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F. Ferreira Neves, A trasladação do túmulo de João de Albuquerque, Vol. XII, pp. 99-112 |
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A TRASLADAÇÃO DO TÚMULO DE JOÃO DE ALBUQUERQUE |
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FIZ a história do túmulo de João de Albuquerque, fidalgo guerreiro do século XV, e de sua esposa D. Helena Pereira, no Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. IV. Estava este túmulo abandonado em lugar escuro da Capela da Senhora da Misericórdia da Igreja de S. Domingos de Aveiro, e encostado a uma das paredes. Notável trabalho de escultura gótica do fim do século XV, merecia ser salvo do esquecimento e de maus tratos. Por isso ali propus que fosse recolhido no Museu de Aveiro, local ainda hoje cheio de santidade e religiosidade, pois o edifício deste Museu foi o do convento de Jesus, fundado por D. Beatriz Leitão e D. Mecia Pereira, e cuja primeira pedra foi lançada por D. Afonso V, em 15 de Janeiro de 1462. Não perdi o tempo, visto que o túmulo de João de Albuquerque e de sua esposa veio a ser transferido para o Museu de Aveiro, em 1945. Com grande satisfação aqui deixo arquivada a notícia da sua trasladação, das diligências que para esta se fizeram e das entidades que intervieram no caso. Na sessão de 19 de Junho de 1943, da 2.ª Sub-Secção da 6.ª Secção da Junta Nacional da Educação, segundo a respectiva acta, o vogal Ex.mo Sr. Cordeiro de Sousa «pediu a palavra e, historiando as primeiras viagens dos portugueses às Canárias, disse existir na igreja de S. Domingos, de Aveiro, um túmulo (túmulo de João de Albuquerque) com legendas e figuras referentes àquelas viagens. Ficou resolvido que se peçam todos os informes ao nosso Delegado, Dr. Alberto Souto, sobre o referido túmulo, para efeitos de classificação como imóvel de interesse público, caso o mereça». O vice-presidente da referida Sub-Secção, Ex.mo Sr. Dr. João Pereira Dias, veio a Aveiro, e, na companhia do Sr. Dr. Alberto / 100 / Souto, examinou a igreja de S. Domingos e o túmulo de João de Albuquerque, e tomou conhecimento do meu artigo acerca deste túmulo. Na sessão de 16 de Julho de 1943 deu conta da visita que fizera à igreja, e informou que ela estava bastante desfigurada, pelo que não merecia a classificação de interesse público, e que o túmulo estava muito mal tratado. Leu em seguida a parte do meu artigo relativa à história do túmulo e tão justas achou a 2.ª Sub-Secção as razões que eu ali apresentava para ser transferido o túmulo para o Museu de Aveiro que «ficou assente que se diligenciasse oficiosamente perante o respectivo pároco e se sugerisse a Sua Excelência Reverendíssima o Arcebispo-Bispo de Aveiro a transferência do túmulo para uma das capelas do Convento de Jesus. Neste sentido foi expedido o seguinte ofício: OFÍCIO Ministério da Educação Nacional - Junta Nacional da Educação - Lº A-6, 73/498. Ex.mo e Rev.mo Senhor Arcebispo-Bispo de Aveiro. A 2.ª Sub-Secção da 6.ª Secção da Junta Nacional da Educação, instituída junto do Ministério da Educação Nacional por decreto de 19 de Maio de 1936, tem, entre outras atribuições, a de promover a organização de corpos das inscrições lapidares existentes em Portugal e de propor as medidas eficientes para a sua conservação e guarda. Nesta conformidade, venho expor a V. Ex.ª Rev.mo o seguinte: Na Igreja de S. Domingos de Aveiro, que hoje serve de Sé Catedral, encontra-se um belo túmulo, cuja inscrição em letra gótica do século XV nos diz ter pertencido a João de Albuquerque, fidalgo e guerreiro valoroso que tomou parte em expedições a África no tempo de el-rei D, Afonso V. As mudanças e violações que tão formoso e venerável monumento sofreu constam do consciencioso estudo publicado em 1938 pelo Ex.mo Sr. Dr. FRANCISCO FERREIRA NEVES no fascículo 14.º do Arquivo do Distrito de Aveiro. Assim se verifica que já no século XVII Frei LUÍS DE SOUSA se queixava «de o terem arrimado a uma parede com tanto descuido, que a face em que estava / 101 / um letreiro, que nos pudera agora servir de chronica de um fidalgo muito ilustre e muito cavalleiro, ficou abraçada com a parede»; e verifica-se ainda que, depois de novas mudanças em 1859, 1878, e 1880, passou em 1885 para a capela de Nossa Senhora da Misericórdia, onde hoje se encontra igualmente «arrimado a uma parede». No intuito de concorrer para a dignificação de tão valiosa peça do património nacional, a Sub-Secção da Junta Nacional da Educação, a que tenho a honra de presidir, incumbiu-me de renovar perante V. Ex.ª Rev.ma o apelo que há três séculos o ilustrado cronista da Ordem de S, Domingos esperava ser um dia ouvido «por algum Prelaao zeloso». Venho, pois, pedir respeitosamente a V. Ex.ª Rev.ma que se digne promover à colocação do túmulo de João de Albuquerque na Sé Catedral de modo que se possam examinar e estudar as suas quatro faces, ou, no caso de as necessidades do culto tornarem impraticável tal solução, autorizar a sua transferência para uma das capelas do claustro do Mosteiro de Jesus, actualmente incorporado no Museu Regional de Aveiro, onde encontraria o ambiente de religiosidade que irradia da Igreja de Jesus e da capela tumular da Princesa Santa Joana, que estão contíguas. Aproveito esta oportunidade para apresentar a V. Ex.ª Rev.ma as expressões do meu maior respeito. A bem da Nação. Ministério da Educação Nacional e 2.ª Sub-Secção da 6.ª Secção da Junta Nacional da Educação, em 24 de Julho de 1943. O Vice-Presidente: (a) João Pereira Dias.
Diocese de Aveiro. Tenho a honra de responder ao ofício de V. Ex.ª (L.º A-6, N.º 73/498), de 24 de Julho p. p., sobre a transferência do túmulo de João de Albuquerque do lugar onde presentemente se encontra na Sé Catedral de Aveiro. / 102 / Como não seja fácil, sem embaraços para o culto, removê-lo dentro da Sé para lugar ou capela onde se possam ler de todos os lados as inscrições que o ornam, parece-me preferível levá-lo para o antigo Convento de Jesus, onde poderia ser colocado numa das capelas do claustro, sem faltar ao ilustre trespassado aquele ambiente de religiosidade que ele mesmo teria o direito de esperar da Igreja, a quem confiou os seus despojos. Aproveito este ensejo para apresentar a V. Ex.ª a expressão da minha maior estima, A bem da Nação. Aveiro, 7 de Agosto de 1943. (a) D. João Evangelista, Arcebispo-Bispo de Aveiro.
a) que fosse transmitida a S. Ex.ª Rev.ma a expressão do melhor agradecimento da Sub-Secção pela boa-vontade e facilidade que encontrou da parte de S. Ex.ª; b) que o Director do Museu Regional de Aveiro fosse incumbido de fazer o estudo das condições de transporte e instalação do túmulo no mesmo museu; c) que o vogal Cordeiro de Sousa, a quem se devia a iniciativa deste assunto, fosse oportunamente a Aveiro, como delegado da Sub-Secção, fazer o estudo da inscrição. Em virtude da resposta favorável que S. Ex.ª Rev.mo o sr. Arcebispo-Bispo de Aveiro deu ao ofício do sr. Vice-Presidente, Doutor João Pereira Dias, este propôs, na sessão de 29 de Agosto de 1943, que a Direcção Geral do Ensino Superior e das Belas Artes fosse autorizada a: 1) solicitar da Direcção Geral da Fazenda Pública a organização do auto de cedência do referido túmulo ao Museu Regional de Aveiro; 2) dar instruções ao Ex.mo Director deste estabelecimento para receber e colocar condignamente o mesmo túmulo numa das capelas do claustro. / 103 / Tendo o Ex.mo Sub-Secretário de Estado da Educação Nacional, Dr. Manuel Lopes de Almeida, concordado com esta proposta por seu despacho de 21 de Setembro de 1943, o Ex.mo Vice-Presidente expediu o seguinte ofício:
Ex.mo e Rev.mo Senhor Arcebispo-Bispo de Aveiro. Acedendo ao apelo que tive a honra de dirigir em 24 de Julho de 1943, dignou-se V. Ex.ª Rev.ma autorizar a transferência do túmulo de João de Albuquerque, da Sé Catedral de Aveiro para uma das capelas do claustro do antigo Convento de Jesus, actualmente incorporado no Museu Regional da mesma cidade. O arranjo da capela escolhida foi confiado à Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, que procurou dar à nova jazida do ilustre fidalgo e cavaleiro o necessário ambiente de religiosidade; e, segundo comunicação que hoje recebi daquela repartição do Estado, as últimas operações da mudança realizar-se-ão no próximo dia 20. A Direcção Geral da Fazenda Pública promoverá oportunamente a celebração do auto de transferência. Por minha parte, vou promover a ida a Aveiro, naquele dia, do distinto epigrafista Sr. José Maria Cordeiro de Sousa, a fim de estudar a inscrição, e do eminente antropólogo Sr. Dr. António Augusto Mendes Correia, a fim de proceder ao estudo dos despojos; mas cumpro ainda o dever de dar a V. Ex.ª Rev.ma conhecimento daquele acto, para que se digne ordenar as cerimónias litúrgicas adequadas. Aproveito esta oportunidade para renovar a V. Ex.ª Rev.ma as expressões do meu maior respeito. A bem da Nação. Ministério da Educação Nacional e 2.ª Sub-Secção da 6.ª Secção da Junta Nacional da Educação, em 15 de Setembro de 1945. O Vice-Presidente: (a) João Pereira Dias. / 104 / A este ofício dignou-se responder S. Ex.ª Rev.ma o Senhor Arcebispo-Bispo de Aveiro com o seguinte: Diocese de Aveiro. Ex.º Senhor Dr. João Pereira Dias, Junta Nacional da Educação, - Lisboa. Ex.º Senhor Com a maior honra e satisfação receberei a V. Ex.ª e às pessoas que o acompanharem no próximo dia 20, a qualquer hora que V. Ex.ª indique. Já dei ao Reitor da Sé as minhas instruções relativamente às cerimónias litúrgicas, que se realizarão à saída do mausoléu, Sou, com a mais alta estima, De V. Ex.ª M.to At.º Ven, e Obg,º Aveiro, 18 de Setembro de 1945. (a) D. João Evangelista, Arcebispo-Bispo de Aveiro.
E assim, no dia 20 de Setembro de 1945, pelas duas horas da tarde, compareceram nesta igreja os Ex.mos Srs. Dr. João Pereira Dias; Dr. Alberto Souto, director do Museu de Aveiro; Rev.do Padre José Maria Carlos, pároco da freguesia de Nossa Senhora da Glória; Dr. Hugo de Magalhães, do Instituto de Antropologia do Porto; Marques de Almeida e J.-M. Cordeiro de Sousa, a fim de procederem à mudança do referido túmulo. Como convidados, para assistirem à cerimónia, estavam também presentes os Ex.mos Senhores Dr. Francisco Henriques Pereira Cirne de Castro, governador civil do Distrito de Aveiro; Dr. Álvaro Sampaio, presidente da Câmara Municipal de Aveiro; coronel Maçãs Fernandes, comandante do regimento de infantaria n.º 10; tenente coronel Barros e Cunha, comandante do regimento de cavalaria n.º 9; Dr, António Gomes da Rocha Madahil, conservador do Arquivo e Museu de Arte da Universidade de Coimbra; / 104 / Dr. Francisco Ferreira Neves, professor do Liceu Nacional de Aveiro; e representantes da imprensa periódica. Tendo- se aberto então a arca tumular, verificou-se que dentro dela havia dois esqueletos colocados a par um do outro; Seria um, o de João de Albuquerque; e o outro, o de sua segunda mulher, Dona Helena Pereira. Nada mais existia dentro da referida arca; nem vestígios de vestuários nem de objectos, parecendo, portanto, que estas ossadas foram removidas de outras sepulturas para este túmulo. Depois deste acto, o reitor da Sé Catedral, reverendo P.e José Maria Carlos, efectuou uma cerimónia litúrgica junto ao túmulo, sendo este, em seguida, transportado para o Museu Regional de Aveiro, ao qual ficou pertencendo, depois de lavrado e assinado o respectivo auto de cessão cujo teor é o seguinte: AUTO DE CESSÃO
Aos vinte de Setembro de mil novecentos quarenta e
cinco, nesta cidade de Aveiro, e edifício do Museu Regional de Aveiro onde se encontrava o Excelentíssimo Senhor
Pedro Joaquim Rodrigues Correia de Lemos, primeiro oficial servindo de Director de Finanças no impedimento legal
do mesmo, como representante e por parte do Ministério
das Finanças, aqui compareceram os Excelentissimos Senhores José Maria Carlos, prior da freguesia da Glória, desta
cidade, representante do Reverendo Bispo de Aveiro, como
se vê da credencial passada em dezoito do corrente mês, e Doutor Alberto
Souto, na qualidade de Director do Museu
Regional de Aveiro e representante do Ministério da Educação Nacional,
a fim de se lavrar o presente auto de cessão e
perante mim Américo Faustino dos Santos Crespo, segundo
oficial e chefe da segunda secção, funcionário indicado para servir de
escrivão do mesmo e as testemunhas idóneas
adiante nomeadas, foi dito pelo segundo outorgante: - que
na qualidade que representa, cede ao Estado o túmulo de
João de Albuquerque - que existia na igreja de S. Domingos
desta cidade e que estava afecto ao bispado de Aveiro; pelo
primeiro outorgante: - que na qualidade que representa,
aceita a cessão do referido túmulo que ficou instalado no
Museu Regional de Aveiro e que por sua vez o cede ao
Ministério da Educação Nacional a quem fica afecto; pelo
terceiro outorgante: - que na qualidade que representa,
aceita a cessão do referido túmulo que ficou instalado no Foram testemunhas presentes Tiago Augusto Ribeiro e Ramiro Fernando Leal Pessoa, casados, terceiros oficiais, / 106 / em serviço na Direcção de Finanças do distrito de Aveiro, que assinam com os outorgantes depois de lhes ter sido lido este auto em voz alta na presença simultânea de todos, por mim Américo Faustino dos Santos Crespo, segundo oficial que o mandei dactilografar e assino. (aa) Pedro Joaquim Rodrigues Correia de Lemos - José Maria Carlos - Alberto Souto Tiago - Augusto Ribeiro - Ramiro Fernando da Conceição Leal Pessoa - Américo Faustino dos Santos Crespo. Lá ficou colocado, finalmente, o túmulo de João de Albuquerque e de sua mulher Dona Helena Pereira, numa das capelas do claustro do antigo Convento de Jesus. Neste se encontram os restos mortais de D. Mecia Pereira, uma das fundadoras do Convento, filha de Fernão Pereira, senhor das Terras da Feira, irmã do conde D. Rodrigo Pereira e sobrinha da referida Dona Helena Pereira, e o majestoso túmulo da princesa Santa Joana, filha do rei D. Afonso V. O Museu de Aveiro ficou extraordinariamente valorizado com a aquisição de tão notável obra de arte, e a cidade de Aveiro muito se honra em guardar condignamente os restos mortais do herói que ajudou a dilatar o império português. Para sempre ficará esta cidade reconhecida a Sua Ex.ma Rev.ma o sr. Arcebispo-Bispo de Aveiro, D. João Evangelista de Lima Vidal, e aos Ex.mos Senhores Dr. João Pereira Dias e José Maria Cordeiro de Sousa, pelo muito que fizeram em favor do túmulo de João de Albuquerque e de sua esposa. * * * Acerca da leitura da inscrição do túmulo de João de Albuquerque, apresentou o sr. José Maria Cordeiro de Sousa à Junta Nacional da Educação o seguinte relatório que foi lido na sessão de 19 de Outubro de 1945:
Ex.mo Sr. Presidente da 2.ª Sub-Secção da 6.ª Secção da Junta Nacional da Educação. Encarregado por V. Ex.ª de ir a Aveiro proceder à leitura do epitáfio insculpido no túmulo gótico de João de Albuquerque, recentemente transferido da igreja conventual / 107 / de S. Domingos, hoje servindo de Sé após a restauração do bispado, para uma das capelas da crasta do antigo mosteiro de Jesus, actualmente incorporado no Museu Regional daquela cidade, cumpre-me expor a V. Ex.ª o modesto resultado dessa honrosa missão. O convento de S. Domingos de Aveiro foi fundado pelos anos de 1443. A primeira casa era modesta, «tosca e apoucada», no dizer do cronista da Ordem, e grande parte dela foi destruída por um pavoroso incêndio no dia 19 de Outubro de 1843. A igreja, «que em várias épocas tem sido reformada», sagrou-a o Bispo de Coimbra D. Jorge de Almeida, em 20 de Janeiro de 1464. A fachada actual foi construída em 1719. Numa das suas capelas, a de Jesus, contratara em 1477 João de Albuquerque com os frades habitadores do mosteiro fazer sua sepultura. E, ou que ele a tenha mandado lavrar, ou após a sua morte lha tenham executado, um formoso moimento guarda-lhe as cinzas há perto de quinhentos anos. Uma circunstância chama para esse tumulo a atenção dos poucos investigadores que nele têm atentado. É que na sua extensa inscrição onde se memoram os feitos do inumado, há uma referência a certa proeza praticada nas Canárias. Mas como de há séculos este sarcófago tem sido, não sei por que mau sestro, posto invariavelmente de encontro à parede, o sugestivo passo, sem poder ser completado, parecia negacear-nos uma informação, acaso de não pequeno interesse, para o conhecimento das nossas ainda nebulosas viagens às Ilhas Afortunadas. Era, pois, absolutamente necessário completar a leitura dessa inscrição que tão tentadora se mostrava. João de Albuquerque, de cuja vida e feitos pouco mais se sabe além do que nos revela a sua inscrição tumular, era filho de Pero Vaz da Cunha e de D. Teresa de Ataíde, neto, pelo pai, de Vasco Martins da Cunha, e de sua segunda mulher, D. Teresa de Albuquerque, de onde lhe vem o apelido, filha bastarda do bastardo Fernando Afonso de Albuquerque. Dos Cunhas herdou os senhorios de Angeja e Pinheiro. Foi casado com D. Helena Pereira, filha de um João Álvares Pereira, que esteve no cerco de Tânger, e que os burgueses do Porto haviam, certo dia, expulso da cidade por pretender demorar-se nela mais do que lhe permitiam os seus foros, e de D. Leonor de Melo, que era filha do senhor da Castanheira; e bisneta (D. Helena) daquele Álvaro Pereira, que morreu na armada do Porto, vindo em socorro da capital. / 108 / Teve três filhos: o almirante do reino, Pedro de Albuquerque, que «sendo culpado na desgraça do duque de Viseu, foi degolado em Montemor»; Lopo de Albuquerque, que foi embaixador de Afonso V em Roma, e morreu homisiado em Sevilha; e Henrique de Albuquerque, Senhor de Angeja, que casou com D. Catarina Henriques, filha do Senhor das Alcáçovas. Há criaturas a quem o destino se compraz em não conceder repouso, nem mesmo depois da morte. Se a vida deste valoroso cavaleiro foi assaz movimentada, com as suas andanças pelas ilhas Afortunadas, e pelas «partes de África», não tem tido maior quietação o seu formoso moimento. O primeiro local foi no meio da capela de Jesus, situada da banda da Epístola, na antiga igreja conventual. Certo prelado, porém, «que à custa do túmulo que era grande, quiz fazer largueza de serviço na capela que era estreita», mandou-o escostar à parede, o que mereceu áspera censura do autor da História de S. Domingos. Em 1859 acharam que ainda assim incomodava os serviços do culto, e arrumaram-no para um pequeno espaço entre duas portas, em frente do altar; mas em 1878 transferiram-no para a capela de Nossa Senhora da Graça, para logo dois anos passados, em 1880, o levarem como coisa de menospreço, para a antiga sacristia do convento, até que em 1885 reconduziram-no para a igreja, colocando-o na capela de Nossa Senhora da Misericórdia, encostado à parede do lado do Evangelho. Finalmente, por concessão de Sua Ex.ma Rev.ma o ilustre Arcebispo-Bispo de Aveiro, Senhor D. João Evangelista de Lima Vidal, foi colocado mediante auto de entrega de 20 de Setembro findo no Museu Regional daquela cidade, instalado no edifício do convento de Jesus, numa capela da crasta. Ora, todas estas mudanças, com as indispensáveis aberturas, feitas certamente sem um grande cuidado, produziram no sarcófago, sobretudo na parte onde está o letreiro na pesada tampa, graves mutilações. No entanto, ainda pode ler-se o suficiente para considerarmos esta inscrição um curioso documento para a história das proezas da nossa cavalaria nas guerras do ultramar. Esse túmulo, de incontestável interesse dentro da pobre mas bela série iconográfica portuguesa do período gótico, mede 2,30 metros de comprimento, 0,90 m. de largura, 0,95 de altura, segundo a medição feita pelo Ex.mo Sr. Dr. Ferreira Neves, e assenta sobre três das quatro cabeças de leão que outrora lhe serviam de apoio. As suas faces laterais estão ocupadas por uma faixa armoreada, em alto-relevo, onde se ostentam, suportados / 109 / por rechonchudos anjinhos cujas asas se prolongam em recortadas estilizações vegetais, os escudos com as armas de João de Albuquerque e de sua mulher D. Helena Pereira. Os do senhor de Angeja são esquartelados, tendo nos 1.º e 4.º quartéis as quinas do Reino; no 2.º as cinco flores de lis que completam as armas dos Albuquerques, como as trazia D. João Afonso, o filho do infante D. Afonso Sanches, por serem as de sua mulher «que descendia da Casa Real de França», como nos informa o autor dos Comentários; e no 3.º quartel as armas dos Cunhas, por ser filho de Pero Vaz da Cunha e neto de Vasco Martins da Cunha. Os de D. Helena são partidos em pala: na 1.ª as armas do marido; na 2.ª a cruz floreada dos Pereiras. Na face que corresponde à cabeceira repetem-se as armas do defunto cavaleiro, encimadas por um elmo de frente e graciosamente amparadas por dois anjos vestidos com longas túnicas. Na face correspondente aos pés, o escudo em lisonja, como mandam as leis heráldicas, de D. Helena Pereira, que um hirsuto casal de selvagens segura, e acaso pretende representar dois habitantes das Canárias. Sobre a tampa, deitada num leito de folhagem, está a figura do nobre cavaleiro. Face glabra; a cabeça calva, de cabelos lisos e cortados em redondo, deixando ver os lóbulos das orelhas, assenta em duas almofadas. Veste arnez completo, com espaldeiras, cotoveleiras, bafurneiras, escarcelas, coxotes, e grevas. As mãos metidas nas grossas manoplas, seguravam outrora a espada, e talvez uma alabarda, como Francisco de Faria no seu túmulo do Museu do Carmo ou simplesmente na direita a espada nua e na esquerda a bainha, como a estátua tumular de D. Duarte de Meneses em Santarém. Os pés, calçados nos fortes borzeguins de ferro, encostam-se ao dorso de um leão, símbolo da fidelidade. A inscrição, que corre por baixo do jacente, nos quatro lados da tampa, deixando apenas a última linha na arca tumular, está escrita em gótico minúsculo, tendo, porém, quase todos os caracteres iniciais das palavras maiúsculos. A altura destes é de 0,045 metros e a daquele 0,040. Os pontos de separação são dois, conforme o uso corrente neste tipo de letra. A primeira linha começa à esquerda da figura, partindo dos pés para a cabeceira, o que não era costume, embora devamos supor que em algumas das mudanças do moimento tenham colocado a tampa em sentido contrário. O motivo deve ter sido quererem começar a leitura do epitáfio pela banda do altar, pois o jacente ocupando a posição litúrgica ficava com os pés para esse lado. A cabeceira da arca é-nos indicada pelas armas do defunto. / 110 / A inscrição contorna o moimento em quatro extensas linhas que se sucedem e nos dizem:
Na linha que contorna a parte superior da arca tumular seguia-se a referência aos segundos e terceiros filhos: Lopo, que foi conde de Penamacor por mercê de Afonso V; e Henrique, alcaide, e depois fronteiro, de Marvão. A data da morte de João de Albuquerque, que certamente constava da inscrição, já não pode encontrar-se. Algumas dúvidas e indecisões, naturais numa primeira e apressada leitura, podem ser facilmente rectificadas por quem, pela sua permanência na terra, disponha do tempo e da competência indispensáveis para tais trabalhos, sempre morosos e ingratos. Há nesta inscrição, pelo menos, duas afirmações que não são exactas: João de Albuquerque não era bisneto de D. João Afonso, mas sim terceiro neto. O seu bisavô era D. Fernando Afonso. E não foi esse seu trisavô que fez o castelo de Albuquerque. O pai deste, o nosso infante D. Afonso Sanches, é que lhe fez grandes obras de reconstrução, possivelmente ao homiziar-se nele, prudente e receoso do génio desabrido do irmão. Reconstruiu-lhe as torres e muralhas, e fez a barbacã e a cava em volta da vila. Isto pelos anos de 1314, como nos conta Braz de Albuquerque, e nos confirmam as inscrições que mandou pôr nas portas chamadas de AIcântara e S. Mateus. Mas o castelo já deveria existir, / 111 / pelo menos, desde o ano de 1200, em que o velho D. Afónso Teles, oitavo avô de João de Albuquerque, pobrou a terra. Se não encontramos nesta inscrição as informações que anteviramos sobre as nossas primeiras viagens atlânticas, a sua leitura não pode considerar-se inteiramente vã, pois a vida heróica desse homem que, por seus feitos, pela excelência de suas cavalarias, como então se diria, mereceu fazer parte do conselho de dois Reis, passava pouco menos do que despercebido no formulário monótono das chancelarias reais, nas páginas descritivas das crónicas ou no enfático arrazoado dos registos nobiliárquicos. Mas, sobretudo, porque a deslocação do túmulo para poder fazer-se a leitura da parte do epitáfio oculta na parede, veio chamar para ele a atenção dos eruditos, provocando a sua transferência para o Museu Regional de Aveiro, que assim ficou enriquecido com uma peça de incontestável valor. E não devemos esquecer que a possibilidade de estudar sob todos os seus aspectos este belo monumento sepulcral - e à pobre tentativa da parte epigráfica, pelo menos outro estudo, e esse bem mais curioso e proficiente, sabemos que se seguirá - se deve à incansável persistência do ilustre Presidente desta Sub-Secção, sr. Prof. Dr. João Pereira Dias, auxiliado pelos Ex.mos Srs. Director do Museu Regional de Aveiro, e Director dos Monumentos Nacionais, e à inteligente acção de Sua Ex.ª Rev.ma o senhor Arcebispo-Bispo de Aveiro, pela solicitude com que promoveram a sua transferência para local onde, sem perder o ambiente de religiosidade que lhe é próprio, pode ser examinado por quantos, nestes nossos incertos dias, ainda se ocupam com o estudo das eras passadas. Lisboa, sala das sessões da 2.ª Sub-Secção da 6.ª Secção da Junta Nacional da Educação, em 19 de Outubro de 1945. O vogal J.-M. Cordeiro de Sousa.»
Depois da apresentação do precedente relatório, o sr. J. M. Cordeiro de Sousa publicou no «Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa», n.º 11 e 12 da 63.ª série, e em separata deste mesmo Boletim, Lisboa, 1946, um estudo intitulado Referências às Canárias no túmulo de João de Albuquerque no qual desenvolve o relatório e apresenta alguns documentos relativos a bens e senhorios que pertenceram a João de Albuquerque. / 111 / Ao sr. Cordeiro de Sousa surgiu uma dúvida ao comparar o nome da esposa de João de Albuquerque, D. Helena Pereira, mencionada na inscrição do túmulo, com o nome Catelina Pereira, pertencente a uma senhora com a qual João de Albuquerque «casava ora», segundo se lê num documento de 1428 publicado no referido opúsculo. Por isso, pergunta: - «Mas teria João de Albuquerque sido primeiro casado com outra senhora da mesma família»? «Não teria chegado a realizar-se o casamento anunciado em 1428? Ou algum drama de família, hoje desconhecido, terá levado a exarar no túmulo a estranha declaração de que esta fôra «hũa soo sua mulher»? A estas perguntas peço licença para observar o seguinte: estou convencido de que João de Albuquerque foi casado duas vezes, sendo sem dúvida D. Helena Pereira a sua segunda mulher. D. Catarina teria sido a primeira. Mas no documento lê-se que D. Catarina ou D. Catelina era filha de João Álvares Pereira, e portanto, irmã de D. Helena. Assim, dizendo a inscrição que no túmulo jaz Dona Helena Pereira hũa soo sua mulher, deve entender-se que com João de Albuquerque foi sepultado somente D. Helena Pereira, uma das suas duas mulheres. Nem podia ser de outra forma, porque, conforme declarou ao rei D. Afonso V, em 1477, «ele fezera em o mosteiro de Santa Maria da misericordia hũa Capella para seu Jaziguo e de sua molher». Aveiro, Março de 1946. FRANCISCO FERREIRA NEVES |
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