QUANDO o mar, em 1944, uma vez mais invadiu a martirizada praia de
Espinho, causando sérios estragos e graves apreensões, propus-me chamar,
na Assembleia Nacional, a atenção do Governo para a necessidade
de promover com urgência as convenientes obras de defesa.
Fiel ao propósito de só intervir quando pudesse fornecer qualquer
contribuição útil para o estudo e solução dos problemas, e tratando-se,
como se tratava, de assunto que me era absolutamente desconhecido,
procurei esclarecer-me sobre as causas do fenómeno que se verificava em
Espinho e sobre os processos de remediar os seus efeitos desastrosos.
Uma das pessoas que desejei ouvir foi o saudoso Comandante SILVÉRIO
RIBEIRO DA ROCHA E CUNHA, a quem o meu
amigo Eduardo Cerqueira teve a bondade de entregar uma
carta minha, em que pedia o obséquio de algumas informações.
Com a sua proverbial gentileza, o ilustre oficial da nossa Armada, cuja
extraordinária modéstia mais realçava a sua
invulgar competência, respondeu-me prontamente com a interessantíssima
carta que segue:
Ex.mo Senhor Dr. António Christo,
meu prezado Amigo
Sobre o assunto da carta de V.
Ex.ª que me apresentou o nosso amigo
Cerqueira, só posso informar o seguinte:
Sobre a defesa da costa de Espinho, onde há mais de cinquenta anos se
verifica o fenómeno de transgressão marinha, disse-me o Engenheiro Von
Haffe que houve
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XV - N.º 58 - 1949]
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várias opiniões acerca dos processos a empregar, e que fora ele o autor
do projecto de defesa por meio de redentes de pedra, convenientemente
orientados e prolongados
para o mar. Disse-me ele que este projecto, o qual foi executado, era o único viável. Os redentes diminuem
a velocidade das correntes, promovem assim depósito de areias, e
estabilizam as praias. Devem ser, como todas
as obras desta natureza, cuidadosamente vigiados, e oportunamente fortalecidos, quando se verifica o abaixamento
resultante das infra-escavações ou demolições causadas
por temporais, especialmente em costa desabrigada,
muito batida, como é a de Espinho. Parece que os redentes de Espinho
deram resultado. É necessário construir outros, ou apenas reparar os actuais?
Depois da abertura da Barra Nova de
Aveiro, em 1808, ficou alterado o regímen de correntes no local; a praia
de S. Jacinto (margem da Ria) começou a ser fortemente corroída pelas correntes; Luís
Gomes de Carvalho construiu redentes para a defender e com resultado.
Os seus sucessores, incluindo o General Silvério, cuidaram sempre da sua conservação e melhoramento. Só foram demolidos depois da construção das novas obras do porto; a margem de S.
Jacinto passou a ser defendida por muralha de revestimento, mas devemos
notar que se trata de margem lagunar que é muito mais abrigada que a
margem marítima completamente desabrigada. Há outro
exemplo que conheço: a praia marítima do Lobito, perigosamente corroída pela corrente, a ponto de o mar
ameaçar a segurança da cidade, foi defendida com sucesso
pelo emprego de redentes. Creio que foi o Engenheiro Craveiro Lopes que
os construiu.
Os fenómenos de transgressão marinha têm-se produzido em várias costas: Inglaterra, Irlanda, Bélgica, etc.
Quais as suas causas? O assunto é muito complicado.
Alterações do regímen de correntes? Movimentos tectónicos das costas, que, como báscula, se elevam nuns
pontos e baixam noutros? Creio que não foram feitos
estudos na costa portuguesa que permitam determiná-las.
Creio que está neste caso a influência dos molhes do porto de Leixões.
Creio que o fenómeno que durante
tão largo período se tem verificado na praia de Espinho
não é simples emagrecimento da praia, como, em certas
condições de mar e tempo, se produz na praia do Farol,
por exemplo, mas que já demoliu a casa do sinal sonoro
e obrigou à demolição da casa abrigo do carro porta-cabos dos S. a
Náufragos.
Não sei, ou antes, duvido
que tão pouco saber possa esclarecer V. Ex.ª
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Desejo a saúde de V. Ex.ª e subscrevo-me
com a maior consideração de V. Ex.ª
Amigo reconhecido
Aveiro, 18-3.º-44
P. S. − Creio que um engenheiro esclarecerá melhor V.
Ex.ª
Rocha e Cunha.
Afigura-se-me que esta carta bem merece, por muitos
títulos, ser guardada nas páginas do Arquivo.
O assunto dela, é de indiscutível interesse para a região e, muito particularmente, para Espinho.
Por outro lado, não são de desprezar os ensinamentos que encerra, magnífico contributo para a solução de um grave problema.
E, finalmente, a publicação da carta constitui uma homenagem ao seu
ilustre Autor: d Comandante ROCHA E CUNHA, que continuará vivendo na saudade de quantos o conheceram, revela
naquelas poucas linhas, apressadamente escritas, algumas das muitas
qualidades que o impuseram à estima e consideração de todos − a sua
invulgar competência, a sua
absoluta probidade, a sua encantadora modéstia, a sua extrema gentileza e o grande amor que sempre votou aos problemas da sua terra
e da sua região.
Aveiro, 14-11-1949.
ANTÓNIO CRISTO |