OS
Aguedenses não gostam muito que se lhes diga que o seu rio Águeda não
começa em Bolfiar, e que é aquele mesmo que desce do alto do Caramulo,
nas Varzielas, e passa por São João do Monte. Parece-lhes que o nome
Águeda só convém àquele rio mais caudaloso que resulta da junção do Alfusqueiro e do Agadão. Eles não têm razão e este assunto, já muitas
vezes debatido, parece que devia considerar-se como definitivamente
resolvido com aquele marco de pedra, em que se lê − Rio Águeda − mandado fincar em S. João do Monte pela
J. A. das Estradas.
Assim não sucede, porém, pois, de quando em quando, lá
insiste o orgulhoso bairrismo no erro antigo. Justo é, portanto, que vamos também teimando em repor a verdade em
seu lugar.
Vejamos o que é que, nos fins do século
X, no século XI
e princípios do século XII, se chamava rio Águeda. Para
melhor clareza sigo, dentro destes três séculos, a ordem corográfica, em
vez da ordem cronológica.
Em 1102 um certo presbítero, chamado Athan, fez doação à igreja de Santa
Maria de Coimbra e ao célebre bispo Maurício, de uma vinha que possuía em
Ois da Ribeira. E diz o respectivo
documento: − «Est autem ipsa uinea cum suo pomerio in uilla Olis in ripa
Agade et sunt termini eius in
oriente Spinel et a meridiem Sancti AdrianI». Quer isto
dizer que naquela data, 1102, o rio que banhava Ois chamava-se Águeda, tal como hoje se chama (Docs.
Medievais
portugueses, pág. 68).
Em 1062 o Imperador Fernando de Leão, visavô do nosso
Afonso Henriques, reconquistou aos mouros Viseu e Lamego,
e dois anos depois reconquistou Coimbra. Recuperadas as
terras até esta cidade, confirmou a doação que seu pai tinha
feito ao bispo Crescónio, de vários bens, e entre eles Travassô: «... terciam partem de uilla
trauazolo inter agatham et uaugam (P. M. H., doc.
CCCCXXXVI).
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Em 1065 Recemundo fez larga doação ao Mosteiro da
Vacariça. Entre os bens doados está o que ele tinha na
vila Tarouquela in ripa de accata e outras propriedades «...quos nominauimus de ripa bona uauga usque
agata...»
(P. M. H., doc. CCCCXLVIlI).
No inventário dos bens de Gonçalo Viegas em 1050,
diz-se: «...et de alia parte agada casal de lausato...» P. M. H.,
doc. CCCLXXVIlI). Este inventário repete-se em 1077, já em nome de um filho ou neto também chamado Gonçalo,
e neste
lê-se «In ripa de agata in uilla de abolfear auilar de abolfear
ad integro».
Em 982 Fernando Sandines fez doação dos bens que foram
de seu irmão Suario, ao Mosteiro de Lorvão. Estes bens foram recardanes
cum suos viccos nominatos antolini e uentosa qui sunt in ripa de agada. (P. M. H., doc. CXXXVI).
No ano de 1018 − uma tal Fronila, com os filhos Cid
e
Ermesinda venderam a Toledo, abade da Vacariça, uma propriedade que tinham em Recardães «Circa riuulum
Agata»
(P. M. H., doc. CCXXXVIII).»
No mesmo ano, a Ermesinda com seus filhos entrega
em
pagamento ao abade Emílio, do mesmo Mosteiro, uma propriedade no mesmo local «in
Agada in loco predicto uilla
recardanes (P. M. H., doc. CCXXXIX).
Em 1114 Ermesenda Henriques doou ao Mosteiro
de
Pedroso a terça dos bens que tinha na Borralha: «...do ego
inde et testo IIIª de tota mea ereditate quanta que ego habeo
des Aue usque in Agada in ipsa uilla que dicitur Borralia...»
(Doc. Medievais, doc. n.º 493).
Por estes documentos se vê que no século XI e princípio do século XII o
rio, desde a sua confluência com o Vouga
até Bolfiar, chamava-se Águeda.
Em 1131 D. Afonso Henriques fez escritura de doação,
de sua vila de S. João do Monte a Mestre Garino onde se lê «.. . facio
kartam de illa uilla que dicitur sancte Johanne
cum omnibus terminis suis quomodo separatur de paramio
et de cuvello et de macenere et de balasterio discllrrente rivulo agada». (Chanc. Af. Henriques, doc. 34). E tendo caducado esta doação, D. Afonso Henriques coutou e doou, aquela vila
de S. João do Monte ao Mosteiro de Santa Cruz: «...et de ipsa mala
ipsa aqua de iumquerio uadit ad aquam de agade...» (Chanc. Af.
Henriques, doc. 119).
Estes dois últimos
documentos também não deixam
dúvidas de que o nome Águeda era dado ao rio em S. João
do Monte, nas proximidades da sua nascente.
Podemos, pois, concluir com toda,
a segurança que o rio
Águeda nasce na vertente sul do Caramulo, acima de S. João
do Monte, perto de Varzielas, passa por aquela antiga vila e vai
confluir no Vouga.
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E o Alfusqueiro? Este nome é dado ao rio que resulta
da junção do rio de Cambra e do rio de Alcofra e que se chamavarn no
século XI e XII Cambar e Loandro ou Joandro.
'Em 1146 Afonso Henriques coutou a Cidi Arias a vila
de Alcofra: − «... et habit iacentia predicta uilla in loco
qui vocatur Alcofra territorio Alafoen discurrente riuulo Joandro».
Nas lnq. de Afonso llI, pág. 911, lê-se: «... Interrogatus de loco ubi jacet iste regalengus, dixit, quod inter ripariam de Ispario et
deinde de estrada ad fundum quomodo vadit ad rivum de cambar».
Em 1002 Gundezindo Tunoiz e sua mulher Eldora venderam a Reinaldo e
mulher Gudina a terça parte de dois
casais em Cercosa, de um abaixo do Penedo e de outro em Paranhos: «... et auet iacentia in uilla cercosa subtus
mons gabro discurrente riuulo cambar territorio Alaphoen...»
(P. M, H., doc. CLXXXX).
Num outro documento de 1105 lê-se: «... hereditate quos fuit de Arias Eitaz et auet iacentia in uilla Cercosa subtus mons gabro discurrente
ribulo cambar territorio Alahoen»
(Docs. Medievais, doc. 204).
Não encontro o nome Alfusqueiro em documentos medievais, mas esta
ausência não é argumento bastante para poder afirmar que o nome não
venha da antiguidade, pois podem alguns existir, fora do meu
conhecimento, em que ele venha mencionado; como ainda a sua falta pode
justificar-se por serem os povoamentos das suas margens, até Destriz,
todos
de formação mais recente. Entretanto, presumo que o nome
é de origem posterior, ao século XII, talvez posterior à construção da ponte (a nova), quando o movimento para Alafões
se tornou mais intenso, por ser aquele caminho mais curto que o do vale do Águeda. Depois sucedeu-lhe o inverso
deste rio, que perdeu o nome desde a nascente até Bolfiar, guardando-o
daqui à confluência; o Cambar manteve-o até perto de Destriz e
perdeu-o daí à confluência.
A penetração árabe pelo vale do Alfusqueiro não deixou
até nenhuns vestígios: Todos os nomes dos povoados são de origem
acentuadamente portuguesa e recente − Cernada, Cambra, Préstimo;
Lourizela, Vale Dégua, Além do Rio; e na margem direita − Casal, Varziela, Ventoso, Vilarinho
(no alto) não oferecem dúvidas.
Não há em toda esta região um só monumento que ateste
antiguidade. De alguns povoados conhecemos a fundação e sua época.
Diversamente acontece no
Vale do Águeda. Neste, a penetração árabe deixou documentos
incontroversos. − Almear − Assequins − Alhandra − Alcafaz − Alcofra, são nomes árabes. E esta penetração explica-se porque
se fazia pela rota da
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antiga estrada romana que de Recardães seguia pela margem
esquerda do Águeda para a travessia do Caramulo. A ponte
romana em S. João do Monte não foi feita para fins particulares do povoado, mas para servir aos fins dessa mesma
estrada.
Estes factos é que me fortalecem a opinião de que o caminho para o
Caramulo pela travessia do Alfusqueiro,
embora muito antigo, só adquiriu valor depois da reconquista, já mesmo muito a dentro da monarquia portuguesa,
com a construção da ponte. Não sei mesmo se foi este
caminho de Alafões que deu o nome à ponte e ao rio. E é
de conjecturar que assim fosse, porque não é vulgar tomarem
as pontes o nome dos rios que atravessam, mas do povoado,
que no local delas eles banham, ou de algum acidente geográfico. Assim se diz ponte de Angeja; ponte de S. João
de Loure; ponte da Fontainha; ponte de Vouga (de não do),
ponte de Bolfiar, etc. Mas como explicar ponte do Alfusqueiro? Não seria a ponte do caminho Alfusqueiro, isto é,
do caminho que levava directamente a Alafões?
Diz o P.e CARVALHO DA COSTA na sua
Corografia Portuguesa, voI. lI, pág. 106: «Tem mais a Villa de Vouga o
lugar Dos Ferreiros, que é da freguesia de Santiago do Préstimo anexa à de S. Pedro de VaIlongo, junto ao rio do
Alfusqueiro, na qual está uma grandiosa ponte de um só olhal, muito
alta de pedra de cantaria, que do rio mal se
chega com uma pedra acima, assentada em lagedo muito
firme e larga». E tratando da Vila de Assequins a pág. 99
acrescenta: «Fica esta vila menos de um quarto de legoa
do lugar de Águeda para o nascente, junto ao rio Alfusqueiro
que se mete no rio Sardão» (!). E a pág. 90: «Águeda foy
antigamente cidade Episcopal, chamada Emineo, cujo primeiro
bispo foi Possidónio pelos anos do Senhor de 589, está nas
margens do rio Sardão com famosa ponte...». Quer dizer,
por aquele tempo ainda o P.e CARVALHO DA COSTA se não conformava
em dar a Águeda o seu rio, pois, além de trazer o
Alfusqueiro até às proximidades da vila, tirou ao Águeda
o 'seu nome legitimo para lhe chamar Sardão.
O rio Águeda recebe na margem esquerda, lá para cima
da ponte de Bolfiar, o Agadão. Rio muito menos extenso
que o Águeda, sobreleva-o talvez no volume de águas e na
própria largura. E esta deve ter sido a razão do aumentativo − Agadão. E porque os povos ribeirinhos de Águeda
se foram esquecendo de chamar pelo verdadeiro nome ao seu
rio, contentando-se em identificá-lo pelos nomes dos mesmos
povos, o Agadão, depois fortalecido por igual nome da terra
que banha, arvorou-se em chefe e estendeu-se até à ponte
de Bolfiar, e disse aos aguedeoses: − «entrego-vos o vosso
rio muito maior. Até aqui mando eu, daqui para baixo
/ 7 / é o vosso Águeda». E os aguedenses ficaram satisfeitos.
O P.e CARVALHO talvez tenha alguma razão em chamar ao rio
Águeda rio Sardão. Realmente, nos fins do século XVI e
princípios do século XVII, o Sardão, que não era mais que um
prolongamento do burgo de Águeda, tinha adquirido
certa importância e o povo chamava ao rio o rio de Águeda ou
rio do Sardão. Em todos os tempos o povo conheceu os rios pelos nomes das povoações por onde eles passam.
Este costume perdura ainda.
Mas os aguedenses são também muito orgulhosos da sua
vila. O saudoso CONDE DA BORRALHA em várias publicações
contou as razões históricas por que Águeda foi fraco através
dos séculos. Contarei, se me for possível, como se originou e cresceu
aquela justificada vaidade da nossa terra.
AUGUSTO SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |