROCHA MADAHIL. Ela é-me indispensável para as
considerações que quero submeter ao esclarecido critério do culto
Director do Arquivo do Distrito de Aveiro.
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Disse atrás que o terraço superior do Cabeço da Mina tem a forma
circular. A sua área é muito maior que a do rectângulo que
circunscreve a parte amuralhada. Logo aqui acodem ao nosso espírito duas
dúvidas: − Porque se fortificou apenas uma parte do terraço? − Porque se
deu à fortificação a forma rectangular afastando as paredes da escarpa
onde li sua defesa seria mais fácil e completa? Penso que nenhum
princípio estratégico aconselhava a deixar pelo Nascente larga zona da
terraço junto à muralha, precisamente do lado por onde o monte é mais
acessível, já pela natureza e conformação do terreno, já por ali vir dar
a estrada descida de
Viseu e da qual tratarei em artigo seguinte.
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Estas dúvidas levaram-me a
um exame cuidadoso das muralhas e alicerces postos a descoberto.
Comparando a estrutura da muralha contrafortada que fecha o corredor A B
pelo Nascente, com
os lanços A C − C D − e F G, torna-se logo patente que se trata de duas
construções de modalidade e de época diferentes. A muralha contrafortada
tem 0,50 de espessura, é de pedra esquadrada, bem assente; a argamassa
empregada é pouca ou foi consumida pelo tempo; o aspecto é de muralha
muito antiga gasta pelo correr dos séculos. As muralhas A C − F G − C D,
têm a largura de 0,90; o aparelho da pedra é muito mais perfeito, a
argamassa branca é duríssima,
e tem o aspecto de muito mais nova que a anterior. Parece não haver
dúvida de que se trata de Construções diversas afastadas por séculos.
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Os bastiões semicirculares encontrados no corredor determinado pela muralha antiga A B e o mais recente F G, fazem parte daquela
muralha contrafortada constituindo com ela um só sistema de defesa. A
sua construção é em tudo a mesma da muralha; o ressalto que ao fundo do
corredor, pelo Norte, faz a ligação das duas muralhas, está fortemente
entroncado
na velha, mas não
tem nenhuma ligação com a A C de Poente a Nascente, nem esta tem ligação
com aquela. Isto significa, penso que sem nenhuma dúvida, que as muralhas A
C − C D − F G, de 0,90 de largo, não fizeram parte do sistema defensivo
a que pertenceram os bastiões e a muralha contrafortada. Estes factos
verificados nas paredes amuralhadas e a presença de alguns alicerces
circulares nas construções internas levaram-me a conjecturar que as
velhas
paredes fizeram
parte do oppidum
pre-romano, e que os romanos tivessem construído sobre as suas ruínas a
fortaleza Castellum Marnelis, determinada pelos alicerces em rectângulo.
Um pequeno achado, porém,
advertiu-me logo que não era exacta a minha suposição: na parte externa
da muralha velha contrafortada, para o lado sul da cisterna, encontrei
incrustado um tijolo romano. Este tijolo, pela maneira como está
colocado, deve ter ali sido posto quando a mesma muralha foi construída.
Deste modo, não me pode restar nenhuma dúvida de que aquela muralha ou
é dos romanos ou posterior a eles. ROCHA MADAHlL é de opinião que as
paredes do rectângulo são obra
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dos romanos. Assim o mostra a natureza da obra. Mas, se esta muralha é
romana, a outra, a contrafortada, é igualmente romana. Estamos assim em
presença de duas construções do mesmo povo, distanciadas apenas pelo
tempo. E chegou agora o momento de dizer a minha opinião sobre este
particular. Devem ser complacentes comigo todos quantos se preocupam com
esta matéria. Será para mim grata satisfação do meu esforço, se
conseguir provocar opiniões que contrariem a minha.
A muralha contrafortada a Poente, o corredor, os bastiões
semicirculares, eram parte integrante das muralhas que circundavam todo
o terraço superior do Cabeço da Mina; estendiam-se em corredor mais ou menos largo para se ligarem às
muralhas, a que atrás me referi, que cercavam o terraço superior do
Cabeço Redondo. Os espaços entre os bastiões eram seteiras, fechadas
superiormente pela ligação das paredes curvas dos bastiões. As paredes
destes elevavam-se até à altura da muralha contrafortada; sendo o
corredor coberto. Esta cobertura é que dava o piso para a defesa
da parte de cima. As seteiras do corredor representavam uma
defesa auxiliar da porta que devia ficar no extremo Sul deste; estavam
voltadas para o lado Poente, que era o mais acessível, depois do inimigo
se ter apoderado do terraço que dava acesso à porta do Norte do Cabeço
Redondo. Esta defesa auxiliar das portas não é caso único e deve ter um
nome na técnica militar. Há alguma coisa semelhante no Castelo de S.
Jorge de Lisboa e noutros. As escavações no extremo Sul do corredor
mostraram alicerces que nos deixavam adivinhar a conformação da entrada, e alguns vestígios, ainda que poucos, da sua
continuação para Poente dão algum apoio à minha suposição de que eram
ligados os dois sistemas defensivos do Cabeço Redondo e Cabeço da Mina.
A minha primeira impressão sobre a cisterna, que se encontra junta da
muralha contrafortada, foi de que ela se relacionava com a defesa, e era
apenas uma armadilha posta
junto da pequena porta, por onde tinham de subir e descer a ponte
levadiça, os que houvessem de fazer a defesa no corredor. Em caso da
tomada do corredor pela rotura da muralha, a retirada da ponte deixava
defendida a pequena entrada para o plano superior, pois o inimigo,
atravessando-a, ia precipitar-se no poço, onde seria facilmente
aniquilado. O exame, porém, da valeta que, através do corredor, vai
terminar no poço, deu-me como que a certeza de que fora construída para
o fim de conduzir águas de fora para o mesmo poço. E sendo a construção
das paredes desta valeta parte integrante da mesma muralha e da mesma
época desta, parece-me segura a presunção de que se trata realmente duma
cisterna para aproveitamento de águas dos telhados das casas
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internas e também do exterior. Por outro lado, também me
pareceu, pela conformação e orientação dos alicerces no extremo Sul do
corredor, onde há maciços circulares que lembram torres de defesa de
porta, que ali, dentro das muralhas que davam para o Cabeço Redondo, era
a saída natural daquele corredor.
Uma visão daqueles dois terraços cercados de muralhas, que no século
XV
ainda eram conhecidas por alcáçova grande e alcáçova pequena, com outras
cinturas protegendo os terraços inferiores, ainda hoje nos deixaria
atónitos perante aquela imponente grandeza do esforço humano. Não pode
negar-se que sobre o Cabeço de Vouga assentou um dos maiores e mais
fortes oppida dos romanos na Praia Ocidental. AÉTHICO tinha razão.
Durante séculos as legiões ali terão tido suas hiberna. E tudo é obra
dos romanos. Curioso que sou destas coisas velhas, muito pelo sabor
próprio que em si contém, mas muito mais ainda pelo desgosto das
presentes que não compreendo, daqui, do doce exílio que voluntariamente
procurei, faço um apelo a esses poucos abnegados de Aveiro, que estudam,
sabem e podem, que promovam a revolução daquelas terras, para descobrir
as páginas da história da nossa terra que ainda ninguém contou. Ainda
algum
dia um desenhista imaginoso há-de, como CUVIER, levantar sobre as
ossaturas das muralhas, perdidas na terra, o desenho completo daquela
fortaleza majestosa. E então nos sentiremos mais orgulhosos do nosso
Vouga e do seu passado.
O tempo deslizou longamente sobre aquelas paredes. O sol, a chuva e os
ventos envelheceram-nas. E por entre as pedras corroídas verdejaram os
musgos e nasceram as lendas.
Evoluiu a arte bélica. Cresceram e multiplicaram-se no homem as forças
diabólicas. Desapareceram construções obsoletas e fizeram-se novas. E
assim se foi modificando aqui e ali a fortaleza antiga.
Quando um dia o manto da paz caiu definitivamente sobre a imensidão do
império Romano, quando as legiões
puderam viver vida mais tranquila fraccionadas pelos presídios das
respectivas províncias, já aquelas munitiones circundatae do Cabeço da
Mina eram velhas e de pouca utilidade. Foi, então, talvez, que os mesmos
romanos correram nova muralha em frente e junto da antiga, a Poente, e assentaram
aquele rectângulo muralhado dentro das paredes velhas formando assim a
nova fortaleza, mais pequena, mais resistente, que havia de servir de
sede ao presídio encarregado de manter o poder de Roma naquela
circunscrição. E o espaço entre a muralha contrafortada e a nova, onde
estão os bastiões, foi aterrado para fazer o parapeito da nova defesa.
Lá ficaram as paredes velhas que agora vêm
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à tona. Livrou-as da corrupção do tempo e da acção destruidora do homem
o terem ficado soterradas. Das novas, que ficaram à luz do sol, só
restam pequenos lanços de alicerces.
Desta maneira é minha opinião que todos os vestígios de construção, que
se encontram quer no Cabeço Redondo quer no Cabeço de Mina, são de
origem romana, mas de épocas diferentes. Determinar estas épocas, só
será possível com elementos novos que as investigações trouxerem ao
exame e discussão. Teremos de os buscar algum dia. Eles esperam lá por
nós.
E as paredes circulares não
serão restos de construções pre-romanas?
ROCHA MADAHIL inclina-se para esta hipótese. É grande o respeito que
tenho pela segurança e profundidade de seus estudos, mas, data venia,
tenho de divergir um pouco desta opinião.
É certo que os pesuros ou quaisquer outros celtas que por ali viveram
terão habitado aquelas alturas, como outras na circunvizinhança. E se
considerarmos o grande número de monumentos tumulares sob a forma de
mamôas que deixaram em toda a região, de que nos falam os documentos e
algumas que subsistem, temos de aceitar que devia ser numerosa esta
população. É possível mesmo que o Cabeço de Vouga fosse um dos seus
principais aglomerados e pelas suas defesas naturais o oppidum de
refúgio em caso de ataque, para todos os vicos e aedificia (aldeias e
casais), como lhes chamava CÉSAR, espalhados por esta zona. Estes oppida, porém, não eram cercados de muralhas. Os bárbaros nem na Espanha
nem nas Gálias costumavam construir essas defesas. Nem de outra forma se
explica a rapidez e a facilidade com que Décio Juno Bruto e outros
generais fizeram as suas correrias, vitoriosas através da Espanha
Ocidental. Estes povos procuravam as defesas naturais, elevações
escarpadas rodeadas de florestas, rios, pântanos. A grande Numância que
tantas derrotas infligiu aos romanos e junto da qual eles escreveram uma
das páginas mais vergonhosas da
sua história, não tinha muralhas.
Quando Décio Juno Bruto passou pelo Cabeço de Vouga, tudo se modificou.
Ele, ou outro general romano, obrigou aquela população a descer das
alturas, destruiu ali as suas habitações, quaisquer que elas fossem,
cujos alicerces foram mais tarde arrancados na formação dos terraços. De
pré-romano pouco, muito pouco: alguma cerâmica mutilada e pouco mais. As
paredes redondas, umas velhas, outras de feitura mais próxima, são dos
romanos; são parte integrante das suas edificações. A que fim se
destinavam não o sabemos, mas talvez se relacionem com as necessidades
de aquecimento ou culinárias. Aquelas paredes redondas não são
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únicas em construções romanas: na estação romana de Formoselha foi encontrado o alicerce duma casa em que há uma parede redonda
muito semelhante às do Cabeço de Vouga. (Rev. Portugália, tomo l, pág.
344). Também nas ruínas de Condeixa-a-Velha pode ver-se uma parede da
mesma natureza fazendo parte de um conjunto residencial.
Será possível saber-se a época em que foi construída aquela fortaleza
primitiva? Com os elementos de que dispomos é difícil a resposta.
Entretanto, recorrendo à história, talvez possamos sugerir hipóteses que
não andem muito longe da verdade. O segundo século antes de Cristo e
ainda mais de metade do último marcam a época das grandes campanhas para
a conquista da Espanha pelas armas romanas. Nestas guerras de extermínio
os romanos usaram de todas as armas, mas aquelas com que inscreveram as
maiores vitórias em negras páginas da sua história foram a astúcia e a
traição. Depois das correrias de Cornélius Cipião e outros através da
Lusitânia, de 195 a 178, os romanos julgaram a Espanha definitivamente
conquistada. Enganavam-se: as tribos, escravizadas e roubadas,
revoltavam-se logo que as legiões se afastavam e os fracos presídios
deixados para assegurar o poder de Roma eram massacrados. A luta atingiu
o seu máximo de intensidade com Viriato. Pela primeira vez, no cérebro
de um pastor guerreiro e peninsular se abre e desenvolve o pensamento
duma federação larga para levantar a Espanha em frente de Roma, como
outrora se levantou Cartago. Guerra sanguinolenta. Durante dez anos Roma
viu muitos dos seus melhores generais derrotados e dezenas de milhares
de legionários sucumbiram nos campos de batalha. Viriato morreu sob o
punhal traiçoeiro de Roma e Décio Juno Bruto pôde atravessar a Bética, a
Lusitânia, transpor o Douro
e o Lima, sem grandes sacrifícios. Numância foi o último
grito forte da resistência espanhola. Durante esta época as legiões
romanas não levavam atrás de si as grandes máquinas de guerra, o aríete
e a catapulta. Até as torres tinham pouca aplicação. As cidades não eram
muradas. As tribos hispânicas defendiam-se nas alturas, aproveitando as
defesas naturais, crescidas de fracas paliçadas. O seu grande sistema
de ataque era a guerrilha, a emboscada e a surpresa.
Mas, se os naturais não fortificavam os seus
oppida de muralhas, também
os romanos as não faziam depois de tomá-las. Mais forte que o pensamento
da dominação definitiva era nos generais romanos o do saque e o do ouro.
Levar da Espanha o maior peso de ouro e arrebatar àquelas tribos
aguerridas a maior quantidade de trigo, oprimindo-as e enfraquecendo-as
pela fome, era o grande princípio orientador da guerra.
Não encontrei até hoje historiador dos sucessos desta época que nos fale
em grandes obras de fortificação feitas
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pelos romanos. É certo que já antes havia algumas cidades na Espanha
defendidas por fortes muralhas, como Sagunto, mas estas eram as antigas
colónias gregas, quistos luminosos de civilização na bárbara e escura
vida dos povos peninsulares.
A República Romana tinha começado a sua agonia lenta
− Guerra Social, Mário, Sila, a ditadura. Sertório, na Espanha, já não combate e oprime
os lusitanos revoltados, é antes chamado por estes para os capitanear
contra os desmandos e opressões de Roma. E Sertório derrota os generais
romanos em batalhas sangrentas, organiza na Bética e Lusitânia uma
República pelo modelo de Roma, planeia e constrói cidades, fortifica-as
e disciplina o seu exército. Inúmeros fugitivos
da Itália, partidários de Mário, e acossados pela fúria sanguinolenta de
Sila, procuram abrigo nos seus domínios e derramam entre os naturais os
costumes, os trajos, as crenças, as práticas agrícolas e domésticas, a
língua latina. O poder
de Sertório em dez anos estendeu-se praticamente a toda a Espanha.
Viriato foi a primeira e grande voz da unidade da Espanha na sua
rebeldia contra a opressão de Roma. Sertório foi o primeiro romano que
soube aproveitar aquela rebeldia contra os excessos dos seus e formar
com ela o poder de Roma. Viriato e Sertório morreram ambos aos golpes do
punhal traiçoeiro da cidade heróica.
Mas a grande revolução estava feita: Pompeu e César
já não são mais aqueles generais que na Espanha correm, dominam,
esmagam, espoliam, deixando atrás de si rastro de sangue, para voltar a
Roma, a lançar na voragem da
corrupção as riquezas imensas dali trazidas, corrupção que os segurava
no fastígio e no poder. As províncias passaram a ser o grande campo onde
os generais organizavam, refaziam e disciplinavam as suas legiões, para
com elas garantirem o seu poder em Roma.
Foi certamente nesta época, de Sertório ao triunfo
definitivo de César sobre os filhos de Pompeu, que aquela fortificação vasta
e pomposa do Cabeço de Vouga se fez. Ela não foi feita já para defender
as legiões dos hispânicos, mas doutras legiões. Nem já os legionários
eram só latinos;
as legiões eram recrutadas nas províncias e assim constituídas com os
povos mais diversos. Gaulesas eram as legiões de César quando entrou em
Roma.
Com Augusto, no último quartel do século l, os Asturos e Cântabros deram
o último grito da revolta, logo sufocado. Depois a Espanha teve a vida
da paz perfeitamente integrada no Império Romano. As três legiões que
Augusto ali fixou, garantiam o ditador em Roma, não Roma na Espanha.
Correram os séculos, e
durante eles é possível que se tenham feito reformas aqui e ali. Algum
imperador, do
/
97 /
[VoI. XVI -
N.º 6. - 1950]
século III ou IV mandou inscrever no Cabeço da Mina aquele rectângulo de
muralhas para servir às tropas de presídio na região. As moedas
encontradas no desaterro são do século III e IV d. C. Se, como disse, o
aterro entre a muralha nova e a velha foi feito pelos próprios romanos,
é na segunda metade do século IV que devemos colocar a construção do
rectângulo.
Com a paz fixaram-se os legionários, e as terras na encosta Sul-Poente
do Cabeço de Vouga, e os pequenos vales, a Nascente, voltaram a ser
aproveitados para a cultura. Foram-se-lhe agregando os Lusitanos,
sacudidos de seus primitivos lares no alto dos montes, e pouco a pouco
surgiram os povoados. Construiu-se a Estrada Militar que atravessou o
Buoco e foi serpear o monte para atravessar o Vouga mais adiante. Junto
dela, ali onde agora as águas do MarneI cobrem as terras de arroz,
levantaram-se casas de residência e de negócio.
Em largas extensões a enxada revolve mós manuais, telhas, pesos de tear,
pedras esquadradas, tijolos. No Andoeiro, no Reguengo, no Paji, nas
terras de Carvalhal, há abundância destes elementos, testemunhando que
ali se formaram vicos de algum valor. Destas terras a maior parte fica
na encosta do monte, algumas em baixo junto do rio, hoje cobertas pelas
águas durante parte do ano.
Como se chamou este monte tão fortemente guarnecido de muralhas?
E os aldeamentos da encosta Sul? Quando desapareceram estes e as muralhas?
Parece que chegámos ao ponto nevrálgico da questão: Seria ali realmente
o grande oppidum Vacca, de AÉTHICO?
Ainda que a resposta definitiva a esta última pergunta só venha, é
convicção minha, a achar-se em posteriores escavações, há uma razão
poderosa que me leva desde já a dizer − Sim, foi ali o oppidum Vacca.
Não há dúvida de que ali, no Cabeço de Vouga, houve um
oppidum
importante. Estão lá, ainda de pé, panos de muralha, alicerces, extensos
terraços, taludes e outros vestígios que o afirmam. AÉTHICO, escritor do
século IV depois de Cristo, diz: Occeanus occidentatis habet formosa
oppida − Bracara − Iacusa Augusta − Vacca. Não tenho nenhuma razão para
duvidar da informação de AÉTHICO. Havia um oppidum chamado Vacca. O Cabeço de Vouga fica sobranceiro ao rio deste
nome. Havemos de negar-lhe o nome Vacca para o dar a algum oppidum
situado longe daquele rio? Não me consta que houvesse outro oppidum como
aquele junto do Vouga. É àquele, pois, que pertence o nome.
Diz-se que PLÍNIO não menciona
Vacca nem a refere o Itinerário Antonino
como estação da Estrada Militar Lisboa-Porto, que lhe passava perto.
Geógrafos como ESTRABÃO,
/
98 /
e tantos escritores que se ocuparam da Espanha, nenhum se referiu a
Vacca. Como explicar este silêncio em face da grandeza que revelam ainda
os panos de muralha e seus alicerces?
PLÍNIO escreve nos meados do século primeiro
− menciona povos e seus principais oppida.
Ora Vacca não era, como atrás referi, um oppidum lusitano,
mas um
oppidum feito, guardado e mantido pelos romanos. É possível que ao tempo
de PLÍNIO já os povoados da encosta Sul tivessem algum valor quanto a
número, mas não o tinham nem o tiveram nunca pela qualidade das pessoas.
Era constituído por legionários romanos e espanhóis e pelos naturais que
se lhes foram juntando pelos laços de família. Não era uma cidade lusa
vinda do fundo dos tempos como Conímbrica, Emínio, Talábrica; era o
aglomerado novo e pobre, que não atingiu a categoria de município,
colónia romana ou cidade estipendiária; foi quando muito contributa,
isto é, agregada a outra para efeitos fiscais. Importante, foi o monte
fortificado, o povoado foi sempre humilde. No espólio volumoso tirado do
subsolo não surgiu pedra, lavor, tijolo, revelando imponência ou só
grandeza. Mós, telhas, tijolos, pedras, tudo nos fala de construções
humildes de artífices ou cultivadores da terra. Até o tijolo cuneiforme,
tão comum noutras estações, é raro ali. Repetidas vezes fiz buscas
minuciosas para encontrar alguma pedrinha que tivesse servido num
mosaico. Se os mosaicos tivessem ali existido não era possível que
tivessem desaparecido todas as pedrinhas componentes deles. Foi em vão
todo o trabalho, nem uma só pedra colorida encontrei.
Não há, pois, que estranhar que os escritores nos não falem de
Vacca;
que o Itinerário não conte as milhas até esta estação, porque ela era
bem diferente de todas as outras estações, de Lancóbriga ou Talábriga.
Nesta, Décio Juno Bruto poupou toda a população, que se manteve através
dos séculos. AÉTHICO mesmo não menciona o oppidum pela sua grandeza ou
condições de resistência. Estas qualidades, depois de séculos de paz,
deviam ser secundárias. Chama-lhe oppidum formosum. AÉTHICO tinha razão.
Vacca deve ter sido
um centro militar de importância durante o império até à invasão
bárbara. Era ali que vinha juntar-se à Estrada Militar de Lisboa a
Braga, a que de Viseu vinha a Vouzela − Benfeitas − Talhadas,
estudada em parte por AMORIM GIRÃO e de que hei-de ocupar-me em artigo
próximo. Ali vinham dar outras vias de 2.ª ordem, como a que do Vale de
Besteiros atravessava o Alfusqueiro, descida por Arrancada e Valongo, e
de que tratou nesta revista o Sr. SOUSA BAPTISTA, de Arrancada.
/
99 /
Quando desapareceram os povoados da encosta?
Que evolução sofreu o oppidum depois dos romanos?
O encontro, nas escavações do Cabeço da Mina, de moedas romanas dos
séculos III e IV depois de Cristo, as
quais ROCHA MADAHlL descreve no seu Cabeço do Vouga, já citado, é prova
irrefragável de que os romanos ali estavam nestes séculos e de que temos de procurar a destruição ou abandono
do monte fortificado de Vacca depois do século IV.
Quer no espólio encontrado nas pesquisas do Cabeço Redondo e Cabeço da
Mina, quer naquele que os cultivadores das terras da encosta arrancaram e vão ainda
arrancando do seio
da terra, nenhum utensílio ou material de
construção se encontrou que não fosse luso-romano. Nem
um só elemento árabe. E isto, quer-me parecer que também
é prova irrecusável de que aqueles povoados foram destruídos antes da chegada dos árabes na primeira década do século VII.
É, portanto, nos séculos V e VI, que temos de buscar o cataclismo
natural ou político que atirou para as sombras do
tempo a realidade material e social que foi o Cabeço de Vouga. Estes
séculos correspondem à dominação bárbara
na Península. Foi em 404 ou 405 que os Suevos, Alanos e
Vândalos atravessaram os Pirenéus e durante dois ou três anos erraram
pela Espanha, saqueando, destruindo e matando.
O que então se passou conta-o HERCULANO, seguindo ORÓSlO
e outros escritores contemporâneos dos acontecimentos:
«A irrupção dos bárbaros foi assinalada por todo o género de
devastações. Morreu gente inumerada no primeiro ímpeto,
antes que os ferozes conquistadores escolhessem as províncias em que haviam de estanciar.
À guerra associaram-se
a peste e a fome. Chegou o povo à miséria horrível de
devorar carne humana, e as mães a cevarem-se nos cadáveres dos filhos.
As bestas feras saíam dos bosques e afeitas
à carniça dos mortos avançavam a tragar os vivos. Então
os bárbaros dividiram entre si este país convertido quase num ermo,
estabelecendo-se em separado».
Depois de esgotados todos os recursos do país, os bárbaros aquietaram-se um pouco; dividiram a região ocupada
em três zonas, que tiraram à sorte. Aos vândalos e suevos
coube a Galécia e Castela-a-Velha; aos alanos a Lusitânia e
Cartaginense; os vândalos silingos ocuparam parte da Bética,
que deles tomou o nome de Andaluzia.
Mas, a guerra logo deflagrou entre eles. Ataces, rei dos alanos, move-a
cruel aos suevos; vence e destrói todas as cidades em que ainda se
conservavam presídios fiéis a Roma. Entre estes Conímbriga. Levanta nas
margens do Mondego outra cidade que herdou daquela o nome e talvez os
habitantes.
/ 100 /
Vacca era um presídio romano. Se escapou da fúria do primeiro ímpeto,
não poderia escapar à fantástica actividade destruidora de Ataces.
Os suevos reagiram mais tarde e o seu reino estendeu-se
da Galiza pela Lusitânia até ao Tejo.
Entra na Espanha em 415 nova onda de bárbaros; são os visigodos. Embora
vindos em serviço e auxílio dos romanos fixam-se na Península. A guerra
alastra-se por toda a parte.
Os vândalos passam-se para a África, os alanos sucumbem, e os suevos
novamente batidos recuam as suas fronteiras para além do Douro. E nestas
lutas se gastaram mais de cinquenta anos, depois dos quais não havia na
Península um só presídio romano. Dois reinos apenas a ocupavam:
suevos e godos. Mais de um século depois, em 585, cai o reino suevo, e
de então até 711 toda a Espanha foi dos godos.
Na sua fúria destruidora, os bárbaros caem sobretudo sobre as
habitações. Nestas não deixavam pedra sobre pedra.
As muralhas, uma vez rotas aquém e além, deixavam-nas.
Assim ficaram as de Conímbriga, assim ficaram as de Vacca. O exame
atento dos materiais encontrados no Cabeço de Vouga não nos deixa
dúvidas sobre a acção violenta da destruição. No desaparecimento dos
povoados pela diminuição lenta dos habitantes, os materiais das
habitações vão sendo aproveitados de umas para outras ou levados para
outras partes. As escavações nos lugares que elas ocupavam patenteiam,
quando muito, um ou outro alicerce e raros fragmentos
de louças.
As do Cabeço de Vouga feitas pelos agricultores, sobretudo na manteação
para videiras, revelaram amontoados de tégula partida, mós gastas pelo
uso e outras novas, grande quantidade de tijolo, muitos intactos, etc.
No Cabeço Redondo, na parte poente do terraço superior, os fragmentos de
tégula, tijolo e louças, aparecem envoltos numa camada de cinzas, o que
mostra que naquele lugar o fogo ajudou o alvião. As ruínas de Condeixa
mostram bem quanta razão têm os escritores antigos quando nos dizem
que naquelas destruições
não ficava pedra sobre pedra. As do Cabeço de Vouga
falam-nos igualmente a verdade dessa afirmação. Mas assim como em
Conímbriga deixaram panos de muralha intactos, assim também os deixaram
no Cabeço de Vouga, que atravessaram os séculos, subsistindo alguma
coisa deles ainda em nossos dias, quer numa quer noutra estação.
Houve ainda uma outra modalidade de desaparecimento dos pequenos núcleos
de população, além da forma bélica por destruição e fogo, e da extinção
lenta dos habitantes: foi a do abandono na fuga com medo do invasor.
Esta foi a forma dos desaparecimentos de muitas vilas sob a dominação
árabe,
nas lutas de reconquista. O espólio destas vilas (pequenas,
/
101 /
fracções agrícolas romanas) com seus cultivadores, escravos, servos ou
ingénuos, apresenta-se-nos com aspecto inteiramente diverso dos outros:
como as habitações e suas dependências foram abandonadas e seus
detentores não voltaram mais, ficaram ermas durante muitos anos, em cujo
correr as terras arrastadas pelas torrentes da chuva e pelo vento foram
pouco a pouco cobrindo as paredes e, de tal modo estas se conservaram,
que ainda hoje se descobrem fornos, lagares e outras dependências quase
intactas. As tégulas e tijolos, pouco quebrados e muitos perfeitos.
O Monte Marnel é um exemplo típico da destruição
bélica. Das moradias não ficou pedra sobre pedra.
Os documentos do século décimo falam-nos de várias
vilas existentes em volta do Cabeço de Vouga − Palos − Palatiolo − Padazanes
− Alcarovin − Belli − Christoualanes − Lamas − Estas vilas
não eram senão fracções da primitiva vila agrária romana, desmembrada
durante a ocupação árabe e sobretudo na reconquista.
Diz Gonçalo Mendes, em seu testamento de 981
− «... mea ratione quam habeo
in uilla uocitata palos secus ribulo uauga
quarta portione de ipsa uilla ab integro per omne suos uicos
et terminos anticos. et diuidet ipsa uilla cum uilla palaciolo et de alia
parte uilla de padazanes et belli et alcorauin et christoualanes. et
diuidet per montis meison frido et per uilla de hanni quod est de domna
palIa. Et de uilla lamas quarta portione...» (P. M. H., Doc.
CXXXII).
Destas vilas subsistem Padazanes (Pedaçães), Lamas
(Lamas), PaIos (Paus), Christoualanes (Crastovães), Alcarouim (Alquerubim). Desapareceram: Belli, Palatiolo, e
Hanni. Belli (Belhe),
na margem direita do Vouga, a Nascente de Paus, a avaliar pela extensão
de terra que foi aproveitada
para fins agrícolas, não poderia ter mais que um ou dois
fogos de cultivadores. Estes, premidos por alguma invasão
mourisca, talvez a de Almançor, fugiram para não mais voltar, e os
terrenos cultivados devem ter ficado abandonados, porque as terras foram cobrindo as pequenas casas,
deixando parte das paredes e um forno a mais de um metro
de profundidade, os quais foram recentemente descobertos
em manteação funda para plantio de vinhas.
Palatiolo ficava na margem esquerda da vala do
Marnel, entre esta e a
encosta de Pedaçães. Também aqui se encontraram e se encontram ainda
paredes, portas, que devem ter sido cobertas pelas terras de aluvião,
carregadas pelas enchentes. Eu vi a soleira duma porta que estava mais baixa que o actual leito
da vala e não distava desta mais de vinte metros.
Penso que a vila de Hanni teve o seu assento
numas terras de cultura
junto à Gândara de Serém pela parte Norte. Ali tem sido encontrados
tijolos e tégulas, fragmentados.
/
102 /
As duas vilas de Belli e Palatiolo são exemplos bem característicos de
desaparecimento por abandono forçado, Também os documentos nos falam de
uma outra vila, CastrelIo, hoje desaparecida. Ficava esta pequena
unidade agrícola na encosta do Toural, em frente a Lanheses. Esta vila
só se extinguiu no século XVIII. Os registos paroquiais de Valongo ainda
neste século referem pessoas que ali nasceram, viveram e morreram. E
porque o desaparecimento foi lento, poucos vestígios ficaram dela.
Algumas telhas modernas., partidas, e o lastro dum forno escondido num
talude e há pouco arrancado pelo proprietário do terreno.
Chamam hoje àquelas terras de pão e vinho, de área
relativamente pequena, Crestelo. Donde lhe virá o nome?
Junto destas terras há uma pequena elevação cónica com corte
horizontal no vértice. Não há dúvida de que ali foi um castro, defendido
a Norte pelo Buoco, a Nascente, Sul e Poente por fossa e vallo. Não encontrei nenhum vestígio de muralha.
Era hábito dos povos peninsulares terem, em volta dos
grandes oppida, outros menores, em lugares aonde pudessem avistar, em
longo percurso, os caminhos de acesso àquele. Eram postos de observação,
destinados a dar aviso de qualquer movimento de forças inimigas. Esta
terá sido a razão de ser do pequeno Castro. Do terraço do pequeno monte
podem avistar-se extensos vales por onde correm os rios do Beco e do
MarneI, até às vertentes da serra das Talhadas, e ainda a larga planura
até ao Alfusqueiro, com toda a vertente Sul do Caramulo. Ao tempo em que
todas estas regiões eram despovoadas de arborização, cobertas apenas de
urzes, todos os caminhos eram patentes e assim nenhum inimigo podia
aproximar-se sem ser pressentido.
Parece que os romanos não se serviram deste castro.
Não encontrei ali nem tégula nem tijolo, nem coisa que pudesse
atribuir-lhes. Mas é possível que o tivessem aproveitado os árabes, pois
ali colhi fragmentos de telhas destes, de fabrico muito grosseiro.
Há, perto da Cernada, a Poente, na vertente esquerda do Vouga, uma
elevação a que chamam o Castelo. Não descobri vestígios deste, mas não
dei a investigação por acabada, porque alguma coisa me ficou por
observar.
Também deste lugar, em directa
correspondência com o Cabeço de Vouga,
se avista todo o Vale do Vouga, vertente Sul de toda a Gralheira;
extremo Nascente do Caramulo. Este posto e o anterior, conjugados com o
Cabeço de Vouga, davam a observação completa numa circunferência cujo
diâmetro, tocando o mar, se alongava por mais de cento e cinquenta
quilómetros.
/
103 /
É pois minha convicção que os povoados da encosta do
Cabeço de Vouga desapareceram na primeira metade do
século V sob a acção avassaladora dos bárbaros, no seu primeiro ímpeto
ou nas lutas que depois travaram entre si.
Antes, porém, de estudarmos o destino que tiveram as muralhas e a época provável do seu desaparecimento, quero chamar a
atenção dos curiosos para um facto sem explicação no
meu espírito até hoje.
MarneI significa paúl, terreno alagadiço. O MarneI junto
ao Cabeço de Vouga, ocupava, como ainda hoje, a zona abaixo
da ponte velha, mas estendendo-se, possivelmente, um pouco mais a
Poente. O leito deste MarneI deve ter-se elevado
alguns metros, a avaliar pelos pilares da ponte velha e pela
profundidade a que se encontram as soleiras das portas mais
abaixo, nos Barris, onde, como já disse, suponho que foi
Palatiolo. Estavam assim as suas águas em nível mais baixo. O MarneI era
acidente natural aproveitado para a defesa do
oppidum. E não seria o mais importante, porque do outro lado, pelo
Norte, corria o Vouga, então profundo, que o
defendia em muito maior extensão. Não obstante, MarneI cresceu tanto na
sua individuação, que adquiriu foros de
topónimo maior, esquecido do seu nascimento humilde no
pequeno charco. Assim é que, já no tempo do rei Ordonho,
no século IX. seu irmão Cide Albozan, veio sacudindo os mouros de além
do Douro e «fezeos ir a Crasto MarneI de
Riba do Vouga» (Liv. de Linhagens, de D. Pedro, pág. 181).
E aqui vemos MarneI enfeitado a baptizar e a dar nome ao
oppidum pagão.
No mesmo século, em 957, no testamento de Enderquina
Pala, diz-se: «Adicio etiam, monasterium de Marnel cum
omnibus adiunetionibus suis pernominata sancta maria»
(P. M. H., Doc. LXXIII). Já baptizado, dá nome ao próprio
Mosteiro de Santa Maria erguido a poucos passos, na margem esquerda.
E num outro testamento da mesma senhora, feito cinco
anos depois, tanto se esquece o MarneI do que é, que blasona
de si mesmo nesta passagem «et monasterium de Marnelle
que uocitant sancta Maria de Lamas».
Em 1065 já mete pelo rio acima, pois um testamento desta data refere: «in
ripa uauga in marnel ubi dicent
arraualde quantum in meas cartas resonat» (P. M. H.,
Doc. CCCCXLVIlI). Chegou a Valongo, mas não para aqui a sua ambição.
Em 1095 − o fâmulo de Deus Zoleima Gonçalves fez
uma doação à Igreja e Mosteiro de Eixo e reza o documento
respectivo que Eixo ficava «subtus civitas marnele discurrente riuolum uauga territorio colimbriense». (P. M. H.,
Doc. DCCCXIX).
/
104 /
Mais adiante, em 1121, é Pedro Pais e Gelvira Nunes
que doam ao Lorvão a vila de Pinheiro: «et in confinitate
castelli Marnelis inter fluvium Vougam et montem qui dicitur meiçom frio (VITERBO sub cidade,
III). Quer dizer, no fim do século X
e princípio do século XI o nosso Marnel tinha
ido rio abaixo apoderar-se de Eixo, com o nome pomposo
de Civitas. Deixava, é certo, a vila de Pinheiro ao lado, mas esta bem
lhe reconhece a grandeza, dizendo-se «in confinitate castelli Marnelis» na vizinhança do Castelo do MarneI.
Em 1949 subi o rio que da serra das Talhadas vem dar
ao pântano do MarneI. Em Doninhas, a menos de quinhentos metros da nascente, perguntei a um homem que cavava
num campo marginal: como se chama este rio, meu velho? − É o Marnel,
senhor − respondeu ele. E assim, se mais rio
houvera, o MarneI lá chegara. Sorriem os filólogos e os
gramáticos quando lhes falamos em rio Marnel. Eles que
expliquem como é que este aventureiro MarneI deixou manhosamente Lamas em seu lugar e se foi à conquista de
montes, rios, e povoados, enquanto eu fico a estudar como
é que o pequeno MarneI venceu a principal Vouga, atirando
esta para a margem do rio e exalçando-se ele às muralhas da
antiga Vacca.
Diz o documento anterior que Eixo ficava
subtus civitas marnele. Não havemos de julgar por estas palavras
que o MarneI fosse naquele tempo uma cidade e nem ao
menos «a vila mais notável destes sítios» como diz PINHO LEAL (P. Ant. e
mod. − sub. Marnel).
As terras reconquistadas aos mouros iam sendo divididas em várias zonas
a que era dado o nome de territórios. Assim, entre o Douro e o Mondego,
pela Beira-mar, tínhamos
dois territórios: o de Santa Maria e o de Coimbra. O Vouga
era em parte o limite entre os dois territórios, como se vê no documento
de 1101 em que Diogo Pires e mulher Matrona
vendem a João Gondesendes e mulher Ximena Forjazas propriedades que tinham em
Palmaz, Fererius, Teladela, Nespereira,
Frauegas; e ainda em Valongo, Melares, e Laneses.
Quanto às primeiras diz que «abent iacencia riba Camia
escurentes in Vauga territorio de Sancta Maria» (são situadas na margem
do Caima que corre para o Vouga no território de Santa Maria): das
outras diz: «et de alia parte Marnele teretorio Colinbriensis» (e da
outra parte o Marnele, território Conimbricense). (Doc. Med., doc. n.º 42).
Civitas era uma sub-divisão do território, que tomava o
nome do Castelo que lhe assegurava a defesa. Era em regra
irregular a sua área, pois não obedecia a um critério geográfico, mas aos direitos de propriedade do seu tenente ou dos poderes do
seu alcaide.
/
105 /
A civitas de MarneI estendia-se pela margem esquerda do Vouga, vinha
até Eixo. A margem direita já era da Civitas de Serém e esta do
território de Santa Maria.
Havia outras cívitas no território Conimbricense
− como Arcos: «subtus
mons buzaco territorio colimbrie prope ciues arcos (abaixo da serra do
Buçaco, território de Coimbra, perto da cidade de Arcos) − P. M. H.,
doc. CCXXVII.
A civitas de Serém não ia além de Páus. Daí para baixo parece que também
MarneI deitou as garras à margem esquerda. Numa doação que Mendo
Fralengues e mulher fazem, em 1108, ao bispo Maurício de Coimbra, diz o
documento: «Et abet iacentja in uilla quam uocitant − Lauri prope litus
maris terretorio Colinbriensi discurrente ribolo Uauga subtus castro
MarneI». − Sita na vila chamada Loure perto do mar, por onde corre o
Vouga, sob o castro MarneI. (Doc. Med., doc. n.º 281).
Num documento de 1112 relativo à venda de uma propriedade em Paradela,
perto de Pessegueiro, concelho de Sever do Vouga, lê-se esta passagem:
subtus mons Meda discurrente rrilulo Ignea territorio ciuitas Portela
(Doc. Med., doc. n.º 409).
Em 1086 no documento de uma doação lê-se: «subtus castro antuniol
territorio ciuitatis condexe». (P. M. H., doc. DCLVIII).
As referências dos livros de linhagens e dos documentos atrás não deixam dúvidas de que as velhas muralhas do
oppidum do Marnel
se mantiveram através dos séculos medievais e terão sido aproveitadas
por mouros e cristãos nos movimentos de fluxo e refluxo a que a região
esteve exposta durante o primeiro século da dominação árabe. Mas, se
isto já é muito de admirar, mais o é terem chegado algumas
delas aos tempos modernos, como seguramente o podemos afirmar.
Os Sousas, que tiveram a sua origem no velho Gonçalo Viegas, senhor do
MarneI, foram durante séculos donatários reais do Cabeço de Vouga. Em
1535 foi julgado um processo de tombamento a que se vinha procedendo
desde 1528, salvo erro. É deste documento precioso que tiro estas
passagens:
«Pero Gabriel morador em Arrancada apresentou um aforamento de uma vinha
da Alcáçova Grande em o qual entram outros mais que depois foram (?) ao
senhor da terra e da dita vinha o que lhe ficou na dita Alcáçova mede a
ração de nove um e de foro um capão e a dita vinha parte do Soão e
Aguião com a arrota de Alcaçova Grande...»
«Trazem os filhos do moleiro de Lamas a saber
− João
Anes e Afonso Pires da mesa e seus irmãos a Alcáçova
Pequena de que apresentaram aforamento fateosim de Diogo
Lopes de Sonsa e da dita Alcáçova Pequena parte de todalas
/
106 /
partes assim como está murada do redor e paga de nove um e de foro um
capão...»
«Bastião Afonso de Lamas, traz dois talhos da vinha nos cabeços convém
saber um que está junto do Paço parte do Soão com o caminho e do
Vendaval com chãos da Veia Cova.»
«Afonso Marques... traz um bacelo que é dentro em o circuito de dentro
da Povoa do Marnel que apresentou aforamento que lhe foi aforado por
Afonso Alvares almoxarife que foi de André de Souza... o qual parte de Aguião pelo caminho que vai para Santo Espirito e da travessia com a
Lapa e paredes velhas do MarneI.»
Estas passagens também não nos deixam dúvidas quanto à existência de
muralhas ainda no meado do século XVI.
Aquela que se refere à Alcáçova Pequena nas palavras «assim como está
murada ao redor» parece indicar que a muralha em volta do Cabeço da
Mina, aquela primitiva que corria fora do rectângulo mais tarde
construído, estava ainda de pé.
Nestes tempos o Cabeço Redondo era, como hoje, conhecido por Cabeço de
Vouga, ainda que este nome designasse mais propriamente a face do Monte
voltada ao Norte e Poente. O Cabeço da Mina era o Cabeça do Marnel.
O estudo da abundante toponímia do tombo de que se extraem estes
elementos pode trazer dados valiosos para a história do Monte MarneI.
Entretanto, é preciso proceder com
prudência na importância a atribuir aos topónimos, porque podem levar a
erro. Há, a Nascente do Cabeço da Mina umas terras a pão e vinho, donde
se tem retirado muito material luso-romano em tégula, mós, cerâmica,
etc. Chama-se o local Pagi ou Page. Pelo gosto latino que tem, de
pagus,
somos naturalmente levados a radicá-lo no tempo dos romanos, quando é
certo que é onomástico, talvez do século XV pois por então se chamava a
terra de Paegiani. Há, entretanto, algumas que certamente nos trazem um
significado do fundo dos tempos. E neste caso está: «... um que está
junto do Paço parte do Soão pelo caminho.. . e do vendaval com
chãos de Veia Cova». Que Paço é este?
Pelos séculos IX e X chamava-se paço à casa em
que vivia o rei
permanente ou temporariamente. Fosse grande ou fosse pequena. E também
assim se chamava a casa em que vivia o senhor da terra. Porque se chamou
Paço aquele local do Cabeço de Vouga? Não seria ali que viveu Egas
Erótis e seu filho Gonçalo Viegas, o velho fidalgo do MarneI? É bem
possível que assim fosse.
Mas por que teria afinal o nome MarneI eclipsado o verdadeiro nome do
oppidum Vacca? Não será este facto uma prova de peso de que aquele não
foi o nome do monte fortificado?
/ 107 / Creio que não. Até onde nos chegam as memórias, ao menos desde
o século IX, aquele monte fortificado é conhecido por Monte Marnel.
Provam-no os documentos anteriores referidos, provam-no ainda as
inquirições de Afonso lI, onde se lê: «lnterrogati de monte quidicitur
MarneI dixerunt quot est regalengum domini regis et dant inde quartam de pane et
sextam de vine et non plus». Isto tem para mim a seguinte explicação:
No Cabeço Redondo, após a invasão bárbara, os panos de muralha que
ficaram, cedo desapareceram. Outro tanto hão sucedeu à do Cabeço da
Mina, que ainda no princípio do século XVI estavam em parte de pé, como no-lo mostram as passagens do tombo antes transcritas.
É possível que mouros e cristãos alguns reparos lhe tivessem
feito para delas se aproveitarem em suas lutas de fronteiras. E como o
Cabeço da Mina tinha o nome de MarneI, Marnel
se ficou chamando à fortificação. Assim desapareceu a fortificação de
Vacca − Vouga. Este nome manteve-se no
povoado que veio formar-se à beira do rio, como Lamas se
formou do outro lado à beira do Marnel. Deste modo Marnel subiu às
alturas da fortaleza, enquanto Vacca desceu às margens do rio.
Entretanto, enquanto as sombras das muralhas do MarneI crescem rio acima
e rio abaixo, aquele burgo
de Vouga foi também dilatando o seu poder de justiça, de
tal sorte que no século XIII era uma grande circunscrição judicial, de
que passamos a ocupar-nos a seguir.
*
Nos fins do século IX encontramos as províncias, que constituíam o reino
de Leão, divididas em territórios, aos quais presidia um nobre ou rico
homem a quem o rei ou o conde governador da província fazia senhor dele.
O território subdividia-se em distritos ou terras e em outras circunscrições menores. Esta divisão visava fins administrativos,
judiciais e militares. Como autoridades subordinadas ao senhor,
havia o mordomo para cobrar os réditos reais, o juiz para administrar a justiça, O alcaide para prover à defesa e necessidades
militares do rei. Não vá, porém, julgar-se que esta divisão
de funções e funcionários era, como hoje, distinta e precisa,
e que o poder daquelas autoridades se estendia igualmente
por todos os tractos das respectivas circunscrições. Estava-se
em época de formação em que havia pouco de geral e muito
de particular, em que as funções não estavam ainda limitadas.
Nestas condições, se o juiz tinha por função julgar, encontramo-lo
frequentemente exercendo funções de outra natureza, e o mesmo sucedia às
outras autoridades. Por outro lado, havia grandes extensões de terra,
como grandes manchas na área do distrito, em que se não exercitava a autoridade
/
108 / destes representantes do poder real; eram os terrenos coutados e
honrados ao clero ou à nobreza e os municípios. Nos terrenos coutados
aos mosteiros, igrejas, bispos, ou honrados a algum nobre, o rei cedia
os seus direitos de soberania, de receber rendas e administrar justiça,
em maior ou menor extensão, aos beneficiados, reservando para si a
alçada ou alguns desses direitos como demonstração do seu poder
supremo. No município, o rei, o nobre, o mosteiro ou dignidade
eclesiástica concediam a alguma vila e seu termo,
por carta escrita − o foral − a faculdade de se administrar na fazenda e
na justiça por funcionários e juízes seus. E no foral se definiam os
direitos e obrigações da vila como entidade moral, e dos vilãos
particularmente, para com o rei ou aquele que concedeu o foral.
O reino das Astúrias estendeu-se até ao Douro no reinado de Afonso I,
terceiro rei da terra reconquistada aos mouros. Assim, a província da
Galiza se estendeu até àquele rio. Não quer isto dizer que o domínio
nesta parte conquistada ficasse logo definitivo e absoluto. Sendo a
guerra de então feita com correrias de destruição e pilhagem em terra
inimiga, aquela parte entre Minho e Douro passou a ser o campo dessas
correrias, onde a população ia rareando pelo efeito da espada e da
pilhagem. Em todo o caso, já era considerada como terra de cristãos.
Esta situação se alongou até aos fins do século X, quando o aguerrido
Afonso III, atravessando o Douro, conquistou Lamego, Viseu e Coimbra. Não
sei se o território de Coimbra foi criado por este rei, para confiar o
seu governo a algum conde, se já era divisão anterior dos árabes ou do reino visigodo. Também isso não tem
importância de maior para o meu intento; o que é certo é que os
documentos do século X nos falam no territorio Conimbrie e por eles se
vê que este território era limitado ao Norte pelo rio Vouga, abrangendo
entretanto algumas freguesias que ficavam ao Norte deste rio, como Alquerubim,
São João de Loure e Vale Maior.
De uma doação de 883: «... in territorio colimbriense uillas id est
uillam in ripa de fluuio uiaster com ecclesia sancti martini et uillam
crescemiri et iuxta de fluuium certoma uillam com ecclesia sancti
laurentii et terciam porcionem de uilla trauazolo inter agata et uauga...» (P. M. H., Dipl., doc. XI).
Doação ao bispo D. Gomado, de 915: «... sita in uilla
que dicent
fremoseli iuxta flumen mondeci territorio colimbriense...» (P. M. H., doc.
XX).
Numa doação ao mosteiro de Lorvão, de 919: «... in monasterio
laurbanensi territorio colimbrie...» (P. M. H., doc. XXII). Igual
referência no documento XXIII, e no LXV
de 952. Neste último há referências às vilas Cordiniana −
/
109 /
Canellas e Meleza, das quais diz: «...et sunt illas uillas in territorio
colimbrie».
Do testamento de Enderquina Pala, de Aguada, em 957: «... ideo offero
pro remedio anime mee suburbio colimbrie uilla mea propria aqualada...» (P. M. H., doc. LXXIII).
Do testamento de Mumadona ao Mosteiro de Guimarães, em 959: «... in
territorio Colinbrie villa de alcaroubim... terras in alauario et
salinas...» (P. M. H., doc. LXXVI).
Duma doação de Vilela, de 968: «... in uilla uillela territorio coinbrie... » (P. M. H., doc. XCVI).
Duma doação ao Mosteiro de Vacariça em 974: «... inter uimeneirola et
barriolo ripa ribulo uakariza suptus mons buzaco territorio
colimbrie... » (P. M. H., doc. CXIII).
A partir de 980 os documentos relativos àquela parte do território de
Coimbra que ficavam a Norte de Vacariça deixam de fazer referências ao
território de Coimbra e procuram a identificação na referência aos rios Cértoma,
Águeda
e Vouga. Esta omissão do nome do território, nome tão frequente, como
vimos nos documentos anteriores, e que continuou a sê-lo na parte Sul
da Vacariça, despertou-me
a atenção e levou-me a procurar-lhe a causa. Estou convencido de que é a seguinte: Foi precisamente por este tempo que começaram
as sanguinolentas correrias de Almansor contra os estados cristãos. As
incursões fizeram-se por toda a extensa fronteira Sul destes estados
durante vinte anos, fazendo-a recuar à sua posição primitiva na serrania
das
Astúrias. Em 987 caiu Coimbra, que foi despovoada e arrasada. Em 997 o
domínio mourisco estendeu-se de novo por toda a terra ao Sul do Douro.
Diz um documento de Sever do Vouga de 1019: .«...et tunc surrexerunt in
ipsis temporibus filli perditionis gens ismaelitarum et prenderunt ipsam terram in
qua erat illud monasterium ipsam et aliam de dorio usque in cordoba...»
e naquele tempo levantaram-se os ismaelitas filhos da perdição e
apoderaram-se da terra em que estava o mosteiro de (Sever) e de toda
desde o Douro até Cordova. (P. M. H., doc. CCXLII).
Morto Almansor, logo a reacção cristã começou a recuperar os imensos
territórios perdidos. Em 1017 já Afonso V tinha alcançado Montemor,
donde expulsou Froila Gonçalves ali deixado como governador dos mouros,
e substituindo-o por Mem Lucidio. Diz o inventário de 1077: «In era MLV
si ganaui domno gundisaluo iben egas et domna flamula ereditates in riba
de uauga in diebus domne adefonso rex quando
sedia in monte maiore de mauu de ille rex et diuisi illas tam de
auolenga quam etiam de ganantia. Na era de 1055 (ano 1017)
ganharam D. Gonçalo Viegas e Mulher D. Flâmula propriedades na margem do
Vouga no tempo e da mão do rei Afonso quando vivia em Monte Maior o qual
as dividiu em herdades
/
110 /
de avoenga e adquiridas. (P. M. H., doc. DXLIX). O mesmo
se diz nos documentos CCXXXIlI, CCLXXXX, de 1018.
Já antes, em 1050, o inventário de D. Gonçalo Viegas dizia: «...quomodo
diuisi illas dom gunzaluo quando sedia
in monte maiore per manus de rex domno adefonso... et
per manus de ille comes menendus luci qui illa terra inperabat». − Como as dividiu D. Gonçalo Viegas quando estava
em Montemor por mão do rei Afonso... e por mão do
conde Mem Lucídio que governava aquela terra. (P. M. H.,
doc. CCCLXXVIII).
Mas Afonso V é morto no cerco de Viseu e Mem Lucídio
não pôde sustentar-se em Montemor, tendo de recuar para
uma linha que devia passar perto da Mealhada em direcção
ao mar. Linha incerta, sujeita a avanços e recuos, conforme
as contingências da guerra. Parece, no entanto, que ao Norte
do rio Boco o domínio cristão se manteve sempre. Ora esta
região, que era uma parte do território de Coimbra, deixou
seguramente de fazer parte dele, desde que Coimbra ficou
em poder dos mouros até 1064, e sendo assim, não podiam os
documentos mencioná-lo. Vejamos alguns destes documentos.
Em 981 Gonçalo Mendes fez doação da quarta parte de
Lamas e Paus, ao mosteiro de Lorvão. Identifica estas vilas
referindo-se ao Vouga: «... in uilla uocitata palos secus
ribulo uauga...» e confronta-as com Padazanes (Pedaçães)
Belli (Bêlhe) Christoualanes (Crastovães) Alcorauin (AIquerubim) Palaciolo (Lapa do Paço) e Hanni (Gândara). Nenhuma
referência a território (P. M. H., doc. CXXXII).
Em 981 − Escritura de Recardães: «...tertia de uilla nostra propria uocitata recardanes in ripa de agada. (P. M. H.,
doc. CXXXIII).
Em 982 − Escritura do mesmo lugar: «... uillas nominatas recardanes cum suos uiccos nominatos
antolini et uentosa qui sunt in ripa de agada et alia uilla que dicunt belli
qui est in ripa de uauga (P. M. H., doc. CXXXVI).
1016 − Escritura do mesmo lugar ao mosteiro da Vacariça.
Depois de localizar este mosteiro dizendo: «... in loco predicto uaccaricia subtus mons buzaco
territorio colimbrie», localiza
Recardães dizendo: (... et habet ipsa uilla iacentia
ripas uauga subtus monte alcoba...». Este e outros documentos mostram
bem que Recardães, nesta altura, não fazia
parte do território a que pertencia a Vacariça. (P. M. H., doc. CCXXVII
e de 1018, n.º CCXXXVIII).
1020 − Doação à Vacariça das vilas
Livira e Lazaro.
Não posso identificar estas vilas por falta de elementos locais,
mas sei que ficavam a Ocidente de Vilarinho, na Bairrada; − diz o documento: «...de uilla nostra que uocitant liuira
in territorio colimbriensi... diuidit ab orientale parte cum
uillarino...» (doc. CCXLV); estas vilas estavam pois para
/
111 /
além da terra cristã, no território de Coimbra que ficou aos mouros.
1046 − Doação à Vacariça de Paredes (Águeda)
− «... de
hereditatibus nostris propriis quas habemus in ripa uauga uilla paredes
(doc. CCCXLVIII.
1050 − Inventário de D. Gonçalo e de D. Flâmula
− neste documento são
mencionadas as seguintes vilas, quase todas ainda subsistentes, e todas
referidas ao Vouga «in riba de uauga) sem menção de território:
Lali −
Pingnero − Saualanes − Sancta Maria de Lamas − Belli − Fareganes − Castrello
− Arraual − ValIe Longum − Faramontanos − Seren − Iafafi − Cedarim − Paratela
− Padazanes − Christouaunes −
Couellas − Sagatanes − Bolfelar − Faramontanellos − Barrios − Aurentana
− Sala − Recardanes − Barriolo − Eiras − Spinelle − Agada − Lausata − Abciquinis
− Ederoni − Alaueiro (P. M. H., doc. CCCLXXVIII).
Em 1059 − Inventário dos bens de Mumadona ao mosteiro de Guimarães:
«...et inter durio et colimbrie prope flumen vauga villa alcaroubim». (P.
M. H., doc. CCCCXX).
Em 1065, isto é, no ano imediato ao da tomada de Coimbra pelo imperador
Fernando, os monges do mosteiro da Vacariça correram à presença dele com
o inventário das suas propriedades «lnter uauga et mondeco terrltorio
colimbrie» e menciona: Muzarrus, S. Cucufate − Sangalios − Auellanas
− Barriolo − Moronganos − Tamengos − Orta − Arinios − Ventosa − Cepiis − Eilantes
− Alphauara − Mortede − Freixenede − Uimeneira − Lauredo − Santa
Cristina − Canelas − Luso −
Uarzenas − Trasoi − Mortalago − terminando pela igreja de S. Salvador de
Coimbra. (P. M. H., doc. CCCCXLIV). Quer este documento dizer que
depois da tomada de Coimbra já todas aquelas vilas podiam ser referidas
ao seu território.
Depois da tomada de Coimbra os documentos deviam voltar, como o
anterior, a fazer referência ao respectivo território. Assim não sucede,
pois continuam a identificar-se as propriedades com referências aos rios
ou sem referência alguma. Duas razões poderosas justificam plenamente
este facto.
Fernando I, depois da tomada de Coimbra, não reconstituiu o território
desta cidade, mas deu a Sisenando, com extensíssimos poderes
administrativos, judiciais e militares, o governo de toda a terra que se
compreende entre o Douro e o Mondego, a ocidente de Lamego. E Sisenando
distribuiu terras, nomeou juízes e mordomos, procedendo quase como um
soberano absoluto, em todo este extensíssimo condado.
Por outro lado, o distrito do Vouga, desagregado do território de
Coimbra, durante quase um século, já tinha adquirido a sua feição
própria, com a sua nobreza residente, parte descendente dos moçárabes
ricos que ali ficaram, outros
/
112 /
novos vivendo das concessões reais. Quando Fernando I reconquistou
Coimbra, logo lhe apareceram os filhos de Gonçalo Viegas com o
inventário de seus bens para que o rei lhos confirmasse. Já o pai tinha
feito o mesmo com Afonso V em 1017 quando este conquistou Montemor. E
bem andaram
em pedir aquela confirmação ao Imperador Fernando, porque, sem ela, bem
poderiam esses bens ser dados a amigos do cônsul Sisenando, que não
gostava deles. O rei mandou fazer inquérito pelos seus mordomos (... suos maiorinos didacus tructesindizi et filius suus menendo didazi qui
illa terra imperabant) − doc. DXLIX − Quer dizer: aquela terra em que eram
sitas as vilas e de que fala o inventário, as mesmas que já antes referi
no inventário de 1050, a terra de Vouga, era governada pelos dois
mordomos do rei. E se o rei ali tinha mordomos também havia de ter juiz
e outros funcionários. Não admira, pois, que os documentos não
continuem a fazer referência ao território de Coimbra. No documento
referido por HERCULANO., V, 3.º, notas da demanda entre Lorvão e Vacariça
− foi inquiridor Atam, Juiz de Vouga.
1088 − Doação de Sisenando ao presbítero Rodrigo, de
uma ermida perto de Ílhavo «...hermida sancti christofori
quod est in ripa maris inter uilla socia et uilla iliauo». (P. M. H.,
doc. DCLXXXXVIII).
1090 − Doação de Alquerubim ao mosteiro de Pedroso «...in uilla quas
uocitant Alquoruuim... et habe ipsa hereditate jacentia inter Paus et
Marnelle, discurrente ribulo Vauga» (doc. DCCXLV).
Mas em 1094 o rei Afonso VI, que havia confirmado a Sisenando e depois
ao genro Martim Moniz todos os poderes que seu pai Fernando tinha dado
ao primeiro, faz seu genro Raimundo, conde da Galiza e Coimbra. A partir
desta data já os documentos se referem ao território de Coimbra.
1095 − Doação de Eixo «... que est fundatum in uilla exo subtus ciuitas
marnele discurrente riuolum uauga territorio colinbriense» (doc. DCCCXIX).
Entretanto o distrito do Vouga estava formado, e este distrito foi
certamente que deu origem ao célebre Julgado de Vouga, que não teve o
seu nome derivado do pequeno burgo junto da ponte mas do rio que serviu
para identificar as suas terras. Ele abrangia as terras para aquém da Vacariça e Vilarinho, em direcção ao Mar até ao Vouga, e ainda algumas
freguesias a Norte deste rio.
*
No capítulo anterior procurei mostrar como se constituiu
o Julgado de Vouga e a razão do seu vasto termo. Estava
naturalmente indicado o assunto deste; evolução do Julgado
/
113 /
[Vol. XVI - N.º 62 -
1950]
até à sua extinção. Não é ainda, porém, esse o meu intento; não o será
enquanto não tiver dito tudo o que pude rebuscar nos velhos documentos e
que se prende ao Monte MarneI e Cabeço de Vouga.
Os documentos dos séculos IX e X falam-nos de muitas vilas na
vizinhança do MarneI: Padazanes − Christoualanes − Lamas − Palus − Alquerouin
− Lanezes − Sereni − Mazinata, etc. A maior parte das vilas
por eles referidas existem ainda hoje sob a forma de aldeias e vilas.
Mas entre uma vila de hoje e uma vila de então, a diferença é profunda,
no
aspecto físico e na ordem moral. Uma área, em regra de
pequenas dimensões, de terras cultivadas, na frescura de um
vale, junto de uma nascente, ou algum plantio em encosta soalheira, ou
na várzea do ribeiro, a constituía, tendo em volta as terras «bárbaras»,
monte maninho, que nunca foi
arroteado ou que não sentiu o alvião durante séculos. No
monte viviam as feras e animais selvagens, o urso, o lobo, o javali, o
veado, gamo, lebres, coelhos e muitos outros; nas «terras ruptas» vivia
o homem; pequenas casas ou pardieiros cobertos de colmo ou telha. A
lareira a um canto, a mesa
tosca, tripés, o leito duro do casal; era ali que vivia o chefe
da família com a sua consorte; os filhos dormiam fora, nos casebres onde
se recolhia a palha, no lagar, em cima dos cubos e cubas em que se
guardava o vinho e os cereais. Perto deles, os porcos, os bois, as
galinhas. Uma só casa com suas terras cultivadas já era uma vila; mas
podia ter mais, dispersas, divididas as terras entre elas. Eram os
casais.
A vila, porém, não era só a terra com a casa ou casas, ela abrangia
também os homens que habitavam essas casas e cultivavam as terras e de
tal maneira que se não compreendia os homens sem a terra nem a terra sem
os homens: estes não eram livres de a deixarem, ninguém os podia remover
dela. Se a terra fosse vendida, doada ou trocada, com ela iam os homens
que a cultivavam. Se algum destes, nalgum despertar
do desejo de liberdade, fugia da terra, a ela era reconduzido
com severos castigos. Estes homens eram os servos da gleba, os
descendentes de antigos escravos que já tinham dado um
grande passo no caminho da liberdade; deixaram de servir
como escravos o homem feroz, para servir a terra mais carinhosa, no meio
de feras menos perigosas que o antigo senhor.
Havia outros homens. Havia escravos e homens livres. Estes eram os
artífices e os herdadores. Destes falarei quando tratar das Cavalarias
do Vouga.
Era assim nos séculos IX, X, XI, e XII. Nestes dois últimos séculos,
porém, uma revolução profunda veio modificar a natureza desta relação ou
ligação do homem à terra. Em
consequência da reconquista e do ressurgimento dos municípios, essa cadeia de ferro foi-se pouco a pouco adelgaçando,
/
114 /
de tal modo que, no século XIIl, aparece-nos já o homem cultivando as
mesmas terras, mas agora fraccionado o casal antigo em numerosos casais,
pelas divisões sucessivas entre os filhos, pagando os mesmos encargos de
outrora, mas já sem obrigação de viver nelas, podendo deixá-las quando
lhe aprouvesse, e não sendo obrigado a segui-las quando alienadas de
qualquer forma. O homem continuava a viver nelas, a cultivá-las, porque
nelas tinha nascido, delas tirava o pão magro da família. Este homem do
século XIII era o colono voluntário. As terras eram do rei, dos nobres,
dos herdadores, dos conventos, mosteiros ou igrejas. Estes senhores
recebiam a sua quota de produção que variava de 1-4 a 1-8 conforme a
fecundidade das terras, isto é, recebiam uma medida de quatro em quatro
ou de oito em oito da produção. E além destes tinham ainda os colonos
encargos vários a satisfazer em épocas determinadas no ano, que lhes
tornavam a vida dura e miserável.
A vila antiga tinha desaparecido. As casas multiplicaram-se, formaram
agrupamentos. Nasceram as aldeias. Disse que havia outros homens além
destes que cultivavam as terras. Entre eles, artífices, mercadores,
homens livres, que viviam da sua arte ou de mercadejar à maneira do
tempo. Viviam os artífices em suas cabanas colmadas, humildes como as
casas, mas sem as dependências destas. Esta gente era pouca na rara
população de então. Menos ainda seriam os mercadores. Estes procuravam a
vizinhança de algum castelo, o ponto de passagem de algum rio, para aí
fazerem os seus pardieiros, beirando a estrada ou a linha das muralhas.
A estes aglomerados humanos chamaram burgos, palavra trazida da Gália,
não sei em que tempo. Assim surgiu o burgo de Guimarães em volta do
Castelo de Mumadona, e o burgo do Porto em volta do Palácio fortificado
do bispo do Porto.
Na carta de Couto feita em 1117 por D. Teresa a Gonçalo Eriz da terra de
Assilhó fala-se no burgo de Vouga e é esta a primeira referência a este
povoado, que encontrei. Os documentos antigos referem-se a quase todas
as vilas que correspondem a aldeias hoje existentes; nenhum se refere à
vila ou burgo de Vouga. Quererá isto dizer que este povoado nos venha
só do século XI? Penso que não. O lugar onde é e foi a aldeia de Vouga
fica precisamente no local onde a velha estrada romana atravessava o
Vouga. Esta estrada serviu desde os romanos, e serve ainda, com
pequeníssimo desvio a Nascente, após a construção da ponte do século
XIII. É natural que neste lugar, desde os romanos, houvesse algumas
habitações de mercadores e barqueiros, que serviam os transeuntes. Os
documentos medievais não se referem a este lugar, porque se tratava não
duma vila
/
115 /
agrícola, mas de um núcleo que certamente não entrava nas transacções
próprias daqueles. Quando no século IX aquela terra entrou
definitivamente no domínio cristão e ficou livre de fossados e algaras,
a população, desenvolvendo-se à sombra do castelo do MarneI que lhe
ficava sobranceiro, mereceu chamar-se pela palavra nova − burgo − e ser
cabeça do Julgado de Vouga.
Penso que as atribuições que cabiam ao Julgado de Vouga
não foram sempre integralmente exercidas naquela sede. Quando em 1222
se procedeu à inquirição de Afonso lI, o juiz de Vouga, que devia ser o
segundo a ser inquirido, não o foi ali, mas na freguesia de Macinhata:
«de Macinata Duranus prelatus. Judex de uauga...» De tempos imemoriais
vinha fazerem-se as praças judiciais em Arrancada.
Em Vouga foi inquirido Pedro, o Alcaide, isto é, o guarda do Castelo,
onde eram recolhidos os presos. E de facto a cadeia sempre foi em Vouga,
até à extinção do Julgado.
Na carta de Couto de D. Teresa a Gonçalo Eriz, já referida, publicada por J. PEDRO
RIBEIRO no Vol. I das Dissertações, pág. 245, diz o bispo D. Egas, de Coimbra, que esta carta lhe fora
apresentada, em 1258, junto da igreja de Santa Maria
de Lamas, por Domnus Mouranus, do burgo de Vouga. Na inquirição de terra
de Vouga mandada fazer por D. Dinis em 1282 diz-se: « Item da freighisia
de Santa Maria de Lamas
...Item Martim Vilão do Burgo de Vouga...»
Aquela carta de Couto de D. Teresa, definindo os direitos que dava a
Gonçalo Eriz, punha entre eles o direito de calúnia, isto é, o direito
de receber as multas impostas aos
que cometiam determinados crimes, acrescentando que estas multas se
regulavam pelo foro de Vouga: «...omnes homines, qui ibi fecerint calumniam pectent tibi per forum Vaugam...» Foram
certamente estas referências e porventura outras que levaram alguns
escritores a supor que Vouga tivesse sido um município por carta de
foral antiga. Penso
que estão enganados. Além de se não encontrar esse foral
entre os forais velhos, o exame dos documentos não nos fornece o mais
leve indício da existência de um município em Vouga, ainda sob a forma
imperfeita. Juízes, mordomos, porteiros, alcaides, nenhum é de eleição
dos burgueses de Vouga, todos são do rei. Não conhecemos a carta de D.
Dinis dirigida ao Juiz, Tabelião e Domingos Gonçalves, de Adofernando,
para procederem à inquirição na terra de Vouga,
mas pelos termos da resposta destes se vê claramente que o rei se
dirigiu a gente sua. O Tabelião o confessa: «E ssenor eu Marti Vicẽte
uosso home e uossa mercêe e uosso Tabelliõ in Terra de Vouga...»
O Burgo de Vouga formou-se e nasceu em terras do rei. Do rei era todo o
Monte MarneI. O Burgo de Vouga estendia-se
/
116 / pela encosta suave que forma a base daquele monte junto do rio.
Ainda em 1122 o rei ali tinha três casais e vinte e oito casas. «Rex
habet in Rua de Vouga III casalia... XXVIII casas». Só isto era quase
todo o Burgo. É certo que havia outros casais e casas, que eram de herdadores, mas estas tinham sido dadas pelos reis antepassados de
Afonso II. A mesma inquirição refere que os filhos de Menendo Calentino
tinham um casal que tinha sido doado pela bisavó do rei (D. Teresa).
Aquela referência da carta de D. Teresa ao foro de Vouga não significa
foral, mas usos e costumes que no termo de Vouga regulavam o pagamento
da calúnia ao rei.
O Julgado de Vouga começou cedo a desmembrar-se. Já em
1132 Afonso
Henriques coutou as duas freguesias de Barrô e Aguada de Cima ao bispo
Bernardo de Coimbra, que já eram de Santa Maria (Chanc. de Af.
Henriques, doc. 41). Aguada e Barrô pertenciam ao Mosteiro de Santa
Cruz.
«De Villa de Agada de suzano cum sua ecclesia et uillam de forcado et
uillam que dicitur bostelo uillam que dicitur sanctus martinus de
carualo sunt de sancta cruce colimbrie
et petant calumpniam domino regi per suum forum».
«Villam de Agada de jusana cum sua ecclesia, et uillam de bairoo cum sua
Ecclesia sunt episcopi colimbriensi (Inq. de Af. II).
Ao tempo das inquirições de Afonso Il já havia na terra de Vouga um
outro Julgado porque a inquirição diz: «De
Oes Judex Petrus suarii». Este Julgado parece ter durado pouco, porque
na inquirição de D. Dinis, de 1282, não se fala dele, mas tratando das
cavalarias refere que «Martĩ Piriz doroni que foy juiz disse: que I Orta do Baro a hua caualaria». Nesta inquirição já a terra do Vouga
aparece dividida em mais julgados que são o do Vouga, − o de Ualdaui e
Ferreiros, − o de Ílhavo, Vaghoos e de Vila de Milo e o de Eixo
(Inq. de D. Dinis, no Arq. de Aveiro, voI. IX, pág. 83).
Estes Julgados deviam ser novos porque em
Ílhavo a testemunha Domingos Martins disse que «uiu o porteiro de Vouga demãdar esta
Caualaria» (Verdemilho).
As vilas de Alcafaz, Mendo, Jaoanino, Alvarim, Belasaimas, velha e
nova, ambas antigas, e Castanheira, compreendidas hoje nas freguesias de Castanheira e Belasaima foram dadas por
Afonso II a um tal Martinho Vivaz, certamente com todos os direitos
reais e jurisdição «Dominus rex dedit
martino uiuas villam de Castineyra et villam de Alcofar et villam que
dicitur villa Menendo et Joaminno Villam de Alvarim et de Balsamia et
de alia Balsamia».
Era duvidosa a situação de Aveiro em 1282, porque na inquirição de D.
Dinis não quiseram os dali jurar − Diz a
/
117 /
inquirição: «Item in Aueyro nõ quyserõ por nos jurar E
asuou ho cõcelo e disse nos tal rechado que el-rey nõ a y
ergo hũa coleyta, e que todalas outras cousas que hy a que
son de Don Pedreanes e que III Caualarias que hy a que
nũqua uiro nẽ ouuirõ inde faseer foro ergo a dõ Pedreanes».
Parece-me que isto significa que o tal Pedro Anes era donatário ou se
tinha apoderado da vila de Aveiro, não tendo
ali o rei outro direito que não fosse uma colheita, isto é, certo
foro anual que o rei reservava quando concedia o foral. Também a reunião do Conselho mostra que Aveiro era município, com foral ou
sem foral.
Esgueira era de Lorvão. Foi D. Teresa, a filha de Sancho I que lhe fez
doação dela. Sancho I havia feito esta doação com jurisdição completa. O
irmão, D. Afonso II, na
célebre contenda com suas irmãs por causa desta doação e da
de Montemor e Alenquer, reconheceu aqueles direitos. Não
me parece que tenha razão PINHO LEAL e aqueles em que se
apoia para afirmar que o conde D. Henrique lhe dera foral
em 1110. Não encontrei vestígios de vida municipal em Esgueira.
Em Ancas de Anadia, também o poder jurisdicional de
Vouga sofria limitações porque D. Afonso Henriques a doou
a Maria Soares «cum suis directuris et cum tota meo jure»
(Chanc. de Af. Henriques, doc. 125).
Outro tanto acontecia em Perrães doado a Lorvão em
1169
pelo mesmo rei «cum omnibus suis terminis et juribus»
(Chanc. de Af. Henriques, doc. 217).
Com estas e porventura outras manchas, assim devia
apresentar-se o panorama do Julgado de Vouga no fim do
século XIII.
Disse que o Julgado ou terra de Vouga não recebeu o
nome de Burgo que quase durante toda a sua vida lhe serviu
de sede, mas sim do rio Vouga. Poderei dizer que este mesmo
Burgo continuador do nome de Opidum Vacca, o recebeu
deste? Certamente não. Ao tempo em que o Burgo se formou, em terras do rei,
já o nome Vacca, dado ao monte fortificado, tinha sido substituído por Monte Marnel.
Monte Marnel estendeu o seu nome com o prestígio que lhe vinha das
muralhas do tempo dos romanos. O julgado
de Vouga nasceu com as vicissitudes da reconquista. É uma
obra cristã. Monte MarneI é obra pagã. Duma à outra vão mais de dez
séculos.
Rio de Janeiro, 1949.
AUGUSTO SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |