Vaz Ferreira, O Marquês de Pombal oriundo da Feira, Vol. XI, pp. 174-176

O MARQUÊS DE POMBAL

ORIUNDO DA FEIRA

QUEM entra na vila da Feira, pela linha férrea do Vale do Vouga, desce da estação pela rua do dr. Santos  Carneiro, admirando a baixa verdejante até ao casario do povoado estendido de norte a sul.

Para a esquerda, numa lomba elevada do terreno, encimando o novo edifício da cadeia comarcã, ficam-lhe as quase ruínas da velha Casa de Justas.

Foi o solar de uma família fidalga, orgulhosa de descender daquele fero Pero Coelho a quem o mais fero D. Pedro o Cru trincou cru o coração arrancado pelas costas, em castigo de se contar entre «os brutos matadores» da «linda Inês posta em sossego».

Ainda lá existia uma velha pedra de armas com uns coelhinhos avultando em rude escultura.

Pois nesse pardieiro, desamparado e em ruína, nasceram a bisavó e o avô do grande marquês de Pombal.

Também nela nascera, três gerações antes, um Gaspar Leitão Coelho, de quem a parcimónia de herança fez um enqueredor, distribuidor e escrivão de serventia na então vasta comarca da Feira.

Filho segundo de fidalgo pobre, casara com D. Cecília Pinto, nascida de Pedro de Melo Soares, o do Púcaro, e de D. Briolanja Pereira. Talvez por esta alcunha de louceiro os entendidos em linhagens dêem facilmente com ele.

O Gaspar e a D. Cecília tiveram descendência, pelo menos dois filhos: um do mesmo nome do pai e que chegou 'a licenciado e desembargador e o outro António Soares Coelho, cuja descendência veio a viver na Casa de Justas, sendo sua bisneta D. Ana Maria de Viveiros Freire, mãe de uns poucos de bastardos do último conde da Feira, D. Fernando Forjaz Pereira Pimentel, que antes fora dom prior da colegiada de Guimarães.

A D. Cecília morreu, deixando o viúvo e o filho, ambos Gaspares Leitão Coelho, a viverem na Arrifana, freguesia / 175 / do concelho da Feira, à borda da estrada de Lisboa ao Porto e confinante com S. João da Madeira.

O pai Gaspar casou-se de novo. Casamento de conveniência, uma mésalliance, com uma filha de um Sebastião Lopes e de uma Joana Fogaça, que, ainda para mais, se chamava burguesissimamente Eva Machada.

Mas o Lopes era rico e a Eva tão boa criatura que se afeiçoou ao enteado Gaspar.

Em 1590 morre o Sebastião Lopes, partilham-se os bens dele, e a viúva, Joana Fogaça, doa ao genro e à filha a sua parte das propriedades em Gaiate e Cesár.

Fazem então a Eva e o Gaspar testamento in eadam charta e deixam esses bens ao enteado dela e filho dele: Gaspar Leitão Coelho, licenciado em direito e futuro desembargador, com encargo de missas por alma de ambos na igreja de Arrifana.

Este segundo Gaspar casa com D. Joana de Mesquita e passa a residir na Casa de Justas, onde lhes nasceu uma filha D. Luísa de Melo.

Durante os seus estudos em Coimbra ou pela vida fora, em qualquer judicatura, encontra-se o licenciado Gaspar com o seu colega Sebastião de Carvalho.

Casara este com D. Maria de Braga e Figueiredo e, como neto de um cónego da Sé de Évora, vivia à lei da nobreza.

O colega Gaspar orgulhava-se de descender dos Coelhos e lá tinha os animalejos de pedra sobre a porta da moradia.

Nada mais natural do que estreitarem os laços da amizade em ligação de família e, assim, a D. Luísa de Melo casou com o filho do Sebastião de Carvalho, do mesmo nome e da mesma profissão do pai.

Trouxe a D. Luísa ao casal aqueles bens de Gaiate e de Cesár e tanto bastou para que o Sebastião de Carvalho, segundo do nome e desembargador como o pai, se dissesse e intitulasse senhor da honra de Gaiate e da torre de Cesár trazidas ao casal por cabeça da sua mulher e acrescentasse o Melo nobilitante ao nome do filho de ambos. Foi assim que o avô do grande marquês se chamou Sebastião de Carvalho e Melo, apelidos continuados no neto com o acréscimo do sobrenome José.

Mas o Sebastião de Carvalho e Melo não se contentou só com o intitular-se, como o pai, senhor da honra e da torre supostas nos bens provindos da herança do Sebastião Lopes pela linha torta da madrasta do avô. Quis mais. E intentou demanda no juízo da correição do cível da corte contra Martim Teixeira Coelho de Melo, senhor da vila de Teixeira e de Sergude, para haver uns morgados, afirmando pertencerem-lhe por ser segundo neto de Gaspar Leitão Coelho e este ser (como não era) filho de Gonçalo Pires / 176 / Coelho, donatário de Felgueiras e de Vieira, e da sua mulher D. Violante de Magalhães.

Nesta paternidade estava o X da questão.

Contrariou a parte adversa, dizendo não ter o Gonçalo tido outro filho além de Aires Coelho, de quem o Martim de Melo directamente descendia.

Apresentou o Sebastião de Carvalho e Melo um terceiro traslado transcrito em Tentúgal de 'um forjado em Évora de outro «que se finge» ser de uns autos de justificação feita na Feira.

Este primeiro traslado tinha a assinatura de Diogo de Pinho e não consta ter havido na Feira tabelião ou escrivão com tal nome.

De rebusca em rebusca, os advogados dos réus vieram a esmiuçar a história do primitivo Gaspar Leitão Coelho e a proveniência, insuspeita de honra e torre, dos bens de Gaiate e Cesár.

Ainda tentaram dividir em dois o Gaspar: um reles, escrivão, casado com a Eva Machada − e o outro nobre, com honra e torre, marido da D. Cecília; mas fora a própria Eva, pela sua mãe Joana Fogaça, a transmissora dos bens de Gaiate e de Cesár à posse do viúvo e do filho da D. Cecília.

Portanto o Gaspar nobre e rico era o reles escrivão e enqueredor, o próprio Adão daquela Eva sem filhos, e esta a Machada a cortar cerce as prosápias de descendência nobilitante, mal firmadas num terceiro traslado de documento suspeito e provindo de incógnito notário.

O Sebastião de Melo esmoreceu, vindo a vender os bens de Cesár e Gaiate ao fidalgo do Côvo, António de Magalhães e Meneses.

Mas o seu filho prosseguiu a demanda, fez-se linhagista e escritor para a sustentação do seu inventado direito e o neto, usando o apelido Melo da bisavó feirense, ainda por largo tempo continuou os recursos.

De tudo isto, porém, só tiro uma consequência e única certeza: a bisavó e o avô do primeiro marquês de Pombal e conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo, eram meus patrícios e nasceram na Feira, ali na velhíssima Casa de Justas, agora a cair aos pedaços como pardieiros mal tratados.

Feira, 25 de Abril de 1945.

VAZ FERREIRA

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