J. Rodrigues da Silva, Ria, Vol. XII, pp. 139-140

RIA

LAGUNA ou ria, o que dela primeiramente nos interessa é aquele mar de água e aquelas vistas. Não há aí coração que não arribe, que não trejubile, ante aquela paisagem vasta e multicolor e a sua agitação crescente de vida e mais vida.

Eu tenho a paixão da Ria. Por vezes ela adormece-me à beira, ela toda, calma, a beijar-se de brisas, o moliço de belo verde a vertebrar as ondinas, e aquelas ondinas da Ria, como olhos garços, a brilharem de céu e de luz, como tontinhas, abrindo-se para a carícia rude dos barcos e para me seduzirem a mim, apaixonado e ciumento!...

Tantas vezes eu, já todo nu, paro na riba mais alta erguendo o peito, erguendo os braços, como para apartar-me de mim e da terra e então todo o amoroso apetite da Ria me enlaça e beija e me envolve em perfumes e me encanta, para que, inebriado, eu tombe para ela... e depois, só se sente o transporte a delícias que só a água dá e que só o corpo conhece!

Ontem dormi no meu barco. E pela manhã, ainda mal a aurora incendiava cirros de primavera para que fosse o sol e não a chuva a imperar seu dia e já uma sinfonia mansa partia dos charcos, batia fino pelo junco, roncava nas docas, clamava com a sereia do porto, e corria em vozes de gaivotas e ia pianar moderado, abatendo-se comprimida, lá para São Jacinto, para a Torreira e para o Furadouro, como se fosse, uma fuga a meus êxtases...

A minha cama da proa cheirava a marisco. Novamente me deitei nela, para ficar de olhos fechados, a escutar, a ouvir só!...

Os ouvidos são mais ricos, mais inundados da vida e da beleza dos sons, quando os olhos se tapam, quando se apaga a chama das cores!

Sinfonias da minha Ria, nunca mais eu adormecerei e também nunca mais entreabro meus olhos, que não tenha em meus lábios, como em prece consolada, a expressão contente do amor que me destes!

Tudo quanto eu amar, há-de ter a presença, o ensinamento, a moral de amor que a Ria me deixou. Há-de ser / 140 / simultaneamente violento e manso, fascinante e esquivo, cândido e misterioso; há-de ferir como golpe, como coisa que rasga e ao mesmo tempo, na própria dor, há-de inebriar, tal como um ópio, um vinho, uma doçura, fim bálsamo!...

Outro dia, eu tinha-me afastado sobre a Barra, lá para onde o Farol é maior, onde a Ria tem melhores praias, onde à mão se tiram da terra berbigões, amêijoas e mexilhões, que até crus se comem e têm paladar; tinha lançado a rede, atirado a fisga, aguentado o anzol; tinha pescado aqueles peixes que os olhos não aguentam, tão luminosa é a escama, e ainda estava longe de Estarreja, quando a noite chegou.

Nunca mais os sentidos me esquecerão aquela Natureza: antes de a noite se ver, o sol morrera em berros por toda a planura das águas... Aquele sol não queria a morte santa de quem mandou sem violências, nem tiranias, não queria perder uma amplidão de beleza que conhecera e amara e onde, pelo seu valor e virilidade, dominara todo um dia de fecundação e soberbas; não queria afogar-se nas ondas, não queria aquele fenecer melancólico entre medonhos clangores, como uma praga, e então, pôs-se a incendiar o céu, a estender as suas chamas de luz e calor para emprestar quentura e tonalidade, e desta maneira assinar o seu protesto naqueles cúmulos frios que o envolviam como mortalha!...

Aquele sol morrera. Teria de morrer. No seu ocaso, porém, aquela orquestração de luzes correndo pelo espaço, aquele seu estertor que cuspia vermelhões de valentia e raiva e o estalar da noite que, não obstante, crescia e vinha e aquele arrebanhar dos últimos revérberos, deram a esse sol, no último minuto, a fama, que não acaba, de como entre as ondas o sol sabe morrer!...

Ria ou laguna, como te chamarem não importa; a mim, o que interessa e a ti me cativa, é a soma de quadros de vida, as tuas imagens de beleza e virilidade sadia com que povoaste a minha inteligência, com que me enriqueces e a todos enriquecerás a alma toda. A mim, o que irresistivelmente me atrai é o teu peixe, o teu moliço, os teus mexilhões; é essa estrada sem portagem nem barreiras que ofereces a todo o barco que te sulca as águas; é o teu lugar ao sol, aberto a pobres e a ricos, aberto a todos; é o teu vento que espalha perfumes e com eles a sensação de fartura e asseio; como é a tua luz, a tua sedução e mistério, essas artes que possuis para agradares a todos Os sentidos! A mim, o que me prende a ti, Ria de Aveiro, é sentir-se a gente homem, plenamente homem, junto de ti!...

JOAQUIM RODRIGUES DA SILVA

 

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