A legitimidade da propriedade particular em terrenos alagados pela Ria de Aveiro, vol. XII, pp. 179-208

A LEGITIMIDADE DA PROPRIEDADE

PARTICULAR EM TERRENOS ALAGADOS

PELA RIA DE AVEIRO

                                                      SENHOR!

OS abaixo assinados, proprietários de terrenos acessíveis às marés, na ria de Aveiro, terrenos que desde longínqua data pagam contribuição predial e estão inscritos nas matrizes desde que elas foram criadas, e cuja posse foi obtida por legítimas compras ou por herança, achando-se o domínio particular documentado em muitos deles por títulos autênticos de origem remotíssima, vêm respeitosamente, e com o intuito de se pouparem a futuros pleitos, despesas e inquietações de espírito, solicitar a atenção de Vossa Majestade para o objecto que seguidamente passam a expor.

Há na ria de Aveiro desde tempos imemoriais um regime de propriedade particular com o qual a legislação moderna, posterior a 1866, parece estar em desacordo. Desde remotos séculos, que por motivo de doações régias, um grande número de terrenos que constituem a parte alternativamente coberta e descoberta pelas marés, e mesmo alguns que as marés nunca descobrem, passaram ao domínio particular. Nos tombos das casas nobres que primitivamente ou sucessivamente os possuíram, foram descritos miudamente com as quatro
confrontações, sendo as extremas, umas vezes outros prédios particulares, outras vezes esteiros, valas ou regueiras, outras finalmente algum dos grossos veios de água funda a que na ria se dá o nome de Cales. Em algumas destas descrições a minuciosidade chega ao ponto da medição exacta das extremas, expressa em varas, trabalho aliás difícil em terrenos sempre lamacentos e muitas vezes cobertos de água. E, como
/ 180 / é sabido, estes tombos não eram simples escritos de carácter particular, mas sim livros de arquivo de documentos autênticos oficiais, lavrados em vistoria, sob a presidência de um juiz de direito, de nomeação régia e expressa para esse fim.

Tendo isto em vista, poder-se-á agora, depois de decorridos séculos sobre a época em que as concessões foram feitas, afirmar em nome do direito que esses terrenos, cuja posse por particulares tem sido mantida, não constituem propriedade privada por serem abrangidos pelo colo do máximo preamar das águas vivas (artigo 1.º, n.º 1.º dó decreto de 1 de Dezembro de 1892), quando, além de tudo, a referida posse tem sido até estes últimos tempos corroborada e sustentada por uma série de actos todos acordes, uns dimanados directamente dos reis no tempo do antigo regime; outros, posteriormente, dimanados do Estado, outros finalmente, provenientes das autoridades locais, tanto judiciais como administrativas?

Para mais fácil compreensão porém do que temos a expor, permita-nos Vossa Majestade que digamos algumas palavras sopre a formação geológica da ria, e sobre o modo por que os terrenos dela têm sido sucessivamente aproveitados pela actividade do homem.

Primitivamente esta parte do litoral da península, que se estende desde Ovar até Mira, estava longe de ter a configuração que actualmente apresenta. Entre estes dois pontos extremos uma grande reentrância da costa se oferecia aberta às águas do oceano, que deste modo não só iam banhar directamente os relevos abruptos que ainda hoje se vêem junto a Vagos, Ílhavo, Aveiro, Esgueira, etc., mas penetravam mais e muito mais no interior das terras pelos numerosos vales que convergiam para esta espécie de baía. Pela acção combinada das correntes oceânicas, e dos ventos do largo, um cordão litoral de dunas a pouco e pouco se formou, rectificando a costa entre os dois pontos extremos acima referidos, e transformando em bacia interior o que pouco antes fazia parte do oceano. Mas, consecutivamente a este trabalho natural da deposição de aluviões marinhas, e tão depressa as águas da bacia adquiriram a suficiente quietação, um outro trabalho da natureza principiou a ter lugar o da deposição das aluviões fluviais. As águas extremamente sedimentosas dos diversos regatos e ribeiros e nomeadamente as do rio Vouga, as quais, umas e outras, se vazavam até então directamente no Atlântico, onde os seus detritos se dispersavam pela acção das correntes marítimas, passando depois a vazar-se nesta larga bacia de águas relativamente quietas, encontraram de pronto as mais favoráveis condições para a decantação dos seus sedimentos; a pouco e pouco se / 181 / foi fazendo a exalção dos fundos, se foram preenchendo as anfractuosidades dos vales, e, sobretudo na zona de vazão do Vouga, os deltas foram aparecendo à flor da água em grande extensão e em grande número. Mas, pelo próprio mecanismo da sua formação, tais terrenos não podiam atingir nunca o nível máximo das águas. O facto é geral e está de há muito bem explanado pela Geologia. Nesta bacia em que, pela sua grande extensão, a amplitude das marés é pequeníssima, pois é em média de 0,75 metros, e onde pela mesma razão pouco se faz sentir a acção das cheias, a elevação dos terrenos acima das águas de meia enchente não podia ser grande. A parte mais alta dos deltas da ria acha-se em regra 20 a 30 centímetros abaixo dos preamares de águas vivas de equinócio. E esta a cota a que ficaram as planícies horizontais que constituem o que nós com mais ou menos propriedade poderemos chamar o plató dos deltas; mas daí estes depósitos de aluvião prolongam-se a distância, em plano muito suavemente inclinado, até desaparecerem definitivamente no seio das águas de máximo baixamar. Devemos porém observar que os referidos depósitos, os quais naturalmente tiveram princípio na mesma época, não têm tido todos a mesma marcha: uns subiram apenas até próximo do nível do preamar de águas mortas, e, ou estacionaram, ou pouco têm progredido; outros ao contrário, tendo atingido a cota máxima, têm sucessivamente perdido a coroa ou plató, reduzindo-se dessa maneira às condições de nível dos antecedentes. Digamos porém, o que para o nosso ponto de vista é importante consignar, que estes dois factos, de interrupção e retrocesso do trabalho da natureza, foram determinados por uma causa não natural, a abertura, a que se procedeu no princípio deste século, da barra actual, 10 quilómetros ao norte da antiga, e que, situada quase em frente dos deltas do Vouga, originou nas águas que os banham um regime de correntes diverso do anterior.

Consideremos agora os terrenos de aluvião acima descritos sob o ponto de vista da sua produtividade e das suas aptidões industriais.

Colocados, como vimos, a cotas de nível diversas, a saber: uns banhados só pelas marés equinociais (1.º grupo), ouros banhados 12 a 15 dias em cada mês pelas marés de águas vivas (2.º grupo), outros banhados mais ou menos por todas as marés, mas só descobrindo nos baixamares de quadratura, que, ao contrário do que sucede no mar, são dentro da ria os mais pronunciados (3.º grupo), outros finalmente sempre submersos, embora em regra cobertos por pequena espessura de água (4.º grupo), estes diversos terrenos que assim acabamos de classificar e que, com excepção dos do 4.º grupo, se designam em Aveiro pelo nome genérico / 182 / de Praias, acham-se nitidamente diferenciados pelas suas aptidões de produção ou de exploração.

Os do 1.º grupo constituem as chamadas Praias de junco, por ser o junco a planta que neles se dá com maior vantagem. O junco tem uma grande importância agrícola como adubo das terras depois de ter servido para camas de gado. O que atinge maior altura é também utilizado para a confecção de cordas e de esteiras. Alguns proprietários têm dado tão grande apreço à cultura desta planta, que têm criado juncais artificialmente, em terrenos a uma cota de nível inferior, construindo para isso diques submersíveis providos de comportas reguladoras do excesso das águas das marés.

Os terrenos do 2.º grupo são, como tipo de cultura, ocupados pelas chamadas Praias de bajunça, planta que carece das condições de irrigação que lhe proporcionam estes terrenos pela cota a que se acham. E também grande o emprego que a agricultura faz da bajunça para camas de gado, e consecutivamente para adubo das terras, mas o seu maior valor provém-lhe de ser utilizada na indústria salineira para cobertura dos montes de sal.

Os terrenos do 3.º grupo constituem o que localmente tem o nome de Praias de moliço, sendo a palavra moliço o termo genérico com que se designam as diversas variedades de algas que eles produzem banhados pelas marés. Incontestavelmente são estes os mais interessantes de todos os terrenos da ria. São-no pela sua produção natural, o moliço, e são-o ainda mais por ser nos terrenos a esta cota que se estabelecem as marinhas de sal. Como é sabido,

«para que se possam construir marinhas nas praias, é indispensável que estas fiquem descobertas na baixamar, e completamente alagadas na preamar: não tendo este meio termo de nível é impossível escoarem e tomarem água naturalmente quando transformadas em marinhas». (Museu Tecnológico, pág. 53 Monografia sobre as marinhas de Aveiro, pelo Dr. MANUEL DA MAIA ALCOFORADO, 1877).

O moliço é empregado exclusivamente no adubo das terras, e o seu comércio, bem como a indústria da sua colheita, são hoje consideráveis. Pode porém afirmar-se sem receio de errar, que primitivamente, isto é, ao tempo em que se fizeram as concessões a que acima nos referimos, estes terrenos que hoje se denominam praias de moliço, tinham um valor insignificante. Os maus caminhos e a falta de estradas tornavam impossível o transporte deste produto a grandes distâncias, e em consequência, o seu emprego limitava-se a uma estreita cinta de terrenos nas margens da ria. Hoje ao contrário é levado ao longe, não só em carros por numerosas estradas, mas até por um caminho de ferro / 183 / estabelecido expressamente para este fim entre o Areão e Mira. As ditas concessões eram pois recebidas e guardadas pelos respectivos proprietários, não tanto pelo interesse em possuir terrenos produtores de moliço, como e principalmente pelo de ficarem habilitados a construir salinas. Se desta segunda vantagem fizeram uso bom ou mau, di-lo o desenvolvimento que em Aveiro tomou desde séculos a indústria do sal. No ano 959 já havia salinas na ria de Aveiro, como se verifica pelas seguintes palavras do célebre testamento de Muma Dona, datado do referido ano: «TERRAS IN ALAUARIO ET SALINAS QUE IBIDEM COMPARAVIMUS» (Diplomata et Chartae dos Portugaliae Monumenta Historica, pág.46). Desde então, ou de época mais recuada ainda, os terrenos deste 3.º grupo, terrenos que, como dissemos, são diariamente cobertos pelas marés, foram a pouco e pouco, e à medida que os meios económicos dos seus proprietários o permitiam, sendo adaptados e aplicados ao estabelecimento de salinas. Assim, devido à actividade e iniciativa dos particulares, foi crescendo o número destes estabelecimentos, e a tal ponto que, já no reinado do rei D. Afonso IV, atingia a cifra de 500. Mas, com o andar dos tempos, factos de ordem diversa tinham de alterar este movimento, imprimindo-lhe alternativas de retrocesso e de avanço, que se têm continuado até aos nossos dias.

A fortuna da indústria salineira está e tem estado sempre na rigorosa dependência da situação mais ou menos próspera ou precária do canal da barra. São inteiramente elucidativas a este respeito as considerações escritas há 19 anos pelo malogrado Dr. MAIA ALCOFORADO na monografia já citada:

«Se ela (a barra), diz o referido autor a pág. 49, se conserva larga e profundamente rasgada, as águas do Vouga, as do Antuã e as dos rios e ribeiros afluentes têm saída fácil, e no fluxo a ria enche-se de água do mar com o necessário grau de salsugem, para que o seu clorureto de sódio possa ser extraído por meio das marinhas. Se, pelo contrário, a corrente da barra é diminuta, as águas doces conservam-se estagnadas na grande bala, e, predominando sobre as salgadas, tornam inteiramente impossível qualquer exploração salífera. Dada esta hipótese, as marinhas são abandonadas; o comércio marítimo paraliza-se por falta de vias de comunicação; e a ria transforma-se num paul vasto e infecto. As febres paludosas desenvolvem-se neste imenso pântano, sempre enxarcado de água esverdinhada e putrefacta: as intermitentes assaltam as povoações ribeirinhas e dizimam às centenas as vidas de seus habitantes. Estes factos têm-se repetido infelizmente algumas vezes: apontarei apenas um, porque deu ele origem aos trabalhos mais importantes que se têm feito no porto de Aveiro. No meado do século XVII principiou a barra a deslocar-se para o sul, na direcção de Mira, onde chegou por fim, demorando-se por este modo afastada da linha perpendicular à foz daquele rio mais de 15 quilómetros.
. . . . . . . . . . . . .. A indústria salineira, e o comércio marítimo,
/ 184 / que tinham feito de Aveiro uma povoação florescente, começaram então a decair de um modo tal que depois de meado o século passado estavam quase abandonados. As marinhas, que se estenderam outrora desde Vagos e desde a Costa Nova até Estarreja, em número superior a 500, ficaram reduzidas apenas a 178.»

Vê-se pois que o mau estado da barra, todas as vezes que se repete, tem sobre a indústria salineira uma acção duplamente desastrosa: não só o sal deixa de ter saída em consequência da suspensão da navegação marítima, e o preço baixa consideravelmente, mas, sendo a quantidade de água do mar entrada pela barra insuficiente para dar às águas de toda a zona salineira da ria a salsugem necessária para o trabalho de salinação, um certo número de marinhas não pode fazer sal, outras o fazem em quantidade não suficientemente remuneradora. Nessas condições é preferível aos proprietários explorar de novo nos respectivos terrenos a produção de moliço: destroem os muros de vedação da salina, para que as águas das marés possam entrar livremente, e bem assim os barcos destinados a apanhar e a transportar o dito moliço. Estas alternativas, digamos mesmo crises, da indústria salineira de Aveiro não são só dos tempos antigos; em maior ou menor escala, mesmo no presente século, tiveram lugar mais de uma vez. Sirva de exemplo a marinha hoje denominada «Garra» situada entre a cale de Marta e a cale do Espinheiro, que duas vezes durante este século deixou de ser marinha para voltar a ser praia de moliço. Neste estado pertencia em 1844 à Santa Casa da Misericórdia que, por escritura feita nas notas do tabelião João António de Morais, a aforou a João José Fernandes a 28 de fevereiro do referido ano, e este último, algum tempo depois, mandando reedificar os diques, a transformou mais uma vez em salina. Os casos análogos sucedidos em outras praias da ria contam-se por centenas, o que se torna evidente pela simples consideração das cifras acima transcritas: na crise do século passado o número de marinhas desceu de 500 a 178. Muitas foram depois reconstruídas, mas o número de 500 não tornou mais a ser atingido. Actualmente existem 325. No primeiro ardor de construir marinhas muitas se fizeram em lugares menos convenientes, umas por muito distanciadas da barra, e portanto fora da zona de águas suficientemente salgadas, outras por má qualidade, ou falta de espessura, de solo argiloso.

Por estas razões, e porque ao mesmo tempo os moliços iam adquirindo valor crescente, um grande número dessas marinhas não se reconstruiu mais, e os terrenos em que existiam são explorados pelos respectivos proprietários como praias de produzir moliço. Em outras os diques foram conservados, e o terreno explorado na produção de junco e de bajunça. / 185 /

Do simples estudo que acabamos de fazer destes terrenos denominados praias, decorreria desde já, e mesmo na ausência de quaisquer documentos, a prova evidente da existência na ria de propriedade particular coberta diariamente pelas marés. Se o facto da destruição dos diques de uma marinha fizesse perder ao terreno ocupado por essa marinha o seu carácter de propriedade particular, é evidente que nunca proprietário algum destruiria semelhantes diques. E nem de outra forma podia ser, visto que, inversamente, o direito de construir marinhas se tem fundado sempre no facto anterior da posse do terreno no estado de praia. Mas há mais: Quando se constroem os diques ou muros exteriores de uma marinha, é de uso e costume, desde tempos imemoriais, fazer esses muros, não pelas linhas extremas do terreno que pertence ao proprietário, mas sim por dentro dessas linhas, ficando por fora uma dupla faixa de praia da largura total de 3,50 metros aproximadamente, a qual, na terminologia técnica, tem o nome de pé e baldeação. O é uma tira de praia mais estreita que serve de base ou apoio exterior ao muro, e a baldeação, de largura dupla do pé, é a faixa donde saem as lamas, para a construção ou reparação do mesmo muro. Na linguagem dos marnotos há até para significar este facto uma expressão consagrada: «Cada muro tem por fora 5 palmos de pé e 10 de baldeação». O Dr. MAIA ALCOFORADO, quando descreve a construção das marinhas (lug. cit., pág. 56) define-a: «uma faixa de terreno de 3,50 m. de largura, que se deixa em volta da marinha, com o único fim de tirar daí as lamas precisas para a construção».

Mas, na demonstração da existência deste regime especial de propriedade, desnecessário se nos torna insistir com provas deste género, quando para o mesmo fim não faltam documentos autênticos, antigos e modernos. Teremos adiante ocasião de os passar em revista.

Para concluir porém as nossas considerações sobre os terrenos da ria resta-nos ainda falar do 4.º grupo, isto é, daqueles que por se acharem a uma cota de nível inferior, nunca são descobertos pelas marés.

A posse por particulares dos terrenos deste grupo funda-se igualmente em razões e direitos que não podem ser refutados, pois que se acha documentada por títulos antigos: convindo notar porém, que nem todos devem à mesma origem a cota de nível a que actualmente se encontram, e, sob este ponto de vista, é essencial distinguir três casos:

1.º terrenos que já eram inferiores às marés ao tempo da sua descrição em tombo, como nitidamente se demonstra pelo texto dos respectivos documentos; / 186 /

2.º terrenos que eram altos quando foram descritos, mas que com o andar dos tempos foram a pouco e pouco sendo escavados e rebaixados pelo embate das águas, ou rasgados pela força das correntes;

canais de navegação que os proprietários abriram em terreno seu, e para serviço dos seus prédios.

Em todos estes três casos o proprietário explora nos respectivos terrenos os moliços que eles produzem.

Fundados no princípio da jurisprudência de todos os tempos e de todos os países, segundo o qual «a lei civil não tem efeito retroactivo», princípio consignado na nossa Carta Constitucional (art. 145.º § 2.º), e no nosso Código Civil (art. 8.º), os abaixo assinados entenderam sempre que quaisquer códigos ou decretos, promulgados recentemente, não podiam fazer cair direitos de propriedade que têm séculos de existência. De ânimo tranquilo viram o n.º 2.º do artigo 380.º do Código Civil, que não é senão uma regra, a que o artigo 8.º estabelece nitidamente a excepção. E de facto o regime de propriedade particular, a que nos referimos, não só continuou a ser acatado pelo Estado e pelas autoridades locais, como até o Estado, por actos seus, mais radicou ainda o espírito de confiança no referido regime, mandando proceder, por diversas vezes, e anos depois da promulgação do Código Civil, a vendas nacionais de terrenos que as marés cobrem e descobrem, e mesmo dalguns que estão sempre submersos.

Vieram depois a carta de lei de 6 de Março de 1884 organizando os serviços hidráulicos, o decreto de 2 de Outubro de 1886 regulamentando esses serviços, e por último o decreto ditatorial de 1 de Dezembro de 1892, regulamentado pelo decreto de 19 do mesmo mês.

Não só o regime policial criado por esses decretos contém excessos que embaraçam fortemente os proprietários na introdução de melhoramentos e reparações nos seus prédios, mas, o que é mais, no penúltimo atribui-se categoricamente o carácter de públicos aos terrenos que são atingidos pelo colo do máximo preamar. É certo que isto não pode invalidar o artigo fundamental da Carta, mas é igualmente evidente que os funcionários da repartição hidráulica, cuja missão não é apreciar ou cotejar leis, tendo as suas atribuições traçadas num regulamento, em que não há artigo algum que expressamente lhes ordene que acatem os direitos de terceiros, são sistematicamente levados a pretender dar-lhe cumprimento, e daí se tem originado uma série de conflitos, em que os ditos funcionários, embora vejam a justiça da causa do proprietário, nem sempre lha reconhecem oficialmente, e, quando o fazem, é com o espírito timorato de quem tem diante de si o espectro do regulamento. Mas o que sobretudo / 187 / emociona e inquieta os proprietários, é a oposição que, em nome do mesmo regulamento, lhes é sempre levantada pela repartição hidráulica junto dos tribunais.

Deve porém dizer-se que esta situação anormal dos proprietários de terrenos da ria de Aveiro era de prever.

O mesmo que lhes está sucedendo aconteceu igualmente em França aos proprietários de terrenos análogos, sobretudo de 1840 a 1866, quando se quis dar aplicação às medidas que
acabavam de ser introduzidas na lei sobre a delimitação entre o domínio público e o domínio particular. Aí também o desassossego e incómodos dos proprietários não foram pequenos; mas conseguiram que se lhes fizesse justiça. As pretensões de reivindicação por parte dos funcionários da marinha e obras públicas em favor do domínio público, foram mandadas suspender pelo Governo, porque «não tinham ressalvado os direitos de terceiros».

A história das discussões, processos e debates que se levantaram em França até se chegar à resolução desta questão, é lucidamente exposta em uma interessante monografia publicada em Paris em 1887, escrita por M. LÉON AUCOC, membro do Instituto, e antigo presidente de secção no Conselho de Estado, e intitulada «De la Délimitation du rivage de la mer et de l'embouchure des fleuves et rivières». Como membro do Tribunal dos Conflitos teve este jurisconsulto de tomar parte nos referidos debates, quando se tratou de estatuir sobre a forma do processo, e sobre os casos especiais em que o proprietário, não podendo ser mantido na posse, tem de ser indemnizado pelo Estado. O referido autor é pois uma autoridade neste assunto, e, como tal, não podemos eximir-nos a transcrever aqui alguns períodos do seu trabalho, que dispensam todo o comentário, e têm, para a solução da questão entre nós, um valor que as nossas palavras não poderiam ter.

Diz a pág. 1:

«A variedade dos factos que se produzem sobre a extensão considerável das costas da França, e que provém da natureza e da configuração dos terrenos em que os rios e ribeiras vêm lançar-se no mar, tem conduzido a soluções que, em certos casos, parecem contraditórias.»

E adiante, a pág. 8:

«Trata-se aqui de uma questão especial a certos departamentos do meio-dia da França. Existem sobre as costas do Mediterrâneo, nomeadamente nas proximidades de Narbone, de Cette, de Aigues-Mortes, das embocaduras do Ródano e de Marselha, bacias salgadas, umas muito consideráveis e que formam pequenos mares interiores, como a bacia de Berre e a bacia de Thau, outras de uma extensão muito menor, mas muito / 188 / mais numerosas. Estas bacias alimentam frequentemente salinas em que se fabrica, todos os anos, uma quantidade considerável de sal. Muitos destes estabelecimentos têm uma origem muito antiga, por exemplo as salinas de Peccais, perto de Aigues-Mortes, que fizeram parte do domínio real.

Quando se estuda de perto esta questão, como nós o fizemos, numa memória apresentada à Academia das Ciências Morais e Políticas em 1882, reconhece-se que a maior parte das bacias salgadas, cujo número excede setenta, não está em comunicação directa e permanente com o mar, que está por consequência fora do domínio público, que esta excepção se aplica mesmo a bacias que comunicam com o mar, e que os direitos dos particulares e dos municípios que são proprietários delas, direitos justificados por circunstâncias físicas e históricas inteiramente especiais, fundados sobre títulos regulares; sobre decisões da justiça, foram reconhecidos pela administração da marinha e pela administração dos domínios representando o Estado.

Esta situação jurídica bastante anormal das bacias salgadas explica-se sobretudo pela sua origem e pela sua constituição física.

O litoral do golfo de Lyon sofreu, em épocas muito antigas, profundas transformações que criaram, em muitos pontos, uma dupla margem e formaram em consequência bacias salgadas.»


Descreve em seguida a marcha dos fenómenos geológicos na formação destas bacias, e a acção das aluviões do Ródano na constituição dos deltas do mesmo rio, fenómenos essencialmente análogos aos que determinaram a formação da ria de Aveiro, e dos terrenos que dela emergem; e, depois de ter exposto que, pelo direito comum, as bacias salgadas que não comunicam com o mar, não fazem parte do domínio público, acrescenta, (pág. 10):

«Mas a propriedade privada pode estender-se também, em circunstâncias especiais, a bacias salgadas que comunicam ainda com o mar e que são, ao menos em parte, navegáveis, assim como aos canais que lhes estão ligados. Não foi sem uma luta enérgica e prolongada que os proprietários destas bacias e canais acabaram por fazer reconhecer a validade dos títulos que justificavam uma derrogação às regras gerais sobre o domínio público.»

E mais adiante (pág. 11):

«De mais sabe-se que, para a França, o princípio da imprescritibilidade do domínio público não é considerado como entrado definitivamente na legislação senão a partir do édito de Moulins, de Fevereiro de 1566, e que as concessões anteriores a essa época são incontestavelmente válidas.

Pelo seu lado, o conselho de Estado (conseil d'État) declarou para as bacias salgadas, como o tinha feito para as outras partes do domínio público, que o princípio da inviolabilidade das vendas de bens nacionais, provenientes do domínio da coroa, do clero e dos emigrados, proclamado pela carta de 1814, / 189 / não permitia contestar a alienação feita em 1812 de uma bacia do antigo leito do Ródano, situada na ilha de Camargue, apesar de ser uma bacia salgada em comunicação directa com o mar.

Depois da promulgação do decreto de 21 de Fevereiro de 1852, que tem força de lei, a administração da marinha julgava ter encontrado um meio seguro para fazer entrar no domínio público as bacias e canais salgados navegáveis. Sobre as ordens do ministro, muitos prefeitos tinham expedido, em execução do § 2.º do artigo 2.º desse decreto, declarações de dominialidade fundadas em que, pela sua natureza, estas águas não podiam ser objecto de um direito de propriedade privada. Nós discutiremos adiante o alcance do texto em que se fundava a administração. Basta dizer por agora que as determinações dos prefeitos foram todas anuladas por excesso de poderes, pelo motivo de que tinham, delimitando o mar, invadido o poder reservado ao chefe do Estado, e que além disto não tinham ressalvado os direitos de terceiros.

A administração da marinha terminou a luta pela verificação geral dos títulos que se lhe opunham.

Assim os proprietários de bacias salgadas, de canais, de pescarias, sem abandonar o direito de recorrer ainda, se necessário fosse, aos tribunais, não hesitaram em produzir os seus títulos, e ao cabo de um exame aprofundado feito em comum pela administração da marinha e a administração dos domínios, o ministro da marinha expediu a 30 de Julho de 1864, uma decisão colectiva, completada em alguns pontos por duas decisões do 1.º de Abril e de 30 de Dezembro de 1865, pouco conhecida porque não recebeu publicidade, que reconhece formalmente os direitos de um grande número de proprietários de bacias salgadas, de canais, de planos de água e de pescarias.

A notificação dirigida aos interessados consigna que, depois do exame dos títulos produzidos, a administração da marinha não levanta mais reivindicação alguma a respeito das suas propriedades.»


É também importante o que o mesmo autor relata (pág. 23) sobre o modo por que se procedeu com os proprietários marginais do rio Seudre:

«Uma das decisões mais notáveis neste género (para estabelecer a delimitação entre as jurisdições marítima e fluvial) é o decreto de 19 de abril de 1852, lavrado a respeito do rio Seudre. (Charente-Inférieure), o qual fez remontar o mar até à eclusa de Riberou a 22 quilómetros a montante da foz, apesar das reclamações dos ribeirinhos que alegavam que esta delimitação atribuiria à praia do mar mais de 18.000 parcelas cadastradas cobertas pelas águas do rio no momento das marés, das quais eles eram proprietários em virtude de títulos autênticos ou de uma transmissão hereditária. Na verdade, a administração recuou perante as dificuldades que arrastaria a execução desta decisão.

A história merece ser contada em detalhe, e é um relatório de ministro da marinha inserto no Bulletin Officiel em 1866 que nos fornece os elementos desta exposição.

Desde um tempo muito antigo já, os terrenos situados por fora das marinhas de sal, nas margens do rio Seudre e que se chamam sartières, têm sido em parte consagrados ao estabelecimento de ostreiras; ......................................... / 190 /

Ainda que estes terrenos fossem cobertos pelas águas das marés vivas, e que se não pudessem cercar de diques insubmersíveis sem destruir a indústria a que estavam consagrados, nem por isso deixaram de ser considerados, no que respeita a um certo número de parcelas, como propriedades privadas; concessões tinham sido feitas anteriormente a 1789, e os tribunais, chamados a pronunciar-se, reconheceram a validade dos títulos invocados.

Mas pouco a pouco, tendo alguns destes estabelecimentos invadido uma parte do próprio leito do Seudre, a administração entendeu dever fazer cessar um estado de coisas prejudicial à navegação.

Uma portaria de 5 de Outubro de 1841 prescreveu uma delimitação tendo por objecto determinar por um lado o que importava deixar livre de todo o obstáculo, de todo o estabelecimento privado, enfim o que devia ser considerado como pertencente ao domínio público; pelo outro o que podia sem inconveniente entrar no domínio útil do Estado, salvo bem entendido os direitos que os ribeirinhos poderiam fazer valer.

Esta portaria, no seu artigo 3.º, diz que o leito do Seudre e de seus afluentes, e os caminhos necessários para sirgadoiro dos barcos, serão limitados por uma linha traçada sobre as aluviões (relais) de cada margem, a 10 metros pelo menos da linha em que o solo deixa de estar actualmente coberto de ervas.

Tal era o estado das coisas quando o decreto de 19 de Abril de 1852 fixou o limite entre o mar e o Seudre na eclusa de Riberou.

Apesar da reserva dos direitos de terceiros inserta no decreto de delimitação, os ribeirinhos consideraram que a sua situação tinha mudado, que os terrenos cobertos pela maior vaga de Março, com mais forte razão aqueles que eram cobertos pelas marés ordinárias ou pelas altas marés de cada mês, podiam ser reivindicados pela administração como uma dependência do domínio público imprescritivel e inalienáveI. Eles puderam recear que a sua posse, mesmo muito antiga, fosse contestada, se não estivesse fundada em títulos anteriores a 1566 ou em vendas nacionais. Numerosas petições, apoiadas pelo conselho geral da Charente-lnférieure, requereram uma decisão nova. O governo, sem revogar expressamente o decreto de 19 de Abril de 1852, anulou-lhe os efeitos. Um decreto de 26 de Maio de 1866 ordenou que os terrenos das margens do Seudre, situados por fora dos limites traçados em execução do artigo 3.º da portaria de 6 de Outubro de 1841, seriam entregues à administração dos domínios sob reserva dos direitos de terceiros.

Conseguintemente, em lugar de se acharem em face do domínio público, os ribeirinhos não tinham já por adversário senão o domínio do Estado. A prescrição ordinária podia ser invocada. Os seus títulos e a sua posse tinham já um outro valor.

Esta decisão, benévola a respeito de certos ribeirinhos, estritamente justa a respeito de um certo número deles, era talvez inspirada por uma sentença do conselho de Estado no contencioso dada a 27 de Maio de 1863 que tinha anulado  ....................... »

 

Assim procedeu o governo em França, e assim esperam os signatários que se proceda em Portugal a respeito da ria de Aveiro, onde a propriedade privada não está menos bem documentada, como vamos verificar. / 191 /

*

O domínio e posse por particulares de terrenos acessíveis às marés na ria de Aveiro, é anterior à fundação da monarquia, como provámos na citação acima feita do testamento de Muma Dona, mas na colecção já citada, em que este testamento vem transcrito, outros documentos se encontram de data pouco posterior, referentes igualmente a terrenos salgados da ria: assim o testamento de páginas 247, datado de 1057, e um outro documento transcrito a páginas 334 e datado de 1077.

É pois tão afastada de nós a época em que alguns, ou talvez mesmo muitos desses terrenos, foram entregues ao domínio particular, que a prova documental das primitivas doações reais se perde na noite dos tempos.

Mas há felizmente doações feitas mais tarde, depois de constituído o reino, das quais o texto é conhecido, e para demonstrar o que pretendemos, bastar-nos-á citar apenas duas.

A primeira, a mais antiga em data, é o testamento do rei D. Sancho I, pelo qual foi legada ou antes doada, a vila de Esgueira à infanta rainha D. Teresa, sua filha.

São conhecidas as contendas que houve entre D. Afonso II e suas irmãs, por causa desse testamento, que não ficaram cabalmente terminadas ao tempo da morte do soberano. Coube a D. Sancho II findá-las, e por uma concordata celebrada entre ele e suas tias, na era de 1261, entre muitas outras estipulações, se diz o seguinte: «ET POST MORTEM NATURALEM REGINÆ DOMINÆ THARASlÆE ET REGINÆ DOMINÆ BLANCÆ, ISGUEIRA DEBET REMANERE MONASTERIO DE LORBANO PRO HEREDITATE».

Finalmente D. Teresa, em Março da era de 1272, depois de se achar completa senhora da sua herança, fez doação ao referido mosteiro de Lorvão da sua vila de Esgueira, segundo o que fora estipulado na Carta de concórdia com el-rei D. Sancho, seu sobrinho.

Por Carta de D. Dinis, da era de 3 de Abril de 1347, foi mandado proceder à demarcação entre Esgueira e o lugar de Sá, demarcação que se executou metendo-se marcos, na presença do procurador do convento, a 24 de Maio do mesmo ano.

No foral reformado por D. Manuel, em 1514, se declara que «as marinhas são do mosteiro, e quanto às lezírias em que o Conselho não estava ainda de todo concordado com o mosteiro, não podia determinar, por tanto use cada um do seu direito e o que for justo se decidirá». Correndo em seguida questão entre o dr. Francisco Mendes, por causa das ilhas do Fusil, Perrexil e Trovisco (que as freiras lhe / 192 / haviam emprazado) e o Concelho, este, examinados o foral e documentos, por todos foi dito: «que considerando a verdade neste caso como as laziras todas eram do dito Mosteiro e nam do Concelho, eles aceptavam e recebiam em bem a dita sentença e de todo o contheudo nela eram contentes e por elo nam queriam demanda com ho dito mosteiro e que doje em diante prometiam reconhecer em todo o tempo ao dito mosteiro. . . . . . . . . . . . . . . . por mero senhorio das ditas ilhas». (Aprovado o contrato por Carta régia de 18 de Junho de 1517).

Para bem se saber quantos e quais eram os terrenos da ria compreendidos nesta doação, é preciso consultar os livros de tombo do mosteiro de Lorvão, mas a eles se referem também muitos outros documentos das chancelarias reais. Nos ditos livros encontram-se descritos os seguintes: ilha de Beiró, Gaga, Gramatais, Testada, Garças, Sepa, Esteiro Covo, Madalhoal, Pedras, Comendador, Arêa, lezíria de Marco António, praia de Palha-Cana, Praia da Galega, ilha da Matança, ilha dos Ovos e Muacha do Mestre de Campo, ilhote dos Amorosos, praia dos Amorosos, ínsua das Muachas, Muachas do Roque, ilha do Ronca, ilha do Fusil, do Perrexil e ilha do Trovisco ou do Privado.

Todos estes terrenos foram sucessivamente dados de aforamento pelo Mosteiro a diversos indivíduos, e o número actual dos seus proprietários é considerável. Com excepção dos lugares onde se fizeram marinhas e de um trato de terreno na parte central da ilha Testada, tudo o mais, não só nesse prédio como nos restantes, é nas vivas de equinócio completamente coberto pelos preamares. Compreendem-se nesses prédios terrenos dos quatro grupos que acima descrevemos, e alguns, como por exemplo a praia de Palha-Cana, são exclusivamente formados por terrenos que as marés cobrem todos os dias. E tudo isto se tira bem a claro, não só pelas confrontações dos ditos prédios exaradas nos livros de tombo, do Mosteiro, como pelos contratos de emprazamentos feitos pelo mesmo Mosteiro, em alguns dos quais se diz que o enfiteuta irá tornando susceptíveis de cultura as praias, que «ainda eram alagadiças», e em outros são estipuladas condições para o caso de se fazerem salinas; e estas, como dissemos, não podiam nem podem fazer-se senão em terrenos diariamente cobertos e descobertos pelas marés.

Os proprietários destes terrenos possuem como título de propriedade as certidões do tombo; mas os originais, bem como a história completa do que deixamos dito sobre os prédios compreendidos nesta doação, podem ser estudados nos numerosos livros do Mosteiro de Lorvão, e outros das Chancelarias Reais, que se acham guardados no Real Arquivo da Torre do Tombo. / 193 / [Vol. XII - N.º 47 - 1946]

A segunda doação a qua acima nos referimos, é da era de 1448. Por Carta ou Alvará de 10 de Dezembro desse ano, foi doado pelo Infante D. Pedro à Câmara Municipal de Aveiro o prédio denominado Ilha de Sama o qual em um dos livros de tombo da mesma Câmara (fl. 21 verso) se acha inscrito nos termos seguintes:

«Número oito. Item: Mais tem a dita Vila e concelho uma Insua ou Ilha que chama Sama que parte do Suão pelo Esteiro que chamam puxadouro e da travessia com mar e carreira que vai para a dita Vila, e do Norte donde se chama o Torrão parte com o mar e da banda da sul parte com marinhas e aljubés do Mestre Tomás e de Fernão Gonçalves e Estêvão Jorge e tem de comprido de Norte ao sul 1.356 varas de medir e de largo do Suão a Travessia pelo meio tem 640 varas, a qual morre da banda do norte, onde chamam o Torrão em agudo. Desta Ilha de Sama fez mercê primeiramente a esta Vila o Infante D. Pedro por sua Carta ou Alvará feito a 10 de Dezembro de 1448 que está transladado no Livro Velho de purgaminho a folhas 36 e demandou-a o Mestre a esta Vila, foi a Vila absolta por sentença do Corregedor Francisco Fernandes no Livro delas a folhas 313, e neste Livro das Sentenças a folhas 315 está também treslado em público da Carta ou Alvarã do Infante D. Pedro.»

No mesmo livro de tombo, por um termo de reconhecimento inscrito a fl. 41, datado de 13 de Fevereiro de 1768, se vê que a Ilha de Sama foi dada de aforamento pela Câmara, sendo enfiteutas a essa data D. Joana Filipa Aurélia Teles de Novais e João da Fonseca da Cunha de Pinho Teixeira.

No ano de 1843, precedendo autorização da Câmara, datada de 2 de Agosto, os enfiteutas fizeram doação ou trespasse gratuito do domínio útil do prédio ao Dr. José Joaquim de Sousa Monteiro por escritura pública da mesma data.

Por sentença de 30 de Maio de 1888 do Juiz de Direito da Comarca, a qual passou em julgado, foi a Ilha de Sama, em acção ordinária, requerida pelo enfiteuta contra o Estado, mandada demarcar na conformidade das confrontações e medições constantes da certidão do tombo. Para compreensão porém da importância deste facto, e do espírito da doação em que ele se fundou, é-nos preciso dizer que dentro dos limites da mesma doação se acha compreendida uma grande extensão de terrenos de praia que as marés cobrem e descobrem todos os dias, e outra extensão também grande de terrenos que estão sempre submersos.

Cremos, pois, achar-se claramente demonstrado, que este regime de propriedade particular não foi capciosamente inventado pelos proprietários, que a propriedade dos terrenos acessíveis às marés, foi legitimamente adquirida; e que o foi num tempo em que nas leis não havia disposição que os incluísse no domínio publico. / 194 /

Mas, somos obrigados a ir mais longe, porque nos resta ainda considerar os numerosos actos com que, nos tempos modernos, o Estado, quer por si, quer pelas autoridades locais, tem conservado o mesmo estado de coisas e mantido no espírito dos proprietários a plena confiança no dito regime.

1.º As matrizes da contribuição predial. O estudo das matrizes da contribuição predial das freguesias ribeiririnhas da ria é de tal modo importante, que bastaria só por si para resolver a questão. A matriz de cada uma destas freguesias acha-se dividida em duas partes, a primeira das quais compreende os terrenos lavradios, os pinhais, as povoações; a segunda, sob a designação de zona alagada diz respeito aos terrenos da ria, a saber: praias de junco, praias de bajunça, praias de moliço e marinhas.

Todas as vezes que se têm feito novas matrizes uma comissão especial de louvados tem sido nomeada para proceder aos trabalhos da zona alagada.

É impossível reproduzir aqui todos os elementos valiosos que decorrem da leitura destas matrizes, mas bastará certamente dizer, a respeito de uma qualquer das freguesias do concelho de Aveiro, o número de prédios inscritos, excluindo as marinhas, e o teor da descrição dalguns.

Examinemos por exemplo a última matriz da freguesia de Ílhavo, feita de 1886 a 1888 e posta em execução desde 1894: Existem aí inscritos sob a designação de praias 332 prédios, e, entre estes, 130 são praias de junco, e 54 são praias de moliço. Para se julgar porém da importância destes terrenos na economia agrícola dos respectivos proprietários, bastará notar que o número destes é muito superior ao dos prédios inscritos: assim por exemplo, o prédio inscrito na matriz sob o n.º 10.843 é uma praia de moliço pouco extensa, mas que pertence, em partes iguais, a 18 proprietários.

O exame das matrizes das outras freguesias ribeirinhas, tais como Nossa Senhora da Glória, Vera-Cruz, Esgueira, Cacia, conduz a resultados idênticos.

A praia de Palha-Cana e a praia da Galega que, como vimos, entram no número dos prédios doados pela Infanta D. Teresa ao mosteiro de Lorvão, acham-se inscritas na matriz da freguesia de Esgueira nos termos seguintes:

«N.º 4326. Uma praia denominada "Palha-Cana», que produz moliço. Pertencia em 1866 a Simão José Pinto Guimarães, da Quinta dos Lagos. Em 1875 passoú para Luís Nunes Freire, de Cacia.

N.º 4325. llhote denominado o da «Galega», que se compõe de cabeços de junco e Praia que produz moliço. Pertencia em 1866 a Adrião Pereira Forjaz de Sampaio./ 195 /


Destes dois prédios o primeiro é todos os dias completamente coberto pelos preamares e o segundo é-o também na sua quase totalidade.

Para melhor concluirmos sobre a importância dos factos que acabamos de passar em revista, tomaremos a liberdade de transcrever aqui alguns períodos de uma memória intitulada La propriété foncière, inserta na Revue de Paris de 1 de Janeiro de 1895, firmada pelo comissário especial do governo francês junto aos congressos universais da exposição de Chicago de 1893, M. DE CHASSELOUG-LAUBAT, e escrita sob a impressão dos princípios que, a respeito da propriedade imobiliária, foram no respectivo Congresso, proclamados como doutrina definitivamente assente:

«Pode dizer-se que as questões de propriedade imobiliária tratadas em Chicago eram de uma extrema importância para o futuro da América e da humanidade. Tivemos a felicidade de constatar que não houve discussão a não ser sobre o melhor método a empregar para garantir ao indivíduo uma tranquila e completa posse dos seus bens imobiliários, e para facilitar a pronta realização dos empréstimos hipotecários em condições equitativas, oferecendo a maior segurança possível ao mutuante e ao mutuário. Ninguém ousou levantar a voz contra as duas ideias fundamentais do direito inglês: a posse individual absoluta da propriedade imobiliária, e a inviolabilidade da habitação pelos agentes dos poderes públicos. Todos os delegados americanos foram de acordo em considerar estes dois princípios como as verdadeiras bases da sua República e da sua grandeza, das suas liberdades individuais, dos seus direitos políticos, da civilização americana.

 . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . .  . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .

É no antigo direito feudal alemão, no acto da investidura, que todos estão de acordo em procurar a origem dos livros de matriz modernos: com efeito, a investidura supõe a priori que aquele que a dá tem a plena posse da terra. O acto de investidura não pode ser feito senão pelos poderes públicos, ou pelo menos com o seu assentimento, visto que no antigo direito germânico o soberano, hoje o Estado, possui o domínio eminente da terra.

. . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . .  . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .

Foi precisamente a ideia da posse pelo Estado do domínio eminente da terra que conduziu à matrícula da propriedade imobiliária e à criação de livros de matriz, constituindo títulos absolutos de propriedade garantidos pelo Estado.»


Em Portugal não se atribui de ordinário valor às certidões da matriz predial para resolver questões de propriedade levadas aos tribunais, e infelizmente assim tem de continuar a ser nos pleitos entre particulares, enquanto os actos de transmissão de propriedade por venda ou por herança não forem por força de lei seguidos imediatamente da respectiva alteração no livro da matriz. Mas, se assim é nas questões entre particulares e quando se trata de saber a quem pertence um determinado imóvel, as circunstâncias são inteiramente
/ 196 / diversas nas que se levantam entre um particular e o Estado, quer este pleiteie em seu nome, quer em nome do domínio público. O Estado é quem faz as matrizes. Se nelas incluiu ou conservou um determinado trato de terreno, considerou-o propriedade particular; e em matéria tão grave, num país em que há uma lei sobre expropriações tão escrupulosamente respeitadora dos direitos da propriedade privada, o Estado não pode repudiar amanhã aquilo que fez ontem, muito menos ainda o que já se achava feito há dezenas ou centenas de anos. A matriz predial representa um pacto entre o Estado e os proprietários, em que de parte a parte se reconhecem direitos e deveres. Por intermédio dos seus funcionários, que elaboram e firmam as matrizes, administrador do concelho ou conservador do registo predial, delegado do procurador régio, escrivão de Fazenda e louvados, o Estado reconhece o domínio do proprietário. Findo o prazo das reclamações o proprietário reconhece ao Estado o direito de lhe cobrar anualmente a contribuição respectiva.

2.º A contribuição de registo. Além dá contribuição predial os prédios acessíveis às marés pagam, e pagaram sempre desde remotos tempos, contribuição de registo ou sisa, o que é fácil provar nas repartições de Fazenda e em numerosas escrituras deste século e dos anteriores.

3.º O regulamento de 25 de Agosto de 1881 sobre a contribuição predial. O n.º 9 do artigo 1.º deste regulamento diz que não pagam contribuição, «por espaço de 10 anos contados da 1.ª cultura, os baldios, os pauis, as charnecas e os terrenos tirados às marés.

Por outras palavras: A lei não só permite que se tirem terrenos às marés, como até gratifica os indivíduos que o fizerem, dispensando-os por espaço de 10 anos de pagar contribuição predial.

Mas, perguntar-se-á: Que terrenos são estes. que podem ser tirados às marés, se todos os terrenos que as marés cobrem pertencem ao Domínio Público, e este é inalienável e imprescritivel? Como pode o Estado permitir que eles sejam utilizados como propriedade particular, a não ser que já anteriormente tenham esse carácter? Mas estas dúvidas, são decerto esclarecidas no número seguinte.

4.º Licenças para construção de marinhas. Até à publicação do decreto de 17 de Outubro de 1865 a construção de marinhas na ria de Aveiro não era precedida de licença. O proprietário de uma praia, nas condições de servir para o / 197 / estabelecimento de uma marinha, procedia às obras de vedação sem lhe ser feita esta exigência, semelhantemente ao que sucede com quaisquer obras que se façam em terrenos rurais.

Uma simples participação, ordinariamente verbal, era feita na capitania do porto e na direcção das obras da barra, para evitar desacordo sobre os alinhamentos exteriores. Determinou porém o dito decreto (art. 1.º):

«É expressamente proibido edificar, explorar pedreiras, fazer aterros ou desaterros e enfim proceder a quaisquer obras nos portos, nas margens e braços dos rios navegáveis e nas costas do mar, até onde chegar o colo do praiamar de águas vivas, sem prévia licença do governo, pela secretaria de estado dos negócios da marinha e ultramar.»

A propósito do texto deste artigo mais uma vez podia perguntar-se, a que terrenos abrangidos pelo colo do praiamar se refere a lei, a não ser aos que estivessem anteriormente na posse de particulares. Mas os factos subsequentes esclarecem bem esta dúvida. Desde então continuaram a fazer-se marinhas. A diferença tem consistido simplesmente no trabalho e tempo gasto pelos proprietários até conseguirem a licença, visto que lhes é exigido que o requerimento seja acompanhado da planta do terreno e das obras que projectam, e documentado com os títulos de propriedade por onde provem que o terreno lhes pertence. Os títulos são examinados, e o terreno vistoriado e cotejado com os títulos, e em seguida, precedendo a respectiva informação, o ministro passa o despacho, concedendo a licença.

Desta maneira se fizeram:

Em 1872, em praia pertencente a António José Lopes, na margem direita da cale do Ouro, 3 marinhas, cuja construção foi autorizada por portaria do Ministério da Marinha de 14 de Agosto de 1872.

Em 1881, em praia pertencente a João José dos Santos Machado e outros, situada na margem direita da cale do Espinheiro, a marinha denominada Judia, autorizada também pelo Ministério da Marinha.

Em 1887, em praia que faz parte do prédio denominado Ilha de Monte Farinha, foram construídas duas marinhas, uma sobre a margem direita da cale de Marta, outra sobre .a margem esquerda da cale do Ouro, obra autorizada pelo Ministério das Obras Públicas, sobre informação do engenheiro, o sr. Adolfo Ferreira Loureiro, ao tempo director da 2.ª circunscrição hidráulica.

Em 1893, em praia pertencente a José Pereira Júnior, situada junto à malhada de Ílhavo, foi feita uma outra marinha, obra autorizada muito anteriormente por portaria do Ministério da Marinha de 7 de Agosto de 1872. / 198 /

No ano findo de 1896 uma praia pertencente a Jorge de Faria e Melo, da extensão de 4 hectares, acaba de ser vedada com diques e anexada à marinha denominada Singela, obra autorizada pelo Sr. Ministro das Obras Públicas sobre informação do engenheiro director da circunscrição hidráulica, o sr. João Tomás da Costa.

Estes diversos factos são por si terminantes, pois que cada um deles é na essência um acto de reconhecimento feito pelo Estado do domínio e posse por particulares de terrenos que as marés cobrem e descobrem diariamente. Mas além destes há muitos outros.

5.º Vendas nacionais Por Carta de arrematação de 11 de Junho de 1874, António da Rocha e Francisco José da Silva Vagueiro arremataram no Ministério da Fazenda, pela quantia de 4:0018000 réis, em conformidade com a lei de 28 de Agosto de 1869, uma praia que produz moliço, situada na ria de Aveiro, denominada a praia de Lavacos, e confrontada: do nascente com praia de João José dos Santos Machado, do norte com a Ilha de Monte Farinha, do sul com a cale da Vila, e do poente com a cale de Ovar.

Como esclarecimento temos simplesmente de acrescentar que a dita praia de Lavacos é formada de terrenos que são todos os dias completamente cobertos pelas marés e de que uma grande parte está sempre submersa.

Em 1875 foi vendida nas mesmas condições pelo Estado a praia Ferreira, outro prédio de produzir moliço e que é todos os dias completamente alagado pelas marés. O anúncio para venda desta praia (Diário do Governo de 22 de Dezembro de 1874, artigo Desamortização, lista 1322, n.º 8) diz:

«Uma praia que foi marinha, denominada a Ferreira, próxima da Ilha dos Ovos: confronta do sul com a cale do Ouro, do nascente com praias dos herdeiros de José Maria Rangel de Quadros, do norte com o esteirinho da Ilha dos Ovos e do poente com a Ilha da Gaivotinha.»

No Diário do Governo de 23 de Janeiro de 1875, foi anunciada por ordem do Governo a venda de outra praia da ria de Aveiro nos seguintes termos:

«Um baldio, terreno alagadiço, que produz moliço, onde chamam a Privada, que parte do norte com a cale do Espinheiro, do sul com a praia de Joaquim Pereira e outros, do nascente finda em ponta aguda com a cale da Vila, e do poente com o Visconde de Almeidinha.»

Estes três exemplos de vendas mandadas fazer pelo Estado, são suficiente elucidativos. Em primeiro lugar o Estado reconhece o carácter de propriedade particular às / 199 / praias de moliço e a terrenos que as marés nunca descobrem; em segundo lugar faz igual reconhecimento a respeito doutras praias que confrontam com os terrenos anunciados para venda; em terceiro lugar põe em evidência que, não só se conforma com este regime de propriedade, como até o conserva e amplia.

6.º Expropriação de praias. Acabamos de provar que o Estado tem vendido praias. Como complemento natural segue-se demonstrar que também tem feito a operação inversa.

Por determinação do Ministério das Obras Públicas de fins de Janeiro de 1874, elaborou o engenheiro sr. Silvério Augusto Pereira da Silva, ao tempo director das obras da barra de Aveiro e das do distrito, o seu notável projecto de melhoramentos da mesma barra e respectivo orçamento.

Este projecto, que tem a data de 26 de Fevereiro de 1874, foi aprovado pelo Governo em Abril do mesmo ano, e publicado no 6.º voI. da Revista de Obras Públicas e Minas. Aí se lê, a pág. 255:

«Para a rectificação marginal de que se trata, há a necessidade de expropriar a superfície de 59.500 metros quadrados em terrenos em parte sempre alagados, de uma porção de um viveiro de marinhas e de praia alternadamente descoberta e inundada. Pode para esta expropriação estabelecer-se o preço médio de 30 réis para o metro quadrado.»

E a pág. 259:

«Para a execução desta obra haverá, pois, a expropriar cerca de 45.000 metros quadrados de terreno de praia que poderemos avaliar a razão de 20 réis.»

Este projecto foi, como dizemos acima, aprovado pelo Governo.

7.º Demarcações feitas pela Repartição dos Serviços Hidráulicos. Alguns dos conflitos levantados entre a Repartição hidráulica e os proprietários de terrenos acessíveis às marés, têm sido resolvidos de acordo entre as duas partes, acatando a Repartição hidráulica os direitos dos proprietários e demarcando-lhes os terrenos.

Deste género de reconhecimento citaremos apenas dois casos:

Por fora do muro que veda a marinha Falcoeira pelo lado do nascente e entre este muro e o esteiro de Bolhões, existe uma faixa de praia, que é todos os dias banhada pelas marés, e que pertence ao proprietário da mesma marinha. / 200 /

Em 1891 pretendeu a repartição hidráulica exercer actos possessórios na referida praia, originando-se daí um conflito que foi resolvido amigavelmente, sendo a dita praia demarcada no dia 19 de Julho do mesmo ano, na conformidade dos direitos do proprietário, acto de que se lavrou auto e planta, em duplicado, assinados pelo proprietário e pelo engenheiro chefe de secção dos serviços hidráulicos, o sr. José Maria de Melo e Matos.

J unto à marinha Campo Grande existe também uma praia, nas mesmas condições de submersão pelas marés, e que faz parte do dito prédio. Tendo a Repartição hidráulica mandado lá cortar torrão, facto contra que o proprietário protestou, a mesma Repartição lhe reconheceu depois de uma vistoria a sua posse e propriedade, completando-se a demarcação antiga com estacas.

8.º Praias dadas a guarda da Repartição Hidráulica. Prescreve o artigo 153.º do regulamento aprovado por decreto de 2 de Outubro de 1886:

«É permitido a qualquer proprietário cometer às direcções hidráulicas a guarda das suas propriedades, compreendidas dentro da sua respectiva circunscrição, e para este fim requererá ao engenheiro director, que poderá fazer concessão sem prejuízo do serviço a que os mestres e guardas tem a satisfazer, e fixará a retribuição que o proprietário tem de pagar ao respectivo cofre.»

Em virtude deste artigo o proprietário Alberto Ferreira Pinto Basto requereu em 1891 à direcção da 2.ª circunscrição hidráulica para que esta, mediante a retribuição anual que se convencionasse, tomasse a seu cargo a guarda de uma praia de 18:989 metros quadrados, que ele possui à margem do braço da ria que vai ter ao Boco, e que confronta pelo norte, sul e poente com a ria. O requerimento foi deferido nesse mesmo ano, e desde então o prédio tem estado sob a guarda dos empregados dos serviços hidráulicos. Para completa compreensão, porém, da importância deste facto, convém notar que o terreno de que se trata é uma praia de produzir moliço, e que, como tal, é todos os dias coberto e descoberto pelas marés.

9.º Regulamento para a exploração das ostreiras. Este regulamento, que foi aprovado por decreto de 1 de Outubro de 1895, diz:

«Art. 12.º Ninguém poderá montar temporária ou permanentemente estabelecimentos ostreícolas nos terrenos públicos, particulares ou comuns, sem prévia autorização do governo. / 201 /

Art. 41.º A adaptação de terrenos do domínio particular a estabelecimentos ostreícolas fica dependente de uma licença do conselho do almirantado, que só a poderá conceder observadas as disposições do art. 10.º e seus parágrafos.»


Estes dois artigos de lei reconhecem terminantemente a existência de terrenos do domínio particular, acessíveis às marés. A ostreicultura é uma indústria até hoje pouco exercida entre nós, mas, não é preciso ser muito versado nos trabalhos que lhe dizem respeito, para saber que os parques ostreícolas só podem estabelecer-se em terrenos expostos à submersão das marés. Na transcrição que acima fizemos de M. LÉON AUCOC sobre a questão levantada em França, relativamente aos parques de ostras das margens do rio Seudre, já este facto foi consignado nas palavras seguintes do referido autor:

«Ainda que estes terrenos fossem cobertos pelas águas das marés vivas, e que se não pudessem cercar de diques insubmersíveis sem destruir a indústria a que estavam consagrados...»


10.º Sentenças dos tribunais judiciais.
Já expusemos que, por sentença do juízo de direito da comarca de Aveiro, foi no ano de 1888 demarcada a ilha de Sarna e praias alagadas que a circundam; mas os actos judiciais que demonstram a intervenção e julgamento dos tribunais sobre a propriedade particular dos terrenos alagados da ria, são de diversos géneros e em grande número. Os arquivos dos cartórios estão cheios de processos que lhes dizem respeito, e na Conservatória do registo predial da comarca de Aveiro os registos de propriedades acessíveis às marés, lavrados em face de sentenças dos tribunais de 1.ª e 2.ª instância, contam-se por centenas. E não admira que assim seja, se se atentar por um momento em que este regime de propriedade é antiquíssimo, e em que os terrenos a que se refere, produzindo adubos para as terras lavradias, representam na fortuna e economia agrícola dos seus proprietários um papel de importância igual à que têm, para os proprietários agricultores das regiões montanhosas, as propriedades que produzem mato. Sucede pois que, na partilha de heranças, quando entre os imóveis há terrenos de praia, todos os co-herdeiros pretendem ser inteirados neles, resultando daí como consequência a progressiva divisão deste género de propriedade. Como porém a conservação de marcos nestes terrenos não é coisa fácil como nos campos, a partilha não é de ordinário glebária. Cada prédio, embora não dividido glebariamente, pertence pois em regra a mais de um proprietário, e às vezes a muitos, como no exemplo que acima citámos da matriz de Ílhavo, em que o n.º 10:843 pertence a 18 consortes. / 202 /

Daí provém que o mesmo prédio entra mais repetidas em inventários orfanológicos, e nestes, escusado é dizer, intervém como curador dos órfãos menores o agente do Ministério Público.

Desta maneira, o Ministério Público acompanha e sanciona os actos de partilhas, em que, muitas e muitas vezes, a legítima dos menores fica constituída em parte, ou mesmo no todo, por terrenos acessíveis às marés, e por último, não o esqueçamos, estes actos são julgados e aprovados pela sentença do juiz de direito.

Os casos de venda de praias, em hasta pública, determinada por sentença dos tribunais judiciais, na liquidação de heranças ou execuções por dívidas, são também frequentes, e o mesmo pode dizer-se de vistorias e segundas louvações em inventários, presididas no próprio local dos prédios pelo juiz de direito, com a assistência do agente do Ministério Público.

Terminamos aqui esta extensa série de provas, que poderíamos alongar ainda, se necessário fosse. Com reconhecimento delas já não poderá pôr-se em dúvida que existia na
ria de Aveiro propriedade particular em terrenos acessíveis às marés. E no entretanto, nas informações oficiais escritas, fornecidas pela repartição hidráulica aos tribunais judiciais, este facto é constantemente ocultado.

Deu-se até um sentido novo à palavra Cale, cujo significado é de toda a importância, visto as cales serem no texto dos títulos antigos de propriedade o limite ou confrontação de muitos prédios. Desde tempos imemoriais esta palavra aplica-se em Aveiro a designar certos e determinados veios de água funda por onde seguem as correntes em direcção à barra, e perfeitamente distintos dos terrenos de praia alagadiça que lhes ficam aos lados. Não há pessoa alguma em Aveiro que ignore que isto é assim; e todavia a repartição hidráulica tem afirmado por escrito, em informações remetidas aos tribunais, que «para esta repartição cale é o mesmo que margem ou mota», expressão em que tudo se confunde, sendo para o caso verdadeiramente incompreensível, e pela qual se pretendia, por um processo demasiadamente simples, negar a propriedade particular de terrenos alagados. Por tal forma, o argumento dos proprietários, fundado na antiguidade dos títulos, desapareceria por inteiro, por falta de objecto a que se aplicasse.

Se esta oposição não tem graves consequências no tribunal de 1.ª instância onde os magistrados possuem, pelo conhecimento dos lugares e dos costumes, elementos de sobra para fazerem juízo seguro, não sucede outro tanto no tribunal de 2.ª instância, onde alguns juízes desconhecem / 203 / completamente a ria, e as circunstâncias especiais que fizeram nascer um regime de propriedade que, vistas as informações da repartição hidráulica, se lhes afigura inverosímil. Os proprietários de terrenos acessíveis às marés, apresentados assim, parecem-lhes gente de maus costumes, usurpadores de imaginação exaltada, pressuposto este que muito importa aos proprietários, porque não há questão de propriedade, levantada entre eles e o Estado, que não suba à 2.ª instância e ao Supremo Tribunal, em virtude da lei que prescreve aos delegados do Procurador Régio apelarem sempre das sentenças dadas contra o Estado (N. R. Judiciária, art. 359.º, § 2.º).

De tal forma, os tribunais judiciais tornam-se para os proprietários um recurso que é, pelo menos, moroso e dispendiosíssimo.

A diversos juízes de direito, tanto de 1.ª como de 2.ª instância, temos ouvido afirmar, em face deste estado de coisas, que, para evitar desastres deploráveis na fortuna individual dos proprietários, e sobretudo dos pequenos proprietários (pouco ilustrados para bem instruir os processos e mal providos de meios para os sustentar longamente), se torna indispensável e urgente um acta ou declaração do Governo, que possa servir de base a uma demarcação justa dos particulares com o Estado. E, com efeito, só a entidade do Governo pode ver e julgar com superior critério num assunto em que, além da questão de direito, há a ponderar interesses colectivos da maior importância. Em nome da doutrina das leis dos últimos tempos pretende-se fazer entrar no domínio público os -terrenos acessíveis às marés, mas é bom ter presente ao espírito que, justamente por intermédio da doutrina oposta, é que este vasto paul, formado pelas aluviões do Vouga se tem ido a pouco e pouco transformando num importante centro de actividade industrial.

Propositadamente não fizemos ainda referência a um diploma legislativo de data recente que esclarece nitidamente a questão, vindo provar que o espírito da legislação moderna invocada contra os proprietários é bem diverso da interpretação que neste sentido a repartição hidráulica tem pretendido dar-lhe. Este diploma é o decreto e regulamento de 31 de Dezembro de 1895, que determina as condições em que devem ser feitas as concessões de terrenos acessíveis às marés, para o estabelecimento de viveiros de peixe, estabelecimentos de piscicultura marinha e instalações permanentes de pesca.

O dito regulamento prescreve:

«Art. 1.º Em determinadas zonas da parte marítima das águas públicas, é permitido fazer instalações permanentes de pesca, estabelecimentos de piscicultura e viveiros de peixes, observadas as disposições do presente regulamento. / 204 /


Art. 4.º
Para que uma zona da costa ou parte marítima dos portos, rios, rias, esteiros, lagoas e margens adjacentes possa ser aplicada aos fins designados no art. 1.º deste regulamento é preciso que satisfaça às condições seguintes:

1.ª  Não estar já aproveitada para uso público, comum ou particular.

Art. 10.º O chefe do departamento, no prazo de quinze dias, mandará passar na localidade uma vistoria, que terá por fim:

1.º Verificar o local;

2.º Conhecer se ele satisfaz às condições exaradas no art. 4.º Em seguida consultará a comissão local e a departamental de pescarias sobre o pedido da concessão, precedendo aviso afixado com antecedência de trinta dias na porta da repartição da capitania e na folha oficial, afim de, se a petição se relacionar com interesse de terceiros, estes dizerem por escrito da sua justiça.»

Cremos que não há nada mais claro nem mais decisivo.

Este decreto afirma terminantemente: 1.º que os terrenos banhados pelas marés podem achar-se no domínio particular; 2.º que os que não estiverem neste caso, e não sejam indispensáveis para uso público, podem ser alienados pelo Estado. E de facto não pode nem deve ser doutra forma, sob o ponto de vista dos interesses gerais do país. Com efeito, que vantagem pública pode advir de se considerarem obstinadamente do domínio público, e como tais inalienáveis, terrenos que a prática tem demonstrado serem eminentemente próprios para o estabelecimento de importantes indústrias, e isto com o simples fundamento em que tais terrenos, que outra coisa não são senão extensos lamaçais, são atingidos pelo fluxo das marés?

A confusão que nesta matéria se tem feito provém a nosso ver única e exclusivamente de se não terem distinguido bem estas duas noções essencialmente diversas, a de domínio público e a de domínio do Estado. São do domínio público as coisas que, pela natureza do serviço que prestam, não podem ser utilizadas individualmente; e por isso o que é do domínio público não pode ser alienado, nem concedido, nem arrendado. Está neste caso uma estrada que, evidentemente, não pode ser utilizada por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, com exclusão dos outros. O mesmo sucede com um rio ou ria, na largura em que é indispensável para uso de todos como canal de navegação. Mas já não pode nem deve dizer-se o mesmo com relação às faixas marginais alagadiças, em que, sem inconveniente algum para a navegação, se têm estabelecido, e devem continuar a estabelecer, marinhas de sal, e semelhantemente se podem, com grande vantagem pública, estabelecer de futuro os viveiros de peixe, as instalações permanentes de pesca, os parques de ostras, indústrias relativamente modernas, cuja criação e / 205 / desenvolvimento os decretos de 1 de Outubro e 31 de Dezembro de 1895 tiveram em vista fomentar.

Por conveniência pública, pois, estes terrenos não podem pertencer ao domínio público: são do domínio do Estado. E só assim é que o Estado pode transaccionar sobre eles, ou concedendo-os, ou arrendando-os, ou vendendo-os, como melhor convenha. Mas de facto é o que até agora se tem feito, como acima provámos. Fez-se em tempos muito remotos sob a forma de doações régias, e fez-se mais modernamente (ainda em 1875) sob a forma de vendas nacionais. A diferença consiste apenas em que esses actos tiveram lugar sem condições no que respeita ao modo de utilizar os terrenos.

Nos dois referidos decretos afirma-se que os terrenos podem achar-se na posse de particulares, mas, quando mesmo isto ali não estivesse declarado, dizer que o Governo está autorizado a fazer concessões de determinadas zonas da parte marítima dos portos, rios, rias, etc., é afirmar que as ditas zonas não são do domínio público, mas do domínio do Estado, ou, por outras palavras, é afirmar a respeito delas o carácter de propriedade particular, isto é, que o Estado as possui como particular na conformidade do artigo 516.º do Código Civil.

A propósito recordaremos as palavras acima citadas do jurisconsulto francês, Mr. LÉON AUCOC, sobre a solução que o governo em França deu à questão da posse dos terrenos das margens do rio Seudre:

«Um decreto de 26 de maio de 1866 ordenou que os terrenos das margens do Seudre, situados por fora dos limites traçados em execução do art. 3.º da portaria de 6 de outubro de 1841 seriam entregues à administração dos domínios, sob reserva dos direitos de terceiros.

Conseguintemente, em lugar de se acharem em face do domínio público, os ribeirinhos não tinham já por adversário senão o domínio do Estado. A prescrição ordinária podia ser invocada. Os seus títulos e a sua posse tinham já um outro valor.»

Os princípios pois que se acham expressos nos decretos de 1 de Outubro e 31 de Dezembro de 1895 são o bastante para destruir todas as dúvidas.

Torna-se porém necessário que o Governo de Vossa Majestade os mande observar; não só nos casos das concessões a que se referem os ditos decretos, como em quaisquer outros em que se levante a questão de propriedade.

Alguns proprietários carecem com urgência de se delimitar com o Estado e com o domínio público, porque pretendem fazer obras, e não lhes convém proceder a elas em comum com os seus comproprietários. Pretendem por isso fazer partilha glebária com estes, o que evidentemente não / 206 / pode ter lugar sem previamente se achar removida toda e qualquer questão de propriedade e de limites que possa ser levantada pelo Estado. Outros, e principalmente aqueles cujos prédios estão situados a grande distância do povoado, pretendem pôr-se ao abrigo dos incómodos que lhes podem sobrevir de futuro pelas dificuldades na repressão dos roubos, se a autoridade policial hidráulica continuar a declarar que os terrenos não podem ser propriedade particular.

Poderá à primeira vista parecer, que, determinando-se a pronta execução do que prescreve sobre a demarcação das bacias hidrográficas o capítulo 1.º do regulamento dos serviços hidráulicos, se acharão removidas as dificuldades que os proprietários vêem diante de si. Mas essa suposição, que talvez seja verdadeira para outros pontos do país, é completamente errada com relação à bacia hidrográfica de Aveiro.

O dito regulamento determina às direcções das circunscrições hidráulicas que procedam à demarcação na conformidade do decreto n.º 8 de 1 de Dezembro de 1892. Isto é, os respectivos funcionários terão de traçar sobre a carta corográfica do reino, devidamente ampliada, a linha de perímetro dos terrenos que no preamar das máximas vivas ficam debaixo de água.

Em Aveiro só as marés do equinócio de Setembro podem servir de base a este trabalho, visto que no equinócio de Março o rio Vouga traz sempre maior ou menor quantidade de águas de cheia, que avolumam e elevam o nível das águas da ria. Por outro lado, a linha que será preciso levantar nesta bacia hidrográfica não é uma única: além da linha geral de contorno exterior da ria, a qual já por si é extensíssima e cheia de acidentes, há ainda a traçar muitos e muitos perímetros secundários a contornar os numerosos terrenos emergentes que existem pelo meio da ria, constituídos na sua maior parte por grupos de salinas, e separadas dos dos outros por um número considerável de canais ou esteiros.

Tendo pois a referida linha de preiamar de ser traçada por um facto único em cada ano, e tendo uma extensão enorme (que antecipadamente pode afirmar-se não ser inferior a 400 quilómetros), devendo o seu estudo, pelo fim a que ela se destina, ser feito com o máximo rigor, é evidente que o levantamento da referida linha é trabalho difícil, que exige um pessoal técnico considerável, e que se não poderá executar dentro de poucos anos.

Depois de levantada, ordena o regulamento que seja patenteada durante 30 dias aos interessados, para que estes reclamem contra ela, na conformidade dos direitos que tiverem.

Pela descrição que fizemos da ria e da maneira porque .nela se acha distribuída a propriedade particular, se conclui / 207 / que o número dos reclamantes, fundados em títulos e direitos irrefutáveis, é considerável, o que vale o mesmo que dizer que a linha de máximo preiamar, que tanto trabalho, despesa e tempo tem de consumir no seu levantamento, está destinada a ser alterada na sua maior parte. Parece aos signatários que, tanto para eles, como para o Estado, haveria a maior conveniência em este trabalho de delimitação se ir fazendo à medida que os proprietários o fossem requerendo, mas tendo cada processo por base, e desde o começo, os documentos e mais provas que eles aduzam na demonstração dos seus direitos.

E de facto, não podendo e não devendo haver da parte dos poderes públicos a intenção de desacatar o direito de propriedade, que elucidação pode trazer a estes processos a linha do máximo preiamar?

Seguindo o exemplo dos proprietários em França, os signatários não podem prescindir do direito de recorrer por último aos tribunais judiciais, caso os seus títulos não sejam justa e imparcialmente apreciados pelas autoridades administrativas. Entendem porém que de uma apreciação parcial não resulta vantagem para ninguém, e que ao contrário tem o inconveniente de complicar e delongar a solução de uma questão, de que estão dependentes obras e melhoramentos que os proprietários projectam realizar, e que a pouco e pouco iriam introduzindo nos seus prédios desde que os limites se achassem definitivamente fixados.

 

Os signatários pedem pois que o Governo de Vossa Majestade, procedendo analogamente ao que fez o governo em França em idênticas circunstâncias, não só declare que reconhece a propriedade particular na ria de Aveiro em terrenos alagados pelas marés, mas ao mesmo tempo expeça as necessárias instruções às autoridades incumbidas dos serviços hidráulicos para que, sem lesão dos proprietários, se proceda à delimitação entre os terrenos alagados do domínio particular e as águas do domínio e uso público à proporção que for sendo requerida individual ou singularmente / 208 / pelos mesmos proprietários, observando-se rigorosamente os limites estabelecidos nos títulos que estes apresentem em prova e justificação do seu direito, e atendendo-se no caso de deficiência ou obscuridade desses títulos à verdade sabida ou atestada pelos inquéritos e informações a que deva proceder-se, isto sem prejuízo do recurso dos particulares aos tribunais judiciais, quando se não conformem com essa delimitação assim fixada.

E. R. M.

Aveiro, 18 de Fevereiro de 1897.

OS PROPRIETÁRIOS

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