F. Ferreira Neves, Projecto de Luís Gomes para Aveiro em 1818, Vol. XII, pp. 148-155

PROJECTO DE LUÍS GOMES DE CARVALHO

PARA O MELHORAMENTO DE AVEIRO EM 1818

AVEIRO foi até aos princípios do século XIX uma povoação insalubre devida ao pântano denominado Côjo, que existia no vale que o atravessa do nascente para poente. O Côjo começava junto à ponte oriental ou ponte da Corredoura e dilatava-se para nascente.

Era limitado pelo Norte por um esteiro hoje totalmente desaparecido, chamado esteiro do Côjo, e pelo Sul por outro esteiro que ainda hoje existe e é chamada esteiro da Fonte Nova.

A parte ocidental do pântano compreendida entre estes dois esteiros chamava-se o Ilhote do Côjo, no qual havia uma espécie de lagoa. Contra a insalubridade do Côjo sucediam-se públicas reclamações, em virtude das quais a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra ordenou em 12 de Agosto de 1818 ao Tenente-coronel de engenheiros LUÍS GOMES DE CARVALHO, autor da abertura da barra nova de Aveiro em 1808, que fizesse um projecto de saneamento e correspondente urbanização do Côjo, a fim de se eliminarem as epidemias que havia séculos dominavam em Aveiro.

LUÍS GOMES DE CARVALHO era um engenheiro distinto a quem Aveiro muito deve.

Para sanear o Côjo elaborou um projecto grandioso que apresentou com data de 16 de Setembro de 1818. Muito de lamentar é que não tenha sido executado, pois Aveiro seria hoje uma das mais belas cidades de Portugal. Planeara LUÍS GOMES prolongar o canal central da cidade que terminava então, como ainda hoje, nas duas pontes vizinhas, a da Costeira e a da Corredaura, até a actual estrada da Fonte Nova, e ladeá-lo com duas formosas ruas e uma larga praça.

O projecto era encantador como se pode avaliar pela transcrição que dele fazemos adiante. Ele visava simultaneamente a salubridade, a beleza da cidade e a limpeza do canal central. Não teve, porém, execução, porque provavelmente / 150 / fizeram-se na ocasião obras sumárias de esgotamento das águas do pântano, e o projecto caiu no esquecimento.

José Ferreira Pinto Basto comprou mais tarde o Ilhote do Côjo, e desaterrou-o em 1828 e 1829 para obter uma caldeira que reunisse águas salgadas bastantes, para, com a força das marés, moverem moinhos instalados numa casa que construiu próximo das pontes.

Os moinhos dentro em pouco deixaram de funcionar, e a casa foi sofrendo alterações, até que há alguns anos foi adquirida pelo Estado para nela instalar a Capitania do porto de Aveiro que de facto lá está.

Mendes Leite comprou o Ilhote aos Pintos Bastos, e transformou a caldeira em uma salina. Esta não deu resultado satisfatório e Mendes Leite aterrou uma porção da caldeira a partir da casa dos moinhos para nascente. Na parte restante construíram-se mais tarde piscinas ou viveiros de peixes. Por fim, à volta de 1905, a Junta da Barra comprou estas piscinas para nelas depositar as lamas das dragagens dos canais da cidade. Em 1908 estavam quase aterradas pela dita Junta. Os aterros continuaram, e ainda hoje se fazem com entulhos das demolições da cidade. Sobre este enorme aterro existe hoje parte da Avenida Dr. Lourenço Peixinho, o Mercado Municipal e várias construções. Assim desapareceu o Ilhote do Côjo, e também a possibilidade de realização do projecto de LUÍS GOMES DE CARVALHO. No entanto, está-se realizando um projecto mais modesto.

Desde os fins do ano de 1945 está a Junta Autónoma da Ria e Barra de Aveiro a proceder ao alargamento do velho esteiro do sul, transformando-o num canal ladeado por fortes muros de alvenaria.

A Casa dos Moinhos fez morrer o mais belo projecto de melhoramentos da cidade de Aveiro.

Aveiro, Maio de 1946.

F. FERREIRA NEVES

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DOCUMENTOS

I

Ill.mo e Ex.mo Senhor

Tenho a honra de remetter a V. Ex.ª o Plano para o Côjo, e hũa Nota que explica os motivos, os detalhes, o orsamento, e o tempo de execução; elle hé o rezultado depois de haver combinado com o Dez.or Superintendente / 151 /

/ 152 /

das Obras Fernando Affonço Giraldes sobre o assumpto: Estimaremos seja do agrado de V. Ex.ª

Deos guarde a V. Ex.ª Aveiro 16 de Setembro de 1818.

a) Luís Gomes de Carvalho
T.e Cor.el

IlI.mo e Ex.mo Snr. D. Miguel Pereira Forjaz.

II

Nota sobre o Plano do Cojo de Aveiro

O Cojo he o terreno que vai na Planta lavado de côr verde; comessa elle junto das Pontes O, e se estende subindo insensivelmente para Nascente, e dividindo Aveiro em duas metades cuja cidade se pode considerar mettida entre as linhas AB e CD: o nivel do terreno do Cojo está proximamente pela altura de marés de Quarto de Lua, e as marés vivas de Lua Nova, e hũa cheia o podem cobrir em altura de mais de palmo e meio termo medio de G até H; e tanto bastaria para elle não ser muito doentio e estar quasi no mesmo caso das outras praias e Marinhas que circundão Aveiro de mui perto pelo Norte e Poente, como a experiencia de 9 annos o tem mostrado com esta differença desfavoravel para o Cojo que este terreno sendo mais abrigado, e as agoas ali menos salgadas e já misturadas com as doces do regato que vem de sima d'Azenha da Rosa, dando lugar a vegetação de muitas plantas aquaticas, o tornarão menos sadio, como judiciosamente o tem dito e publicado os Medicos desta Cidade no Jornal de Coimbra n.º 61.

Mas os proprietarios do Cojo tem alem disso especulado em converter em rigoroso pantano esse terreno que o não hé já (porque o seu nivel está 4 palmos e meio superior á baixamar em Aveiro e por consequencia pode ficar exgotado duas vezes nas baixa mares de cada 24 horas e no mesmo tempo renovadas suas agoas nas preamares) afim de criar as plantas proprias de taes terrenos que vendem para estrumes em prejuizo da Saude publica, e para isso tem aproveitado os Combros 8, 8, 8 que resultarão da primitiva abertura dos Esteiros OQR e OP, e das suas periodicas limpezas para tapar o Cojo, e neste anno até se achou tapado com hum grosso marachão o mesmo Esteiro publico QR no ponto Q, com o fim de que a maré não podesse entrar de modo algum e reter no Cojo a pouca agoa doce do regato, que pelo entupimento das valIas 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, e tapages das mesmas em partes, andão estravazadas por todo o Cojo, o qual se corrompeu e no fim de Julho e principio d'Agosto estava de hũa cor verde formando laço por slma q. tinha a aparencia de azeite rançozo e exalava hum fetido insuportavel.

Os intensos calores de Julho promoverão tambem esta maior corrupção e do meado do dito mez comessarão a aparecer muitas doenças na Cidade e se manifestarão mais em tudo quanto estava mais vizinho do Cojo ou para donde os ventos o que reinavão podiam levar as exalaçoens putridas.

Nestes termos ouvindo os Medicos e temendo-se q. o contagio se fizesse geral e tomasse mao caracter de acordo com o Dez.or, Superintendente se fez logo abrir todo o Esteiro publico QR e se praticarão alguns pequenos cortes nos Combros 8, 8, 8, do Cojo (que tambem são do publico porque são formados das terras extrahidas dos mesmos esteiros à custa do Cofre) e as marés entrarão logo, muito contra a vontade do Domno, no Cojo immundo, que o lavarão e em poucas marés ficou quaze limpo e perdeo a maior parte do mao cheiro, e as muitas doenças q. felizmente conservarão hum caracter benigno, comessarão a afrouchar no meado de Agosto.

Com esta providencia extraordinária se remediou então em grande parte mal que poderia ter ido muito adiante; mas isso não basta, e Aveiro / 163 / fica exposto para futuro não só ao mal que o Cojo pode fazer, como dizem os Médicos e se colige da descripção do local, porem muito mais pelos abuzos a q. elle ja deve e pode dar lugar, não havendo policia, e consentindo-se que os seus proprietarios pelo pequeno lucro que elle pode dar-lhe como pantano, sacrifiquem a Cidade, e depois a Comarca e a Provincia; e perderem os intereces que muitos delles podião tirar cultivando. Alem do exposto hé mesmo dezagradavel seja como pantano imundo ou como praia salgada e esteril hum terreno, como o Cojo metido no coração da Cidade, que S. Magestade levantou das minas e da qual formou hum belo porto de mar para felicidade da Beira; por todos estes motivos não acanhei pelo temor da despesa o Plano que aprezento cumprindo as Ordens de S. Magestade dirigidas pela Secretaria d'Estado dos Negocios Estrangeiros e da Guerra na data de 12 de Agosto deste anno, o qual vai desenhado na papeleta sobreposta na Planta para evitar a confuzão e se ver claramente o que hé no estado actual e no futuro do Projecto. Tambem para não fazer hũa prejudicial diversão aos fundos destinados ás obras da Barra e dos Rios, lembro que o dito Plano Approvando S. Mag.e se poderá realizar em 3 annos como se dirá.

Consiste elle: 1.º em continuar o Caes de Aveiro M N O das Pontes O para Nascente abrindo o Esteiro G K H de 7 palmos e meio ou 60 polegadas de fundo abaixo do nivel do Cojo, para ser navegavel em baixa-mar; e de 14 braças de largura, que tanto calculei ser preciso para que das terras resultantes se terraplene o resto do Cojo de hũa e outra parte pelo nivel da calsada L que borda o Caes do Cojo que he supperior ás marés e cheias e que ficam assima do nivel medio do terreno do Cojo 30 polegadas; e por isso que o Esteiro ha-de ter 60 polegadas de fundo e dessas terras se hão-de entulhar 30 em altura para igualar o Cojo ás sobreditas ruas junto do Caes, segue-se que o Esteiro há-de ter de largura metade do terreno restante do Cojo ou há-de ser hum terço da sua total largura media q. eu achei de 42 braças, cujo terço são as 14 braças que lhe dou de largura.

2.º Em abrir a ValIa H T para receber o Regato, e as agoas de todas as Vallas de enchugo do Cojo 1, 3, 4, 5, 6, 7, as quaes andam totalmente entupidas por desprezo, e por especulação dos proprietarios, e que estes nas suas testadas as possão abrir ou sejam constrangidos a isso; e em abrir outra valIa transversal V Z para receber o resto das agoas e dar as terras precizas para o caminho XY onde passará um Pontilhão de pedra sobre um archete, debaixo do qual se estabelecerá hũa porta de maré H que por si mesma se feixa qd.º a maré enche e se abre sempre que ella vaza, e em geral sempre que as agoas doces que vem de sima estiverem supperiores á maré para lhe dar sahida e enchugar o terreno e vedar absolutamente a entrada da agoa salgada em algũa maré viva de Equinoscio, que pode ainda ir insultar os terrenos assim a da dita porta H para se poder deste modo seguramente cultivar o milho e feijão ou como convier a seus domnos; mas jamais formarem de semelhante terreno pantano por discuido ou arteficio.

Esta porta H pode de inverno demorar as agoas no Cojo, assima della para lhe dar sahida na baixamar e ajudar assim a limpeza de todo o Caes de Aveiro desde H até as Pyramides M.

3.º Terraplanado o Cojo em toda a extensão do Esteiro G K H com as terras resultantes da excavação do mesmo será distribuido em duas ruas de 80 palmos de largura paralellas ao dito esteiro; e se deixará hũa espaçoza praça m, n, d, c, ou m, n, f, g, q. do lado do Norte fica terminada pela arcada m, d, f, h, q. conduz a agoa á Fonte da Praça F, q. he a principal da cidade e aquella q. dá agoada aos Navios; os terrenos que ficam E E E e vão lavados de amarello sendo de grande valor logo q. se fassa este Caes G K H no maior abrigo p.ª os barcos e no centro da Cidade, e poderão servir para indemnização da porção do Cojo que vai ser ocupado pelo publico, cujo terreno não será de grande valor (nem o era antes da Barra nova), desde que se não consentir q. os proprietarios formem pantanos dentro da Cidade com incommodo dos seus habitantes e em prejuizo tão grande da saude publica em paiz tão melindrozo que foi como hé sabido o Cabo... / 154 /

 / 155 / ...Verde de Portugal, e que a Barra nova fez sadio, e se não percão por tão pouco tantos sacrificios, tantos trabalhos e tantos bens obtidos.

Ex aqui o orsamento desta Obra:

Emquanto porem este Plano se não executar, devem os Esteiros do Cojo andar limpos e conservar franca a entrada á maré no dito Cojo para lhe renovar as agoas onde a maré o cobre bem; e os proprietarios do resto delle, do R T para sima, sejão obrigados a trazer as valas 1, 3, 4. 6 e 7 abertas para escoamento desses terrenos q. por falta disso andão alagados e pantanosos.

Aveiro, 16 de Setembro de 1818

a) Luiz Gomes de Carvalho
T.e Cor.el

(Arquivo Histórico Colonial, Papeis avulsos Reino)

FRANCISCO FERREIRA NEVES

 

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