Vaz Ferreira, Convento da Feira, Vol. XV, pp. 129-138.

CONVENTO DA FEIRA

LISTA DOS REITORES − CAPELA-MOR

A MEIO da cópia deste trecho surpreendeu-me a triste notícia da morte do erudito colaborador do Arquivo do Distrito de Aveiro e meu estimado conterrâneo e amigo, cónego ANTÓNIO FERREIRA PINTO, a quem tanta simpatia e tantas atenções e finezas me ligavam. Mais novo do que eu, era de há bastantes anos um dos que prematuramente ostentávamos as cabeças brancas. Ambos devotados ao estudo das coisas da nossa terra, tive muita vez ensejo de pedir auxílio à sua vasta cultura, à sua clara inteligência, ao seu muito saber e ao seu aturado estudo. Rendo-lhe o preito saudoso da minha gratidão e da merecida homenagem em que me acompanham decerto os amigos da Terra de Santa Maria por ele tanto prezada.


CRIAÇÃO DO CONVENTO

No volume IV do Arquivo publicou esse meu distinto conterrâneo a Lista Geral dos Reitores da Colegiada do Espírito Santo na vila da Feira.

Apesar de geral, só compreende os reitores «eleitos por votos de toda a religião», não sendo portanto completa essa lista. Faltam-lhe 28 reitores de antes de 1653; e houve-os desde 1566.

Tenho na Biblioteca Municipal da Feira um livro provindo do convento dos Loios na mesma vila e que fora dar fundo ao depósito da repartição distrital de finanças de Aveiro, não sei como nem quando nem porquê.

Conserva a encadernação primitiva em coiro, com carcela para fechar, à qual já faltam as tiras da fivela. Chama-se na primeira lauda:

Liuro e memorial da fazenda deste Conuento pera se dar principio ao tombo tão necessario pera sua augmentação.  [Vol. XV - N.º 58 - 19949] / 130 /

Mas contém apontamentos diversos escritos, na maior parte, pelo seu iniciador o padre mestre Jorge de S. Paulo, um desses primeiros reitores escolhidos pelo capítulo. Ao assinar o preâmbulo, na folha 1, escreveu

Jorge de S. Paulo
R.or

Alguém, mais tarde, acrescentou: «aliaz Administrador» com outra caligrafia. Deve ter sido emenda de um dos reitores eleitos, mais pechoso e ciumento do seu título; mas que não tinha decerto os méritos revelados pelo seu antecessor.

Segundo esses apontamentos, com todos os foros de autenticidade, é de 3 de Julho de 1550 a concessão do núncio João Spontino, cardeal a latere do papa Júlio 3.º, para os cónegos seculares da congregação de S. João Evangelista levantarem mosteiro colegiado na vila da Feira. Confirmou essa concessão a bula de 16 de Novembro de 1553, depois de um fiat de 15 de Setembro do mesmo ano, passando-se a bula executória a 27 de Julho de 1554.

Tratou-se de edificar o convento e a sua igreja por doação do quarto conde da Feira, D. Diogo Forjaz Pereira.

Tinha este conde dois irmãos nessa congregação. Um, sem importância, foi o padre Leonis de Santiago, filho bastardo do terceiro conde da Feira e pessoa diversa do irmão também bastardo, D. Leonis Pereira, a quem me referirei.

O outro era o filho segundo do mesmo conde D. Manuel Pereira e da condessa D. Isabel de Castro, filha do 1.º conde de Tarouca D. João de Meneses e de D. Joana de Vilhena. Chamou-se D. Rodrigo Pereira, foi abade de Fiães e, renunciando esta abadia a 6 de Maio de 1547 por ter recebido o hábito dos Loios em Vilar de Frades, tomou o nome de Rodrigo da Madre de Deus. Tinha sido inquisidor em Coimbra quando, a 19 de Agosto de 1542, lhe deram posse do mesmo cargo na mesa grande do tribunal do santo ofício.

Eleito bispo de Angra por D. João IIl, teve logo a seguir a nomeação de inquisidor geral num dos amuos do cardeal infante D. Henrique. Veio a morrer no castelo da Feira a 6 de Maio de 1553.

O quarto conde da Feira D. Diogo, levado pela amizade fraternal que o ligava ao padre Rodrigo da Madre de Deus, fez petição ao capítulo geral dos Loios em 1549 para instituir na Feira um convento de cónegos regrantes. Deferida a petição em capítulo, logo tratou o conde D. Diogo de angariar para a futura instituição a igreja paroquial da Feira, a que andava anexa a de S. Mamede de Travanca. / 131 /

Era abade de S. Nicolau da Feira frei Pero Soares, religioso professo de S. Domingos. Renunciou nas mãos do cardeal João Spontino, naquele tempo núncio em Portugal com poderes de legado a latere, o qual alevantou em colegiada as ditas igrejas e lhes concedeu todas as graças e privilégios de que usavam os mais colégios dessa congregação, pela referida bula apostólica de 3 de Julho de 1550.

A 21 de Março de 1555 o reitor dos Loios do Porto, padre Brás de Santa Maria, como procurador do geral, padre Diogo da Ressurreição, tomou posse da igreja paroquial da Feira, no local onde hoje se encontra a Misericórdia, na presença do conde da Feira, D. Diogo. Foram despedidos o cura Nuno de Carvalho e o reverendo Diogo Tavares. A renúncia de frei Pero Soares tinha tido confirmação papal em 16 de Outubro de 1553.

Da igreja de Travanca não podiam tomar posse em vida do abade Tristão Pinto que diziam ser sobrinho do frei Pero Soares. Morto ele, porém, e aos 15 de Novembro de 1565, foi tomada essa posse e transferida a 17 de Dezembro do dito ano para o padre João de Santa Maria reitor do convento dos Loios no Porto e que em Maio seguinte de 1566 foi mandado para a Feira como reitor do novo convento.


ADMINISTRADORES E REITORES

Tendo sido a primeira pedra da nova igreja da Feira colocada solenemente no dia de S. João ante portam latinam, aos 6 de Maio de 1560, no sétimo aniversário da morte do padre Rodrigo da Madre de Deus, já deviam estar muito adiantadas as edificações e habitável o convento seis anos depois. Portanto o reitor nomeado para ele não podia ser um simples administrador das obras, recaindo a escolha, de mais a mais, no reitor cessante da colegiada do Porto. O título seria simplesmente o pretexto, mas não um limite de funções. Na lista desses primeiros superiores figuram cinco que depois foram gerais (dois por três vezes) e este nosso padre Jorge de S. Paulo, principal autor do Livro e memorial tem a designação de «padre mestre». Revela ele esta mesma opinião como se vê do que escreveu na folha 42:

O religioso que governava este convento não tem ainda verdadeiro título de reitor porquanto não é nem nunca foi casa colegiada. Somente lhe deram título de Administrador das obras, posto que sempre se intitula reitor da Feira, é eleito em capítulo geral pelos votos da / 132 / definição, tem mesa travessa como qualquer outro prelado das mais casas. No ano de 1566 aos 30 de Abril fizeram os homens nobres desta vila petição ao capítulo em que pediam se elegesse reitor para que governasse esta igreja, porquanto dessa concessão e união das igrejas de S. Nicolau e Travanca a este convento, que foi no ano de 1550, era a dita governada por curas sem residência de abade, somente o reitor do Porto de quando em quando acudia às obras do mosteiro, alegando juntamente na petição que o rendimento do curado sem a renda do convento bastava para sustentar ao reitor e seu companheiro e outras coisas que podem ver na petição que está na gaveta 4.ª n.º 10.º Na sobredita petição não está despacho algum do capítulo porém achei que quando se fez o contrato com os fregueses que foi em 17 de Dezembro de 1566 acerca de se mudar a freguesia para o convento se nomeia no contrato o padre João de Santa Maria por reitor desta casa e procurador da congregação para celebrar o contrato, e a petição dos fregueses foi a 30 de Abril do mesmo ano de 1566, de modo que combinadas as eras, foi eleito no capítulo em que se apresentou a petição o padre João de Santa Maria por reitor deste convento assim que foi o primeiro reitor dele e começou no dito ano de 1566. E adverti que este mesmo padre João de Santa Maria no mesmo ano que foi eleito reitor desta casa tinha acabado de reitor do Porto, o que colijo do dia e ano em que tomou posse da igreja de Travanca que foi aos 17 de Dezembro de 1565, como consta do documento da posse que está na gaveta primeira n.º 11.º e acabou de reitor do Porto no capítulo que se fez daí a cinco meses que foi em Maio de 1566 no qual foi eleito porque em Dezembro da mesma era se nomeia reitor no contrato das freguesias que está na gaveta quarta n.º 8.º e no livro 10 fl. 7 se nomeia também por reitor desta casa.

A lista que vou apresentar começou a escrever-se anteriormente à já publicada neste Arquivo e foi talvez a fonte dela, como facilmente se deduz.

O livro 3.º de lembranças examinado pelo escrupuloso cónego A. FERREIRA PINTO (pág. 85 do voI. IV do Arquivo), escrito aos 20 dias do mês de Novembro de 1815, é manifestamente decalcado sobre o que tenho aqui e estou copiando, escrito pelo padre mestre Jorge de S. Paulo no ano de 1638. A parte Fundação transcrita é uma súmula do que leio na folha 3 do cartapácio aqui presente, só com a diferença do erro evidente na data final que é 1549 e não 1449. A própria lista dos reitores parece copiada do Livro e memorial, porque / 133 / as omissões e erros correspondem a palavras mais difíceis de ler, pelas caligrafias várias e às vezes arrevezadas ou pela tinta sumida.

Limito-me a copiar a lista dando-lhe mais fácil disposição.

REITORES DO CONVENTO DA FEIRA
Listagem em PDF - clicar no título
Nota: De acordo com anotação no final do doc. em PDF, o último nome, referente a 90-62,
António Baptista da Silva, de Braga
, não consta na lista do Livro e memorial.

/ 135 /

CAPELA-MOR

No mesmo cartapácio, o padre mestre Jorge de São Paulo elucida outro caso complicado relativo à igreja do Espírito Santo no convento de S. João Evangelista, actualmente paroquial de S. Nicolau da Feira.

Diz a tradição que a capela-mor era pequena, pelo que D. Inês de Castro, filha de um conde da Feira, a mandou reconstruir à sua custa.

Verifica-se que o conde D. Diogo deixou a capela-mor incompleta e foi refeita depois da morte da D. Inês, sua irmã.

Leiamos o escrito pelo padre mestre Jorge de S. Paulo na folha 16 verso:

No ano de 1580 contratou o conde D. Diogo, fundador, com o mestre de pedraria Jerónimo Luís para que fizesse a capela-mor na forma que lhe apontava no contrato em preço de 180$000 reis e quarenta alqueires de trigo e quarenta de segunda e uma pipa de vinho.

Esta capela se principiou e não se acabou por nesse tempo morrer o conde D. Diogo e o conde D. João, seu neto, que lhe sucedeu, não tratou disso: ou por andar ausente ou por não ter tanto espírito como o conde seu avô. (As palavras em itálico foram riscadas e por cima outra caligrafia escreveu: tantas posses.) / 136 /

Segue a narração na folha 17 verso:

O certo é que D. Leonis, irmão do devoto conde D. Diogo e de D. Inês de Castro sua irmã, mandou fazer uma capela neste convento, o que ficou à conta da senhora D. Inês que devia de ser por alguma herança do D. Leonis seu irmão.

Na gaveta 4.ª n.º 9.º está um papel de que consta que a senhora D. Inês era obrigada a fazer a capela de seu irmão D. Leonis, cujos ossos se não sabe onde estão.

Este D. Leonis, filho bastardo do terceiro conde da Feira D. Manuel Pereira, notabilizou-se em Malaca a ponto de ser cantado num soneto por CAMÕES. Ao mesmo tempo militava também na Índia outro irmão, D. João Pereira, filho do primeiro matrimónio do conde D. Manuel com a condessa D. Isabel de Castro, filha do primeiro conde de Tarouca D. João de Meneses.

Continuemos lendo o padre mestre Jorge de S. Paulo, na folha 20:

D. João Pereira, irmão do conde D. Diogo fundador deste mosteiro, vindo das partes da índia morreu no mar, tinha feito seu testamento em que mandou o seguinte:

Mando que se me faça uma capela de Nossa Senhora em Portugal no Mosteiro do Espírito Santo na Feira à custa de minha fazenda, e o instituidor dela quero que seja o conde meu irmão e seu filho D. Manuel Pereira e deixo para nela se me dizer uma missa perpetuamente em cada ano vinte mil reis de juro os quais mando se comprem com minha fazenda para a esmola e sustentação do padre que a disser e não se acabando o mosteiro mando que se me faça a dita capela assim e da maneira que dito é em S. Nicolau. Onde se fizer a capela se trasladarão os ossos de meu pai e de minha mãe e a missa que se disser seja por minha alma e de meus defuntos.


Segue na folha 19:

D. Inês de Castro, como herdeira que foi de seu irmão D. João Pereira e obrigada da verba do seu testamento... mandou em seu testamento se fizesse a capela mor ....

Deixara explicado na folha 17:

O conde D. Diogo seu irmão e D. Inês de Castro sua irmã e Álvaro Peres de Andrade seu cunhado (viúvo / 137 / de outra irmã D. Guiomar de Castro, filha das segundas núpcias do conde D. Manuel com a condessa D. Francisca Henriques) foram seus herdeiros e testamenteiros (do D. João Pereira) e porque não quiseram nunca cumprir este legado da capela fizeram os padres petição ao juiz das capelas mandasse fazer esta capela conforme ao legado de D. João; que devia de ser no ano de 1595 em que já o conde D. Diogo era falecido; o que, por então não teve efeito até que morreu a senhora D. Inês de Castro herdeira de D. João e sua irmã, mandou em seu testamento se fizesse a capela mor do convento sob a invocação do Espírito Santo por respeito de uma ermida que estava neste sítio onde se fundou o mosteiro que tinha a mesma invocação...

Foram testamenteiros de D. Inês D. António Pereira de Meneses seu sobrinho e D. Manuel Pereira, inquisidor, chamado o Cabrinha (também filho bastardo do irmão D. João Pereira. Morreu em Lisboa, como escreve o mesmo padre Jorge de S. Paulo na folha 262. Deixou um legado à igreja da Feira que não foi aceite por o seu testamenteiro Vasco Pereira César «não querer vir no que era justo»). Estes dois testamenteiros puseram logo em efeito esta última vontade de sua tia D. Inês de Castro de modo que aos seis de Abril de 1618 se lançou a primeira pedra depois de se ter desfeito a obra velha e se tem gastado na capela dois contos seis centos e oitenta mil reis, como consta dos livros, que são por outra conta seis mil e setecentos cruzados, até o ano de 1628 (emendado para 1638).

A grandeza e majestade da capela mor demandava outro cruzeiro mais alteroso do que estava feito antes de se começar a capela mor, e assim o padre geral Ambrósio de Santo Agostinho, à petição de D. António Pereira de Meneses, mandou ao padre reitor Miguel do Espírito Santo começasse a obra do cruzeiro proporcionada à obra da capela mor, em que não houve contrato algum entre nós e D. António e D. Manuel Pereira que ainda então era vivo, mais que ficar em seu querer quererem dar alguma ajuda para obra tão majestosa. O padre geral lançou a primeira pedra do cruzeiro quarta feira 30 de Julho de 1625, sendo mestre da obra Francisco Carvalho, do Porto e por sua morte entrou Valentim Carvalho, morador também no Porto. Tem-se gastado na dita obra do cruzeiro até o ano de 1639 três contos trezentos sessenta e seis mil trezentos setenta reis: a saber um conto e novecentos mil reis das rendas do convento e um conto e quatrocentos sessenta e seis mil trezentos e setenta reis que deu D. António Pereira / 138 / de Meneses, seu e do juro de D. Inês, e do restante de sua fazenda.

Não preciso acrescentar nada ao que escreveu o meu bom informador, testemunha presencial de uns factos e consciencioso e documentado crítico de outros.

A iniciativa da construção de urna capela para sepultura dos condes da Feira pertence ao heróico D. Leonis que, no dizer de CAMÕES, fez em Malaca

Mais de que Leónidas fez em Grécia.

Seguiu-lhe o exemplo ou teve o mesmo intento o seu irmão D. João e, como herdeira de ambos, repetiu e ampliou esse desejo a irmã D. Inês de Castro. Mas afinal não foi esta nem aqueles quem fez a capela mor. Vieram a ser os testamenteiros da D. Inês, os quais, como em cumprimento das suas disposições procediam, puseram lá a lisonja das armas dela. Resta-me só dizer que as erraram. A D. Inês casara e enviuvou. Portanto a lisonja das suas armas devia ser bipartida e ter ao lado da cruz dos Pereiras o brasão do marido que seria o dos Vila Real pinchado de bastardia, por isso que o vice rei da Índia D. António de Noronha era bastardo de D. João de Noronha, filho também ilegítimo do segundo marquês de Vila Real.

Fecho com esta nota heráldica porque a simplicidade da lisonja posta na capela-mor me levou a atribuir erradamente a sua construção a outra D. Inês de Castro filha de um que não chegou a ser conde da Feira. O pai desta, D. Manuel Pereira, não teve o título por morrer em vida do seu pai que era este D. Diogo, quarto conde da Feira. Não era filha do conde, mas era neta de um e irmã de outro, tornando assim fácil uma errónea tradição. Por último, apurei que esta D. Inês se chamava simplesmente D. Margarida da Silva, e morreu em 1646.

Feira, 12 de Abril 1949.

VAZ FERREIRA

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