I − ALQUERUBIM
É este, segundo a grafia oficial
moderna, o nome de uma
freguesia do concelho de Albergaria-a-Velha; orago Santa
Marinha. Essa grafia, devida a sugestão do nome comum cherubim, hoje
escrito querubim, com que aliás nada tem, vem já do século XVIII,
pelo menos, como se vê do Port.
Sacro e Profano, que é de 1767, II, 17, onde se escreve Alcherubim; a
carta geodésica do país, de 1 por 100.000, fl. 10, ainda traz Alcherubem,
com uns restos dessa sugestão.
O povo, porém, diz correntemente, com mais pureza etimológica, Alcorobim, Alcorbim, Alcrobim (ou -vim),
como já regista em 1717 o P.e LUÍS CARDOSO no seu conhecido
Dicionário
geográfico, I, 187.
Desde há séculos não há povoação alguma naquela freguesia, a que se
aplique particularmente esse nome, que talvez designou na origem o local
da primitiva igreja matriz, situada já no século XVI, como hoje, no
lugar das Fontes.
Como quer que seja, o topónimo é muto
velho, mais de milenário.
Documentos vários dos anos 959, 981, 1059 e 1090 mencionam-no já sob as
formas villa Alcaroubim, Alcorauin e Alquorauim.
Cfr. P. M. H., Dipl. et Chartae, n.os 76 (p. 46,
l. 10), 132, 420 (p. 262, l. 38) e 745. Este último documento foi há
poucos anos reproduzido do original em gravura zincográfica neste
Arquivo, IV, 72-3(1).
Outro documento de 1085 traz
Alqorovim e um de 1139 diz Sancta Maria (sic)
de Alkarovim, se VITERBO transcreve com exactidão no Elucidário, S.
VV. raçam lIl e terra dos pagons. Mas um documento de doação
deste último
ano, que suspeito seja o mesmo aludido por VITERBO, dá a forma
Alcarauuim (JORGE H. PIRES DE LIMA, O most. de Santa Cruz de Coimbra
no
séc. XII, Lisboa 1940).
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Em várias bulas pontifícias dos anos
1144, 1148 e 1157 escreve-se
Alcarouuim e Alcarauuim (P. M. H., Scriptores,
69, 70 e 71). Nas inquirições do século XIII lê-se, por seu
lado, Alcarouvi (Nova Malta, I, 294); no rol das igrejas do bispado de
Coimbra, que costumo referir a 1235-45, mas que o Dr. Rui de Azevedo
entende ser de 1259, aparece Alcarouui e Alcarouuil (Torre do Tombo,
Gav. 19, M. 14, N.º 7); e numa inquirição da Terra de Vouga de 1282
freighysia d Alcarouui (neste Arquivo, IX, 82); no Livro da
fazenda e
rendas da Universidade, que é de 1570, a pág. 298, n.º 1658, vem Santa
Marinha de Alcorouvim(2). Outras grafias:
Alcarouuẽ nas inquirições de
1220-21, e Alcorouuim e Alcorbim no século XVIII (Arquivo cit., IV. 73 e
VI, 29».
Deste topónimo apresentaram-se até agora duas etimologias:
a) − a de Fr.
JOÃO DE SOUSA, que nos Vestígios da língua arábica, 2.ª ed., pág. 32, o
explicou pelo árabe al-corbin, os parentes (plural de carib, parente
próximo) o que não serve, além da pouca naturalidade do sentido, porque
não dá a razão do ditongo ou persistente nas formas mais antigas; b) -
a de DAVID LOPES, arabista distinto, que na sua Toponímia árabe de Portugal, pág. 14, repudiando aquela solução de
SOUSA, o faz por sua vez derivar de Kairouan, ou Cairuão, nome próprio
de uma cidade da Tunísia, transplantado, segundo a sua hipótese, por
algum indivíduo natural dela e a que se preporia o artigo arábico al.
Nesta solução, conforme LOPES, o a da sílaba final passaria a i, em
virtude do conhecido fenómeno da imela.
Mas esta construção al-Kairouan é inaceitável em árabe; pode mesmo
dizer-se que «é erro grosseiro, porque os nomes próprios não tomam o
artigo» como disse o mesmo DAVID LOPES, a propósito de caso semelhante,
no seu apêndice ao tomo VIII, pág. 298, da edição da Hist. de Portugal
de HERCULANO, por ele dirigida. Vid. também em LERCHUNDI, Rudimentos del
árabe vulgar, 5.ª ed., pág. 25: «o nome próprio não leva artigo».
Logo, a etimologia b) tem de recusar-se também.
Mas o distinto professor esteve perto de Roma, sem
aliás chegar a ver o Papa... Segundo o que julgo, e partindo, como é da
regra, das mais velhas grafias Alcorauin e Alcaroubim (de
que todas as
outras indicadas se deduzem, sem
quebra das regras da nossa evolução fonética) o topónimo Alquerubim provém, não de Cairuão como queria DAVID
LOPES, mas do nome
pátrio ou de relação derivado do dessa
cidade, isto é, do ar. al-carawi, «o de Cairuão, o cairuanense», no plural
al-carawiin. Talvez seja mesmo preferível
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admitir como étimo este plural, por as formas do século
X já
terminarem em -in, -im
(3). Desta maneira ficará justificada a presença
do artigo e dispensada a muleta da imela... Além disso, nomes pátrios
arábicos como este são vulgares na nossa toponímia, onde lembrarei
Alcoutim,
Almeirim, Almadenim, Alpolentim, Albacetim, Bensafrim, etc.
Aquele nome pátrio al-carawí, no singular, foi usado como apelido entre
os mouros da Península: vejo citado por exemplo um Ali ibn Al-carawí,
camareiro do rei Badis de Granada, no século XI (DOZY, Hist. de los musulmanos
españoles, trad. de F. DE CASTRO, IV, 57). O plural Alcarawiin é, por
sua vez, o nome dado a um dos bairros primitivos da cidade de Fez (fundada em 808) e que ainda existe,
por aí se estabelecerem desde a fundação muitas famílias vindas de
Cairuão; e designou também uma mesquita célebre, nesse bairro erguida anos depois, Cfr. RUY DA CAMARA,
Viagens em
Marrocos, pág. 206 e E. AUBIN, Le Maroc d'aujourd'hui, Paris, 1912, págs. 262-3. A esta mesquita se refere no
século XV, sob a forma Alcoroim, o nosso Fr. JOÃO ALVAREZ, autor da
Crónica do infante Santo, cap. XL: «Algema Alcoroim, que está na villa
velha».
Resta-me acrescentar que no nosso país há outro lugar
de nome Alcorvim, na freguesia de Alcabideche (Cascais), já com essa
forma em 1447, no Dic. geográfico do P.e CARDOSO e que é
Alcoruim numa
carta régia de D. Dinis de 1314 (PEDRO DE AZEVEDO, Os reguengos da Extremadura na
1.ª dinastia, n.º LXII). Deve ter a mesma origem do precedentemente estudado.
2 − BARZALAIA ou BRAZALAIA
Chama-se assim uma importante marinha de sal da ria
e concelho de Aveiro, que, haverá uns 45 anos, altura em que deixei
o
liceu de José Estêvão, pertencia à família Cunha
dessa cidade
(4).
Por sinal que, devido a tal circunstância, um filho dos
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proprietários, o meu condiscípulo Jaime Coelho da Cunha, rapaz aprumado
e com certo ar de importância, foi, durante uma alegre excursão a
Salamanca, graciosamente elevado pelos seus companheiros a Conde da Barzalaia e, por
esse inofensivo «sobriquet» muitos anos lembrado...
Costumam frequentemente as marinhas
ser designadas pelos nomes,
apelidos ou alcunhas dos donos, às vezes na
forma feminina, em concordância de género com aquele substantivo
(marinha) subentendido. Assim se diz: a Ramalha, a Crespa, a Parracha,
por a marinha do Ramalho, do Crespo, do Parracho, etc.
Desse costume e processo creio ter-se originado o citado nome
Barzalaia,
que parece formado sobre o apelido e antropónimo hebraico Barzillai ou
Berzellaí, de sentido próprio e traslato idêntico ao do latim
ferreus
e que várias vezes
figura na Bíblia, L. dos Reis, II, 2, 9 e 17. Vid. R. MOWAT,
Études d'onomast. comparée, Paris, 1868, pág. 35; CAROLUS
STEPHANUS, Diction. Historicum, Geogr., Poeticum, Genebra, 1638: s. v.
Berzellai. Este mesmo vocábulo, latinizado Berzellius, é o nome porque
universalmente se conhece o sábio sueco, falecido em 1848, que foi um
dos fundadores da química moderna.
O parecer que acabo de expor não é de pura
hipótese;
sugeriu-mo e dá-lhe um reforço particular o facto de ter existido em
Aveiro, no século XVI, aquele apelido hebraico. Na verdade, do processo
por judaísmo instaurado no Santo Ofício contra Johão Bezerra (Torre do
Tombo, lnquis. de Lisboa, processo 12.813) e de que uma peça tem
a data de 10-1-1575, consta efectivamente, que esse Johão Bezerra era filho do
Dr. Paulo Luís, por outro nome chamado, entre os da sua lei, Moisés Bersellai (sic), jurista em Aveiro. Cfr. (Archivo
Hist. Port., III, 285, nota.
É naturalíssimo que este jurista, ou alguém da sua família e apelido,
tenham sido proprietários da marinha em questão e que por esse apelido,
sob a forma feminina que chegou até nós, o povo a designasse
vulgarmente.
3 − SÔZA ou SOUZA
É hoje uma simples povoação e freguesia, embora importante, do concelho de Vagos; mas foi até 1853 sede de um velho concelho,
que ascende à Idade Média.
Já há notícias de Sôza no século XI. Dois documentos
de 1088 (P. M, H. Dlpl. et Chartae n.os 698 e 699) referentes à Ermida de
S. Cristóvão, hoje lugar da Ermida, junto da
Vista Alegre, situam esta «inter villas quæ nuncupantur Socia et
Iliabum», isto é, entre Sôza e Ílhavo. No segundo desses documentos o
nosso topónimo tem a variante Sozia.
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Outro documento de 1095 repete aqueles dizeres com
pequena diferença: «inter villas Socia et Ilavum». (Idem, n.º
815).
Num diploma de 1193, em que D. Sancho I doou este lugar para
estabelecimento no país da ordem de Santa Maria de Roc'Amador, chama-se-lhe
villa de Sozia (J. PEDRO
RIBEIRO, Dissertações, III, 191). No rol das freguesias do bispado de
Coimbra, que costumo referir a 1235-45, e que citei atrás ao tratar de
Alquerubim, vem Sanctus Michael de Soza; mas noutro rol congénere de
1320-21 escreve-se Soiza. (Vid. FORTUNATO DE ALMEIDA, Hist. da Igreja,
II, 668, onde porém o autor deixou imprimir erradamente Soisa em vez de Soiza, que é o que está no importante Ms. por
ele copiado e cuja existência por mim lhe foi descoberta, apesar de se
esquecer de o dizer).
Outros documentos repetem, desde o século XIII, a
forma Soza: prior de Soza diz um de 1255; logo de Soza outro de 1378;
S. Miguel de Soza, outro de 1438, todos citados no bom estudo sobre a
Comenda de Soza, que BRAANCAMP FREIRE publicou nos Brazões da Sala de
Sintra, 2.ª edição, II, 291-298. E é ela que prevalece até os nossos
dias.
Tanto no foral manuelino de 1514, publicado neste
Arquivo, III, 179-80 e
302, como no censo da população de 1527, publicado no Archivo Hist. Port.,
VI, 278-279, aparece também a rara e errada grafia Çoza, que é devida talvez ao vício do ceceamento, que reinou em Portugal (e Espanha) sobretudo no
século XVI, dando-nos grafias como çótão, çaquiteiro, çabujo, çafira,
etc., em desacordo com as fontes destas palavras, que têm s inicial.
Finalmente desde os princípios do século XVIII encontramos a variante
Souza, v. g. no Dic. Geogr. do P.e CARDOSO, II, 153, na
Taboa Geográfico-Estatística do Flaviense, em 1839, etc. Também o P.e CARVALHO DA COSTA em 1708, na
sua Corografia, II, 154, e o P.e CARDOSO naquele Dic. Geogr., fI, 330,
414 e 463, e J. BAPTISTA DE CASTRO nos seus Mappa de Port. e Roteiro
terrestre (1748) usaram desta
última variante, mas com a grafia deturpada Sousa, por confusão com o
nome de um rio e de um velhíssimo castelo e freguesia do actual
concelho de Gondomar, que assim legitimamente se escreve, tendo porém
explicação muito diversa do da nossa Souza.
Tratando agora do étimo, entendo que o topónimo
villa Socia deve
ascender à época romana ou, ao menos, à visigótica e significará na
origem «quinta ou herdade de um indivíduo chamado Socius».
Este gentílico romano Socius, com a variante
Soccius, equivalente
perfeito do antropónimo grego Symmachus, embora pouco vulgar, está
documentado: numa inscrição de
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Pola (Ístria) figura uma mulher de nome Socia Maxima, e
numa de Cherasco (Itália) fala-se de outra de nome Soccia
Modesta. O mesmo gentílico é a base dos topónimos medievais franceses: villa Sociacus, que se lê em documento de 690, e
Colonia
Sociacus em outro de 862, formados sobre ele como sufixo gaulês -acus. Cfr. D'ARBOIS DE JUBAINVILLE,
Recherches, pág. 306.
É de lembrar que os romanos davam às suas quintas,
herdades, casais e outras entidades prediais (e mesmo aos monumentos,
fundações e obras de utilidade pública do Estado, etc.) uma denominação
própria, tirada ordináriamente do nome do respectivo proprietário,
fundador ou fautor e que, tratando-se de prédios, passava com estes ao
cadastro fiscal e assim se perpetuava por sucessivas gerações.
Para formar tal denominação juntava-se ao nome pessoal (gentilício ou cognome) um sufixo, principalmente o sufixo
-anus, que
o adjectivava, exprimindo para a coisa denominada uma relação de pertença, autoria ou homenagem.
Dizia-se assim: Villa Corneliana, a quinta de um certo
Cornelius; Fundus Manlianus, o casal de um Manlius; Villa Lucullana, a
quinta de um Lucullus, etc.
No distrito de Aveiro entra nesta categoria toponímica o nome de lugar
Fermelã, no século Xl villa Fermellana, que deve ter sido primitivamente
«quinta de um Firmellus»,
nome de pessoa diminutivo ou hipocorístico de Firmus,
como Marcellus de Marcus, e equivalente a Firminus. Entrarão também os
nomes Antuã e Oiã. No de Coimbra pertencem ao género: Ançã, Larçã, Cordinhã, Ourentã, Silvã,
etc. Mas
não desenvolverei aqui agora este tema.
Outras vezes empregavam os romanos, com o mesmo sentido e fim de
adjectivação, o próprio nome gentilício (que adjectivo é, na essência)
ou o cognome, se era de natureza adjectiva, sem qualquer sufixo −
segundo o uso geral da língua latina, que chamava v. g. lex Claudia a
certa lei promulgada pelo imperador Claudius, mensis Augustus, Agosto,
ao mês dedicado ao imperador Augustus. A antiga Roma e o seu alfoz
estavam repletos de topónimos formados por este último processo. Aí nos
oferecem os autores ou inscrições antigas: porta Naevia, saltus Marcius,
via Appia, via Flaminia, torum Julium, columna Maenia, baslica Porcia,
basilica Aemilia, pons Aurelius, aqua Marcia, aqua Claudia, etc.
Na Península Ibérica há bastantes exemplos de topónimos também assim
formados com gentilícios em função adjectiva: Caecilius vicus e
Castra Caecília são lugares da Bética e da Lusitânia derivados do nome do
generaI Q. Caecilius Metellus; Praesidium Julium e Pax Julia, nomes
romanos de Santarém e Beja, tirados do do imperador Julius
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Caesar; Aquas Flavias, hoje Chaves, é devido ao imperador Titus Flavius
Vespasianus, Valeria Augusta, hoje Valera la Vieja, Aurelia, hoje
Oreja, e Vergilia, em sítio incerto da Tarraconense, todas na Espanha
antiga, são topónimos derivados dos gentilícios romanos Valerius,
Aurelius, Vergilius. O nome Castrum Gerontium que, nos nossos documentos
dos séculos X e XI, se dá ao Castro de Arêgos, em Resende, está no mesmo
caso e provém do antropónimo Gerontius, usado por exemplo por um general,
que muito figurou nos últimos tempos da dominação romana na Península,
morto em 409.
Já se vê, pois, que villa Socia é uma formação toponímica perfeitamente
enquadrada no sistema romano. Na ilha de Córsega há até ainda uma antiga
sede de comuna e de cantão, no distrito de Ajaccio, com nome idêntico
Soccia. Não faça impressão a duplicação neste do c, que também aparece
no ital. soccio, soccità, etc. E já vimos acima que do próprio
gentilício ocorre também a variante Soccius.
A evolução fonética da forma antiga para as actuais é regular.
Sacia,
passando por Sozia, e Soiza, «étapes» documentadas, deu afinal
Sôza,
como o lat. fiducia deu fiuza e Gallaecia através de Gallicia deu
Galiza.
Quanto a Souza, esta variante resultou de
Soiza pela equivalência,
estabelecida na língua moderna entre os ditongos oi e ou, o que se nota
frisantemente também em Douro, forma corrente por Doiro, que é a
sucessora directa de Dorius ou Durius, nome pré-romano do grande rio,
que
banha o Porto.
Figueira da Foz, Julho de 1944.
JOAQUIM DA SILVEIRA |