I
EM carta de 22 de Maio
último expus ao Ex.mo Sr. Barão de Cadoro as vantagens que adviriam para
a ria de Aveiro e regiões a ela adjacentes se se pusesse em prática a
ideia, aventada por Sua Ex.ª, referente a uma
exposição, por meio da qual se desse a conhecer a ria de Aveiro em todas
as suas manifestações.
Não permite o espaço de que disponho fundamentar o que dizia na referida
carta, mas convém observar que a secção fluvial do Ginásio Aveirense,
adoptando as minhas propostas para execução da ideia do Ex.mo Sr. Barão
de Cadoro, vai tentar aquele certame, para o que já nomeou uma comissão
composta dos Ex.mos Srs. Barão de Cadoro, Mário Duarte, Virgílio Braga,
Paulo de Melo de Magalhães, Manuel Moreira, Augusto Reis e do autor
desta nota.
Para que a exposição se torne tão proveitosa quanto possível, dando
noções exactas referentes à ria, aos seus habitantes e aos costumes deles, aos produtos industriais e
artísticos da região, trata-se de adquirir o maior número de desenhos,
mapas, estampas, fotografias e modelos, cada um dos quais será
acompanhado de uma breve indicação escrita, contendo o nome do objecto,
os seus usos e modo de fabricação, a sua importância industrial e uma
indicação bibliográfica a ele referente. Cada visitante, por
consequência, só pela leitura dos cartões alusivos a cada objecto tem
como que um resumo da história natural dele, completando-a pelo
catálogo descritivo e ilustrado profusamente que se projecta publicar,
de maneira que esteja completamente impresso quando se abrir a
exposição.
O programa que propus para esta exposição e a que darei oportunamente
o desenvolvimento que ele comporta, é o seguinte:
I − PESCARIAS
(a)
Pesca marítima:
Modelo de barco de pesca de sardinha e da respectiva rede.
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252 /
Modelo de barco de pesca do caranguejo.
Plantas e fotografias das instalações das companhas de
pescaria no Furadouro, na Torreira, em S. Jacinto e Costa Nova.
Fotografias das diversas fases da pesca desde que se deita
o barco ao mar até que a sardinha é vendida ao mercantel.
Modelo de barco mercantel transportador de sardinha.
Modelo ou fotografia do carro que leva a sardinha para
a serra, tanto puxado a cavalos como a bois.
Fotografia ou quadro representando uma arrematação de
peixe na praia ou em Aveiro.
Fotografia ou quadro de uma espera de barcos em Aveiro para tomar vez
para a contagem e empilhamento da sardinha. Contagem. Empilhamento.
Fotografia de um ajuste de transporte de sardinha da
praia para o barco mercante!.
Lavagem da sardinha. Empilhamento de canastras na
Estação do caminho de ferro.
Fotografias das romarias de S. Paio da Torreira, Senhora das Areias em
S. Jacinto, Senhora da Saúde na Costa Nova, Senhora dos Navegantes na
Barra, Senhora da Nazaré na Gafanha. Ex-votos.
Trajes dos pescadores e dos arrais em dias de festa e de
trabalho. Bastões distintivos dos arrais. Trajes de mulheres.
Fotografia ou quadro de um
acordo ou apanhia.
Indústria dos escassos resultantes das
escuchas e do azeite
de peixe.
Exemplares de fauna marítima litoral.
b) Pesca fluvial:
Modelo de barco da Murtosa ou de
Aveiro contendo
todos os aparelhos de pesca, a esteira, a caldeira, o fogareiro e a cama
na proa do barco com a nomenclatura respectiva.
Modelo de redes flutuantes, varredouras e fixas. Esteira para pesca.
Anzóis, fisgas, sertelas, bolsas, dragas ou engenhos, ancinhos de ferro, candeia e sua trempe.
Piscinas, cestos para remessa do peixe. Enxalavares.
Exemplares da fauna
da ria.
II − COLHEITA DE MOLIÇO
Modelo de barco moliceiro aparelhado com todas as peças
que o compõem.
Exemplares das pinturas ornamentais dos barcos moliceiros.
Plantas e fotografias de portos ou praças de moliço. Barcos
transportados em carros para a ria.
Exemplares de moliços colhidos na ria.
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253 /
III − INDÚSTRIA DO SAL
Modelo de uma marinha de sal com a nomenclatura e
proporções das diversas partes que a compõem. Planta da mesma.
Instrumentos usados no
amanho de uma marinha. Exemplares de sal. Sal de
espuma. Exemplares de ândua
e de areia para espalhar nos meios de fazer sal.
IV − CULTURA DO JUNCO
Exemplares de junco devidamente classificados. Indústrias locais em que
o junco é matéria prima. Exemplares e, sendo possível, artistas executando trabalhos em que o junco é matéria prima.
V − INDÚSTRIAS DIVERSAS
Exemplares e fabrico de mantas de farrapos.
Trajes, alfaias e jóias usadas pelos habitantes de Ovar,
Murtosa, Cacia, Canelas; Ílhavo e Gafanha.
Fabrico de algodões de Ílhavo.
Descasque de arroz (indústria de Ovar). Modelo de moinho e maquinismo.
Produtos cerâmicos de Arada, Angeja, Aveiro, Ovar,
S. Bernardo, Póvoa do Vaiado, Costa do Vaiado, Eixo, etc.
Produtos cerâmicos das fábricas da Vista Alegre, Fonte
Nova e outras.
Construção naval, modelos de embarcações para navegação na ria e água
acima. Barcos de tolda. Enviadas. Saleiras. Bateiras. Caçadeiras. Barcos de recreio, etc.
Modelos de velas usadas nas embarcações da ria.
Indústrias locais diversas, tais como cestos, canastras,
ceirões, chinelas, tamancos, faixas, barretes, chapéus, lenços, chailes,
mantéus, doces, conservas de peixe, etc.
VI − MODELOS DE CASAS E MOBILIÁRIOS
Na Murtosa, em Pardilhó, em Ovar, na
Torreira, em Aveiro, em Ílhavo, na Gafanha, no Areão, na Costa de Mira,
nas marinhas. Última aplicação das proas das saleiras.
VII - PLANTAÇÕES PARA
FIXAÇÃO DE DUNAS
Modelos e plantas dos trabalhos executados pelo Estado
e por particulares.
VIII - DOCUMENTOS GRÁFICOS
Plantas da ria, fotografias, desenhos, livros, etc.
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254 /
II
O Sr. RODRIGUES DE FREITAS, num estudo acerca das
crises,
conclui que elas são como que reguladores do crédito e, após
elas, se tornam mais seguras as operações comerciais. As crises
representariam portanto, para com o comércio, o
mesmo papel que as trovoadas em relação à atmosfera.
Ora uma das vantagens da crise económica em que o
país se debate desde 1891, foi o atrair as atenções do público
para o que possuímos.
Com efeito a lei económica que se exprime pelo axioma
a moeda má expulsa a moeda boa, fazendo encarecer o preço do ouro,
reservando-o apenas para as transacções com o estrangeiro, obrigou a suprir produtos de outras nações ou passando
por isso, por manufacturas nacionais.
De resto, o país estava preparado para aceitar, senão de bom grado, pelo
menos sem repugnância, o que era nosso. As escolas industriais, cujo
grande desenvolvimento data
de 1887, trouxeram para Portugal muitos artistas de mérito que começaram
a pôr em relevo os nossos produtos e as
nossas obras de arte, de maneira que já muita gente admitia, antes de se
manifestar a crise económica, a possibilidade de mobilar, ornamentar e
até construir uma casa sem ir buscar
modelos suíços, russos, suecos, turcos, egípcios ou franceses. Um artista nosso, Rafael Bordalo Pinheiro, com rara
intuição, ornamenta a nossa exposição em Paris, em 1890,
com artefactos nacionais e em Madrid faz outro tanto sem se
repetir. A maioria dos portugueses, vendo o apreço que o
estrangeiro dá a estas manifestações, começa também a achá-las de bom
gosto, admitindo os arreios alentejanos e não destinando os tapetes de Arraiolos, que ainda há espalhados pelo
país, para rodilhas de esfrega de casas, conforme teve ocasião
de observar o autor destas linhas. É para notar todavia que
mais uma vez se repita um fenómeno que sugeriu uma observação curiosa a um romancista nosso, JÚLIO DINIZ, que escreveu algures que só depois que a Inglaterra apreciou o nosso
vinho do Porto e a Alemanha o nosso Camões, é que nós
começámos a falar em ambos, contentando-nos até aí com
beber um e com ler o outro sossegadamente.
O ensejo, portanto, para expor coisas portuguesas, com
probabilidades de que o público lhes ligue atenção, é oportuno, mormente porque o espírito nacional, inclinado a procurar inspiração em assuntos populares, verá com agrado
manifestações originais de trabalho, de arte e de poesia em
uma região que se distingue de todas as demais de Portugal.
Nesta ordem de ideias, a exposição alusiva à ria de Aveiro
terá por efeito chamar as atenções do país para localidades
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255 /
quase ignoradas, para costumes que têm resistido até agora à tendência
uniformizadora da civilização, para industrias caseiras dignas de apreço
e em vésperas de se extinguirem, porque já quase que se podem
classificar como modos de
viver que não dão para viver, para formas de construção naval que talvez
que, em breve, se percam de todo, para manifestações artísticas
populares reveladas nos vestuários. nas jóias, nas festas e nos barcos,
enfim, darão ensejo a comparar estas povoações com as do resto do país,
− mostrando que elas consideram as águas como os serranos olham para os
baldios, tanto que chamam mato às plantas que só medram em terreno húmido e as aplicam precisamente, como nas terras altas aos matos, para
camas de gados.
Diz o Sr. RAMALHO ORTIGÃO, no seu
Culto da arte em Portugal, que
ninguém mais artisticamente do que o português sabe vestir a mulher,
arrear o cavalo, engatar a mula e moldar a vasilha, do que se pode
concluir que, no carácter
nacional, está o desejo, comum de resto às raças latinas, de ornamentar
tudo quanto aprecia, de tornar agradável tudo quanto precisa e lhe é de
utilidade. O barco moliceiro, que se pode considerar como a casa de
alguns dos habitantes desta região, não foge à lei estabelecida e, como
prova, lá estão os documentos iconográficos que ornamentam as proas
deles. As suas formas elegantes, tão bem adequadas ao fim a que se
destinam estas embarcações, são outra prova de que é o português que
sabe dar uma forma artística aos barcos sem que eles, por isso, deixem de
ter condições de navegabilidade muito notáveis, correndo à vela quase
tanto como
os batéis que importamos do estrangeiro. De resto, é lamentável sob o
ponto de vista artístico, que a guerra naval tenha obrigado a pôr de
parte as naus de três pontes, as corvetas, as fragatas, que, de velas
pandas, pareciam querer dominar
os mares, para as substituir por barcos que mal se vêem ao
de cima de água, de formas dissimuladas e sonsas, cujo ideal parece ser
o torpedeiro, espécie de faquista, que só se move com auxílio do vapor,
traindo-se ainda pelo fumo do combustível; mas, talvez em breve, quando
a electricidade resolver o problema dos acumuladores, conseguindo
chegar-se ao
pé do inimigo, agachadamente, ferindo-o à surrelfa, anavalhando-o e
fugindo como qualquer fadista.
lII
Voltando porém ao assunto deste estudo e cingindo-me
mais de perto ao problema que se trata de resolver, é preciso que a
exposição que se projecta, conforme disse na carta a que já me referi,
seja tão sugestiva, tão intuitiva quanto possível,
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256 /
de modo a patentear bem o que é a ria de Aveiro, não só àqueles
que a conhecem de nome apenas ou por a avistarem quando passam na linha
férrea ou por se demorarem algumas horas em Aveiro; mas ainda aos que vivem de há
muito nesta região. Para isso, é preciso que o visitante, que percorrer, ainda distraidamente, a
exposição tenha, em
resumo, uma ideia geral da ria, dos seus habitantes, dos costumes deles
e dos produtos industriais e artísticos da região, nos termos indicados
sucintamente no primeiro artigo deste estudo.
Além disso, um catálogo descritivo e ilustrado profusamente, completará
a instrução que o visitante colher do que viu, para o que se torna
indispensável que tal escrito fique completamente impresso quando se
abrir a exposição, a fim de não suceder o mesmo que se dá na maior
parte dos nossos certames artísticos ou industriais, em que os
catálogos se publicam, e isso nem sempre, muitos meses depois de encerradas as exposições. Tem inconvenientes este processo que propus, não
só porque demora a abertura da exposição, mas porque não permite que facilmente se adicionem objectos, integrando a descrição deles nas suas
respectivas classes.
Esta última imperfeição atenuar-se-ia porém imprimindo
tantos suplementos ao catálogo quantos se reconhecessem necessários e,
para que o visitante soubesse onde estavam descritos esses objectos,
seria cada suplemento impresso em
papel de cor diversa da do catálogo e, na indicação escrita
acompanhando cada objecto exposto a que alude o primeiro
artigo, empregar-se-iam cartões de cor igual à das folhas do suplemento referentes àqueles objectos. Os que quisessem aproveitar o
catálogo para estudos ulteriores, nele escreveriam as indicações que
julgassem úteis em ordem a seguir uma classificação que, de resto,
poderia ser publicada pouco antes de encerrada a exposição e quando ela estivesse completa.
Demais convém observar que as classificações, em casos como aquele de
que se trata, não são fáceis e podem variar de muitas maneiras,
conforme o ponto de vista que se adopte. Assim, o sr. ADOLFO COELHO,
para a exposição etnográfica portuguesa que projecta realizar em 1897 em
Lisboa, estabeleceu uma classificação que se compõe de quatro ramos
principais,
a terra, o homem, a história e a vida hodierna. Cada um destes ramos se
divide em várias classes, seis para o primeiro, duas para o segundo,
três para a história e quatro para o último ramo. Por ser o mais
complexo de todos o que se ocupa da vida actual, as classes indicadas,
que designa pelos nomes de formas da vida prática, artística, religiosa
e especulativa, dividem-se em várias subclasses; cada uma das quais, por seu turno, se subdivide noutras ramificações,
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257 /
observando o autor que o mesmo objecto pode figurar em mais de uma
divisão, segundo o modo como se encarar, assim como sucede noutras
classificações.
Isto posto, justificada está a classificação que adoptei e que vai
mencionada no primeiro capítulo deste estudo. Com
efeito, a ria de Aveiro pode ser considerada como centro de pesca tanto
marítima como fluvial e, neste último caso, de espécies de água doce e de
água salgada. A produção de moliço é uma das mais importantes, senão a
mais importante
dela, já pelo número de barcos que emprega, já pela sua influência no
desenvolvimento agrícola de toda esta região, estendendo-se ainda a
bastantes quilómetros para além da zona alagada. O sal é também uma das
indústrias que consente uma vida relativamente desafogada a uma pequena
parte da população operária de Ílhavo e de Aveiro. A cultura
do junco estende-se a toda a ria e é importantíssima na economia rural.
As indústrias diversas e os modelos de casas constituem documentos
etnográficos interessantíssimos e que ajudam a conhecer de tal maneira
os habitantes desta região que não podiam ser desprezados, quando se
pretende dar notícia completa do que é a ria de Aveiro. A plantação das
dunas e os documentos gráficos, que formam o sétimo e oitavo capítulos
do programa que propus, estão por si sós justificados; quase que se
referem a trabalhos oficiais, alguns pouco conhecidos e outros que nunca
passaram das repartições, mas que é preciso que se mostrem para se avaliar a
soma de trabalho dispendido por aqueles que têm aqui exercido cargos
públicos e que, conforme escrevi em carta já citada, mandados para aqui
em comissão de serviço e não
tendo interesse algum que aqui os prenda, procuram dedicadamente e
quanto lho permitem os moldes burocráticos em
que se pode exercer a sua actividade, promover o bem estar e o progresso
desta terra, cônscios tão somente da verdade daquelas palavras que um
dos nossos mais distintos homens de letras insere em um seu recente
livro: «É pela arte que o génio de cada raça se patenteia, que a
autonomia nacional de cada povo se revela na sua autonomia mental e se
afirma
não só pela sua especial compreensão da natureza da vida e do universo
mas pelo trabalho colectivo da comunidade na
literatura, na arquitectura, na música, na pintura, na indústria e no
comércio.»
IV
Há quem afirme que em
Portugal as artes decorativas não têm desenvolvimento, porque o país não
oferece assuntos que fixar em painéis ou estátuas.
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258 /
Pondo de parte os trajes de Viana do Castelo e da Maia que, pela sua garridice, podem parecer um pouco de ópera cómica, as
povoações do litoral dão margem a quadros interessantes quer com
largos horizontes, com céus de tonalidades variadíssimas, quer
perspectivas planas extensíssimas na ria de Aveiro, quer quadros de
género de uma grande originalidade. Fases há da vida marítima que dariam
margem a pinturas e esculturas de primeira ordem. O arrasto de uma rede de
pesca, por exemplo, o trabalho de deitar o barco ao mar, o lançar uma
funda a uma rede em riscos de se perder, as arrematações do pescado e do
transporte, a lavagem da sardinha, a espera dos barcos mercanteis sobre
a Ponte de S. Gonçalo e às Pirâmides e muitas outras fases da faina da pesca, constituem assuntos para muitos quadros bem
caracteristicamente portugueses e com grande sobriedade nas cores dos
trajes.
Do mesmo modo, as romarias e
as procissões da Senhora
da Saúde, do S. Paio e da Senhora das Areias, com o destaque das opas
sobre o areal batido pelo sol, rodeando as imagens pequeninas em
andores que parecem destinados a crianças, forneceriam ensejo para o estudo das tonalidades do claro, não menos interessante do que os tons
negros dos quadros de Rembrandt e que, nas mãos de um pintor de talento, produziriam
intensamente a sensação cálida das Glaneuses de MILLET.
Longe iria se tentasse desenvolver este assunto, mas a
enumeração, que acaba de ler-se, na sua própria aridez, demonstra o
grande contingente de assuntos que a ria de Aveiro e o
litoral são capazes de fornecer aos artistas que visitem esta região.
Não são contudo apenas os pintores ou os escultores que acharão aqui
fontes de inspiração. Também os literatos encontrariam no viver destes
povos muito que dizer, sem buscarem as suas inspirações nos volumes que,
a três francos e cinquenta, se recebem de Paris. Como prova do que poderiam fazer
os
novos, vivendo pacatamente em Aveiro ou estudando, com não menos recato
em Coimbra, mas preferindo apresentarem-se literariamente a falar de prazeres
que não gozaram, de champanhe que não beberam, de comoçôes que não
sentiram, de quartier Breda que não frequentaram, vem de molde um
trecho de um livro recente do sr. BARÃO DE CADORO. Trata-se de
descrever as últimas fases do arrasto de uma rede de pesca:
. . . .
. . . . . . . . .
. . . . . . . . .
. . . . . . . . .
. . . . . . . . .
. .
− Um esforço supremo e estava salvo o lanço!
− Valia dois contos de reis! assegurava um negociante de sardinha,
um avisado mercantel.
− Ó ... ó... ó... Vá, riba, riba, riba. Vá! Vá! Vá! gritavam os arrais já enrouquecidos de tanto berrar para incitar a companha.
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259 /
− ó... ó... ó... Vá, riba, riba, riba. Vá! Vá! Vá!
Mas bois e pescadores retesavam os
músculos, davam uma passada e paravam sem poder mais, enterrando-se na areia que lhes falseava o
ponto de apoio.
− Eh! raios do diabo! Puxa, puxa, puxa!
− Vá riba, riba, riba. Eche! Eche!
A estes gritos incitadores, homens e bois avançavam uma migalha e
paravam outra vez sustidos pelo despropositado peso do saco que parecia
um ventre enorme de baleia agitada por convulsivo tremor(1).
Outro exemplo, no campo da poesia, não deixa de vir a propósito.
É uma descrição, de uma fidelidade notável e
de uma singeleza encantadora, devida ao sr. dr. SANCHES DA
GAMA:
Nos milhos verdes há maré cheia,
Nos milhos verdes há praia mar,
Densa folhagem, que se encadeia,
Em leves ondas, a ondular.
Depois das ondas esmeraldinas
Surgem, mais longe, brancas, de cal,
Tendas de neve, entre as salinas,
Para as campanhas do Ideal.
E além, na Ria, da outra banda,
Vogam de manso, por entre as motas
Pequenos barcos de vela panda,
Serenamente, como gaivotas.
De um modo estranho, vago, indistinto,
Aonde a vista pode alcançar,
Diviso as casas de São Jacinto,
Sobre as areias, junto do mar
(2).
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260 /
Um conto de ALEXANDRE DA CONCEIÇÃO(3), referente à viagem de urna
enviada desde Aveiro até Lisboa, tripulada apenas por um arrais, é
também um exemplo digno de ser apontado para demonstração do que fica
dito, em que se pretende evidenciar apenas o muito que pode esperar-se de uma
tentativa como a da exposição projectada para tornar conhecida a ria de
Aveiro, tanto sob o ponto de vista dos interesses materiais, como ainda
encarando-a pelo prisma da arte.
V
Passarei agora a dar conta dos trabalhos da comissão
designada no primeiro capítulo desta notícia.
Convinha, em primeiro lugar, procurar obter subsídios que fizessem face
às despesas a efectuar e, ao mesmo tempo, angariar as boas vontades e o
auxílio de todos quantos poderiam auxiliar este empreendimento. Nestes
termos, dirigiram-se já ofícios às Câmaras municipais de Águeda, Albergaria-a-Velha, Aveiro, Cantanhede (a quem foi anexado o
concelho de Mira), Estarreja, Oliveira de Azeméis, Ovar e Vagos, a todos
os deputados eleitos pelo distrito de Aveiro.
/
261 /
[Vol. XlII -
N.º 52 - 1947]
aos ministros do reino, fazenda, marinha e obras públicas,
ao presidente da comissão executiva do centenário da descoberta da Índia e a muitos outros cavalheiros, que têm
prestado serviços a esta região ou que, pela sua posição
oficial, podem auxiliar os intuitos da comissão, que resolveu,
para poder preparar-se convenientemente, que a exposição, que se
projecta, se realize por ocasião da feira de Março, em
que aflui muita gente a Aveiro e onde, decerto, concorrerão
tantos visitantes como se ela tivesse lugar em Setembro,
conforme propus, para aproveitar a afluência das pessoas que
se encontram nas praias de Espinho, Granja e Figueira da
Foz. Grande é o trabalho que está a cargo da comissão promotora da
exposição; mas, além da esperança que a anima de mostrar a vasta região
que se denomina a ria de Aveiro de um modo condigno, tem a incitá-la a
magnitude do empreendimento a que se abalançou e a persuasão, em
que está, de que ele será o início de progressos e melhoramentos de toda a ordem para esta região, demonstrando
ainda o quanto bem merece e o muito que faz para ser útil
essa simpática agremiação, onde predominam os novos, que se denomina
Ginásio Aveirense.
MELO DE MATOS
Engenheiro
Dissemos acima que no mesmo ano de
1896 em que MELO DE MATOS corporizava,
no programa agora reimpresso, o pensamento do Barão de Cadoro, a quem se
deve a ideia da exposição em Aveiro, publicava também
o professor ADOLFO COELHO a sua sistematização de Etnografia Portuguesa, com destino, igualmente, a uma exposição, a realizar
no ano imediato em Lisboa, integrada nas
solenizações do centenário do descobrimento do caminho
marítimo para a Índia.
De facto assim foi, e MELO DE MATOS, na justificação que
faz do seu programa, neste opúsculo Exposição alusiva à
Ria de Aveiro, mostra ter conhecimento do trabalho de
ADOLFO COELHO (Pág. 256 da presente reimpressão); antes,
porém, MELO DE MATOS publicara, no "Campeão das Províncias", uma carta dirigida ao Barão de Cadoro, como
também referimos já, que tem a data de 22 de Maio, e não
alude, como seria natural e depois fez, ao plano de ADOLFO
COELHO; para se ajuizar da originalidade do esquema proposto para a Ria em relação à sistematização de ADOLFO
COELHO, muito interessava determinar-se com exactidão se
aquela carta é anterior à publicação de Lisboa; já hoje
não será multo fácil averiguá-lo, em virtude da carência
/
262 /
de data no opúsculo de ADOLFO COELHO, que apenas diz ter
sido impresso em 1896; a forma, porém, como MELO DE MATOS se lhe refere
na sua segunda publicação, onde o relatório é muito mais extenso do
que na carta inicial, e onde houve, manifestamente, a preocupação de se
justificar, leva-nos a inclinar-nos para a prioridade do projecto aveirense, o que não é, evidentemente, destituído de interesse
local.
Para melhor e com mais independência se poder apreciar o merecimento e a
originalidade do trabalho de MELO DE MATOS, aqui se junta a reprodução
da carta de 22 de Maio, na parte que pode interessar.
CARTA DIRIGIDA AO IL.MO E EX.MO SR. BARÃO
DE CADORO ACERCA DE UMA EXPOSIÇÃO
ALUSIVA À RIA DE AVEIRO
Ill.mo e Ex.mo Sr. Barão de Cadoro.
Meu respeitável amigo.
Encarregado por V. Ex.ª da honrosa missão de organizar um programa para uma exposição dos produtos da ria de Aveiro, venho
hoje dar conta dos trabalhos de que V. Ex.ª se dignou incumbir-me.
Devia escusar-me desta empresa, não para fugir a trabalho, mas porque,
medindo as minhas forças, as encontro inferiores ao cometimento.
Lembrando-me, porém, que dizendo alguma coisa do que me ocorre acerca
das indústrias da ria, do modo de viver dos seus habitantes, tentando
coordenar as suas indústrias caseiras, os documentos iconográficos
estampados nas proas dos barcos moliceiros, que sulcam estas extensas
águas, fixando as formas, talvez em breve perdidas, das embarcações
desta região, as velas que as movem, as redes com que exploram a fauna
das suas águas, as casas em que se abrigam aqueles que vivem aqui,
traria o meu contingente revelador das actividades das povoações com
quem, por dever de cargo, estou em contacto. Por isso, permita-me V. Ex.ª
que lhe signifique o meu pensar acerca de uma exposição alusiva à ria
de Aveiro e regiões circun-vizinhas e do que disser facilmente se deduz o programa dos
trabalhos a empreender.
Antes, porém, de tratar desse assunto, parece-me conveniente fixar a data da abertura da exposição e indicar os fins
que ela tem em vista.
/ 263 /
Um dos principais intuitos desta empresa deve ser tornar conhecida a ria de Aveiro àqueles que só a avistam ao
passar na linha férrea ou àqueles que apenas a conhecem de
nome. Para isso a exposição deve ser tão sugestiva, tão
intuitiva quanto possível. Torna-se indispensável que qualquer visitante que a percorra, ainda distraidamente, tenha em resumo uma ideia geral da ria, dos seus habitantes, dos costumes
deles, dos produtos industriais e artísticos da região.
Por isso os modelos em relevo, os desenhos, os mapas, as estampas e as fotografias devem ser prodigamente expostos
a par dos objectos. Uma breve indicação escrita do nome do objecto, dos seus usos, do seu modo de fabricação, da
sua proveniência, da importância dele e uma indicação bibliográfica acompanharão cada objecto, modelo ou estampa, de
modo que possa, com a simples leitura dos cartazes, qualquer pessoa ficar com uma ideia clara do que viu.
Um catálogo descritivo e ilustrado profusamente completará a instrução que o visitante colherá da exposição; mas é preciso que o catálogo esteja completamente Impresso
quando se abrir a exposição, para que não suceda o mesmo
que na maior parte dos nossos certames artísticos ou industriais em que
os catálogos só aparecem muitos meses depois
de encerrada a exposição. É certo que este método demora a abertura das
exposições e mal consente que se adicionem
objectos aos expostos. Pouco provável é que haja lacunas naquela que
vai tentar-se; mas, a darem-se, imprimir-se-iam
tantos suplementos ao catálogo quantos fossem precisos e
esses suplementos seriam vendidos ao mesmo tempo que se
expusessem os objectos a eles referentes. Para que o visitante soubesse que os objectos se não achavam descritos no
catálogo, mas em suplemento, os cartazes, de que acima se
fala, seriam escritos em papel de cor igual àquela em que
fosse impresso o suplemento.
A compra do catálogo juntamente com o bilhete de
admissão, seria obrigatória, pois que só uma grande tiragem
do catálogo e a venda dele intensamente conseguiriam cobrir-lhe as despesas de impressão, que devem ser avultadas.
Resta por isso, antes de terminar esta revista das quesiões prévias que sugere a
exposição, determinar a época mais
alada para a realização dela.
A V. Ex.ª que nos seus livros tem procurado tornar
conhecida esta região e que abre o mais recente de todos com a descrição da saída de uma rede de sardinha na Costa Nova,
mostrando assim que fonte de poesia desprezada se encontra no nosso viver nacional e
indicando por esta forma aos jovens literatos daqui o sacrilégio que cometem «dando-nos uma
poética exótica de climas nevoentos, anti-meridional», conforme diz o sr. RAMALHO ORTIGÃO, quando lhes seria fácil, se
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264 /
descessem ao viver dos pobres e dos humildes, continuar uma escola
portuguesa de poesia, cuja manifestação moderna
teve realização em JOÃO DE DEUS, a V. Ex.ª escusado se torna ponderar o
quanto é útil que à exposição, que se projecta, concorra o maior número
de visitantes e por isso é da máxima conveniência que ela se efectue
quando a estação balnear bat son plein em Espinho, na Granja e na Figueira, para que os forasteiros, que
concorrem àquelas praias, venham,
que mais não seja por desfastio, observar, embora dentro de umas salas,
este recanto de Portugal aprendendo a amá-lo como aqueles que, em
comissão de serviço, são para aqui mandados e que, não tendo interesse
algum que aqui os prenda, procuram dedicadamente e quanto lho permitem
os moldes burocráticos em que se pode exercer a sua actividade, promover
o bem estar e o progresso desta terra, cônscios tão somente da verdade
daquelas palavras que um dos nossos mais distintos homens de letras
insere em um seu recente livro: «É pela arte que o génio de cada raça se
patenteia, que a autonomia nacional de cada povo se revela na sua
autonomia mental e se afirma não só pela sua especial compreensão da
natureza, da vida e do universo, mas pelo trabalho colectivo da
comunidade, na literatura, na arquitectura, na música. na pintura, na
indústria e no comércio».
Ora a ria de Aveiro e
especialmente as populações de Ílhavo e da Murtosa conservam ainda «com uma energia prodigiosa que
sobrevive a todos os desdens e a todas as opressões que a esmagam» as
tradições de muitas indústrias caseiras, muitos costumes locais, muitos
trajes característicos, que não devem perder-se e que é preciso que
honremos, porque constituem o nosso património nacional, a expressão da
nossa vida artística popular.
Do que, acabo de escrever é fácil concluir qual o programa da exposição,
que se pretende realizar, e por isso, sem entrar em justificações do que
vai seguir-se, apenas farei a relação do que se me afigura dever-se
fazer.
Segue-se, a rematar a carta que fica transcrita, o plano que MELO DE
MATOS propunha para a exposição. Omitimo-lo aqui em virtude de não
fazer diferença sensível do que, posteriormente, por ele foi incluído
no opúsculo Exposição alusiva à Ria de Aveiro e que já acima vai reimpresso; só a memória justificativa sofreu alterações, como se vê, em
superfície e em profundidade; explicamos o facto pela circunstância, que
presumimos ter-se dado, de, após a publicação da Carta dirigida ao
Barão de Cadoro, aparecer a importante sistematização etnográfica
de ADOLFO COELHO, que suplantava quanto até à data se havia escrito,
/ 265 / apesar de na literatura etnográfica portuguesa de então figurar já a
importante tentativa de TEÓFILO BRAGA (O Povo
português nos seus costumes, crenças e tradições), de 1886, obra preciosa pela quantidade de materiais que recolheu,
mas, na verdade, de arquitectura discutível.
Nela se encontram registadas umas quantas observações da vida popular aveirense, como era de esperar.
MELO DE MATOS terá então justificado o esquema por
ele proposto como sendo o mais racional para o fim em
vista, diligenciando até certo ponto mostrar a sua concordância com a metódica apresentada por ADOLFO COELHO.
Portugal dispõe presentemente, como é sabido, duma classificação etnográfica bastante completa e metodicamente organizada, que ao paciente labor e à notável
competência de LEITE DE VASCONCELOS se ficou devendo; deixa,
evidentemente, a perder de vista todas as anteriores tentativas de sistematização etnográfica, pois, além do seu
valor intrínseco, beneficia, como bem se compreende, da
própria época em que apareceu e dos trabalhos que a precederam. Prestando-lhe, muito embora, a homenagem da
nossa grande admiração pela monumentalidade da obra, nem por isso
logramos esquecer o substancioso e claro
ensaio de ADOLFO COELHO, nem, a dentro do seu restrito
.âmbito, o esquema simples e prático de MELO DE MATOS
para a documentação etnográfica da Ria de Aveiro.
É curioso notar que o engenheiro MELO DE MATOS não
se apoia em autor algum da nossa literatura etnográfica,
citando apenas ADOLFO COELHO à segunda vez na ampliação do seu projecto de exposição primeiramente apresentado
na Carta, parecendo ele próprio querer significar que produziu obra inteiramente pessoal, o que se nos afigura
muito de aceitar.
LEITE DE VASCONCELOS conheceu a carta, que, a pág. 22 do 2.º volume da sua
Etnografia portuguesa, classifica,
parcimoniosamente, como sempre usava em referências a
trabalhos alheios, de mui curiosa; não fala, porém, na
subsequente Exposição alusiva à Ria de Aveiro, objecto
principal desta reimpressão, o que nos leva a crer que
não terá conhecido o opúsculo.
É, na verdade, como acima dizemos, espécie de extrema
raridade, e na Revista Florestal, de que é separata, facilmente
terá passado despercebido ao comum dos leitores.
A exposição não se realizou, como, aliás, se não realizou também a que ADOLFO COELHO projectava para Lisboa em 1897.
Aveiro firmara, com a grande exposição distrital
de 1882, promovida pelo Grémio Moderno, e com a de Arte Religiosa, de 1895, no colégio de Santa Joana (de cuja
/ 266 /
comissão participou justamente MELO DE MATOS), posição tão eminente
nessa modalidade cultural, que neste lapso de mais de cinco décadas se
não obliterou ainda; a exposição etnográfica teria sido o mais digno
coroamento que a grande geração aveirense poderia arquitectar para o seu
notabilíssimo esforço realizador, e a melhor homenagem
a esta região sem par. O programa de MELO DE MATOS aí fica a
documentá-lo eloquentemente.
Executá-lo hoje, tal como há 50 anos foi projectado, exaltaria o seu
elevado pensamento original, memorando os homens e a mentalidade da
época, e dignificaria os aveirenses de nossos dias que tornassem
realidade o formosíssimo e instrutivo espectáculo.
Seriam duas gerações que se completavam: no serviço duma ideia, na
dedicação a uma causa, na merecida homenagem a uma região distinta de
todas as mais.
A. G. DA ROCHA MADAHIL
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