A. G. da Rocha Madahil, Para a história da inquisição em Aveiro no séc. XVI, Vol. X, pp. 81-91.

PARA A HISTÓRIA DA INQUISIÇÃO

EM AVEIRO NO SÉCULO XVI

HISTORIANDO a origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal, problema ainda hoje insuficientemente esclarecido e que não tem sido possível tratar sem paixão, ALEXANDRE HERCULANO utilizou largamente a preciosa documentação reunida nos volumes da Symmicta Lusitanica.

Como geralmente é sabido, por iniciativa de D. João V, o seu embaixador em Roma, Manuel Pereira de Sampaio, obteve cópia de grande quantidade de documentos interessando à história de Portugal, e existentes no Arquivo do Vaticano.

Com esse material se organizaram pelo menos 200 volumes, que hoje se encontram na Biblioteca da Ajuda; em carta a João Pedro da Costa Basto, HERCULANO aludia mesmo a «200 e tal tendo-se extraviado alguns em consequência da viagem de D. João VI ao Brasil»(1). O conjunto recebeu o título geral de Symmicta Lusitanica.

A organização e a fidelidade das cópias da colecção têm sido discutidas, e, na verdade, não são perfeitas; o próprio HERCULANO (loc. cit.) acusa «inumeráveis erros e descuidos dos copistas»; não obstante, serviu-se, para a sua História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, dos três volumes da Symmicta que se ocupam de Inquisição e de judeus, extratando-os e tirando conclusões dos documentos neles transcritos quando a sua veracidade se lhe afigurava incontroversa. / 82 /

Entre aqueles em que mais baseia as suas conclusões contam-se umas relações de arbitrariedades praticadas pelos inquisidores em Aveiro, Coimbra, Lamego e per totum Regnum no século XVI, expostas pelos cristãos-novos a D. João III em 1543. HERCULANO não as publica na íntegra, nem jamais foram publicadas por historiador algum; naturalmente impressionado pela leitura dessas páginas da História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal, de há muito quisemos conhecer as relações em toda a sua extensão e pormenores; requisitada agora a cópia das que a Aveiro respeitam, à própria Biblioteca onde se arquivam, pudemos então avaliar todo o alcance desse formidável depoimento, imagem viva da sociedade local no distante século XVI, a que não encontramos referência alguma entre os historiadores do Distrito.

Sem proselitismo de espécie alguma as trazemos a público; são documentos que pertencem à História; e se muito ajudam a conhecer a sociedade aveirense da época, em nada prejudicam já a instituição a que mais directamente estão ligados.

Intitula-se a relação Excessus lnquisitorum in Oppido davero colimbriensis diœcesis, e é o documento n.º XXXVIlI do tomo 32 da Symmicta, a fl. .348, v.º, e seguintes.

HERCULANO refere-se-lhe com estas palavras, candentes como ferro em brasa:

...«Quando a índole e os actos do primeiro inquisidor de Coimbra eram estes, pode conjecturar-se qual seria o procedimento dos seus delegados pelo vasto território que a jurisdição daquele tribunal abrangia. Nenhum, porém, mais que o de Aveiro se mostrava digno de tal chefe. Era ele o vigário da igreja de S. Miguel, conhecido pela sua dissolução. Entregue à caça, ao jogo, e publicamente amancebado, a perseguição dos cristãos-novos veio agradavelmente distraí-lo das suas diversões ordinárias. Apenas revestido da delegação inquisitorial, tratou de arranjar delatores e testemunhas. Repelido por muitos que procurou seduzir para exercerem esse odioso mister, não lhe faltou quem o aceitasse, tanto mais desde que recorreu ao meio, já vantajosamente experimentado, de atiçar ódios pessoais e de lisonjear a sede da vingança. A pena de excomunhão fulminada contra os que não denunciassem os actos de judaismo de que tivessem notícia deu-lhe também delatores, e às injúrias, que não poupava aos que recusavam servir-lhe de instrumentos, submeteram ao seu império mais de um génio tímido. Havia, contudo, um recurso contra as violências desse homem. Era a corrupção. Mais de um réu obteve a liberdade a troco de peitas, e até, quando as capturas dos cristãos-novos eram mais frequentes, a concubina / 83 / do vigário de S. Miguel andava de casa em casa, prometendo a uns e a outros que não seriam presos, se quisessem ser generosos. Acusavam-no geralmente de ter delapidado várias alfaias da igreja, de jogar as esmolas dadas para aplicações pias, de ter prendido a mulher de um cristão-novo, a quem devia dinheiro, para no meio do tumulto rasgar o escrito de dívida; acusavam-no de mais de uma solicitação infame feita no confessionário, e de revelar o sigilo da confissão para chegar aos seus fins. Como agente da Inquisição, como sacerdote, e até como homem, o delegado do bispo de S. Tomé era um miserável. O memorial dos hebreus portugueses, tratando da perseguição em Aveiro, menciona factos que nos repugna descrever, e que até seriam inacreditáveis, se não se invocasse naqueIe memorial o testemunho de dezenas de indivíduos eclesiásticos e seculares de todas as jerarquias. Se tais factos fossem inexactos, eles teriam sido altamente desmentidos por essas testemunhas que se invocavam, e que os cristãos-novos pediam instantemente que se ouvissem.»(2)

A relação de todas estas misérias está redigida em latim. Obtida a cópia da sua versão para a nossa língua se encarregou o nosso prezado colega da Direcção do Arquivo, Sr. Dr. JOSÉ PEREIRA TAVARES. latinista seguro como a compreensão do texto da Symmicta, muito defeituoso, absolutamente reclamava.

Passagens houve, ainda assim, cujo sentido, deturpado na transcrição, pelo menos, do original para a Symmicta, não foi possível reconstituir. Vão substituídas por pontos de reticência e notadas com interrogação.


DESMANDOS DOS INQUISIDORES NA VILA DE AVEIRO,

DA DIOCESE DE COIMBRA

1) Foram também apresentados ao Reverendo Senhor Núncio outros muitos crimes além dos narrados, que pelo mesmo Bispo de S. Tomé e pelos seus oficiais foram omitidos, para que deles no reino... se fizesse, os quais foram divulgados e são notórios; e até porque, além dos ditos, o Bispo Inquisidor, em dano do de Coimbra, e para total excomunhão dos cristãos novos da vila de Aveiro, da mesma / 84 / diocese, cometeu violências e horrendos crimes e para isto intrometeu no exercício desse negócio um presbítero, vigário de S. Miguel da dita vila, varão sem dúvida celerado, furioso, iracundo, perversíssimo, o qual, tanto ele como o predito Bispo, praticou os crimes que se seguem, por indústria do referido Bispo e, confiado nos favores dele, tão estupendos e celerados crimes de Deus e, posto de parte o temor da Justiça, não tendo faculdade alguma nem jurisdição; ora o dito vigário induziu... a Afonsa (?), mulher de Brás Lopes, a jurar falso contra o Mestre Luís, o que a própria fez, e ao seu marido.

2) O mesmo fez com António Álvares e Beatriz Curada.

3) Também levou Bastião Martins a depor contra os cristãos novos, obrigando-o muito e dizendo além disso que era então tempo de tomar deles vingança.

4) Levou a filha de Bastião Martins, na capela da Beata Catarina, e impôs-lhe pena de excomunhão, a jurar falso contra Fernando Álvares e sua mulher; e porque ela acerca disso fez objecção, injuriou-a, chamando-lhe meretriz e outras palavras injuriosas, e por causa disto negou-lhe também o Santo Sacramento.

5) Item obrigou Agarena Fernandes de Terres, e muito a instou, a jurar falso contra seu senhor, com promessa de a livrar da escravatura; e, porque isto não fez, injuriou-a publicamente com palavras, na igreja, quando ali estava para receber o Santo Sacramento. dizendo-lhe que não queria jurar por não ser cristã. Testemunhas disto: aquela, o arcipreste tesoureiro e ainda aquele que na igreja presta serviços.

6) Item induziu Gaspar Dias a jurar contra certo cristão novo, seu inimigo, dizendo-lhe que, sendo tempo de se vingar, fosse prestar juramento. Testemunhas disto: ele próprio, que é pessoa de grande autoridade.

7) Item sem nenhuma razão impôs no púlpito a pena de excomunhão para que fossem depor contra os cristãos novos, e tomava denúncias e por elas prendia e soltava. Testemunhas para isto: António Rodrigues e o arcipreste e Francisco Brás e André Jorge Francisco Vieira.

8) Item pelas mesmas denúncias que tornou pela excomunhão que impusera, prendeu um perfumista da localidade de Aveiro, a quem soltou por causa dos presentes que dele recebeu. / 85 /

9) Item, vindo o mesmo vigário de Coimbra para Aveiro, encontrou Eduardo Fernandes, genro de Maria de Leão, e prendeu-o, dizendo o tinha por culpado, e assim preso o conduziu até esta localidade; e, porque ele lhe deu os seus bens, o soltou. Testemunhas presentes para isto: Egídio Coelho Barrigelo e Caupona de Mamarosa e o citado Eduardo Fernandes.

10) Dirigiu-se para a localidade de Oliveira do Bairro, levando consigo Barrigelo, e entrou em casa do ourives Eduardo Fernandes e prendeu-lhe a mulher, declarando-a culpada; e, porque ela lhe deu dos seus bens e também galinhas para comer e vender, a soltou. Testemunhas presentes para isto: Egídio Coelho Barrigelo e Afonso Gomes, tabelião da dita localidade de Oliveira e sua mulher e a mulher de Eduardo Fernandes.

11) Item no ano pretérito fez por seu punho certa carta deprecatória e assinada pelo juiz de Mortágua a quem requeria prendesse Fernando de Medina, cristão novo, porque o considerava culpado por visita, sem para isto ter autorização. Testemunhas presentes para isto: o juiz da referida localidade de Mortágua e André Álvares (sentifero (?)) e o bispo reitor, a quem o juiz acima nomeado levou a mencionada carta, e Gonçalo Homem, soldado.

12) Item fez-se vigário geral do episcopado e por sua própria mão escreveu certa carta de excomunhão que um domingo começou a divulgar perante o povo, dizendo-se sem dúvida irmão João, mestre capelão de Nosso Senhor e vigário geral no espiritual e temporal na dita localidade de Aveiro, e dá cartas de excomunhão sem licença do bispo. Testemunhas para isto: Francisco Vetiva e o arcipreste e Francisco Brás, André Jorge e António Rodrigo e o prior de Santo Arbus (?).

13) Por aquele tempo em que entregou aos cárceres alguns cristãos novos da localidade indicada, andava a sua concubina em negociações pelas casas, dizendo que, se lhe dessem dos seus bens, faria que o vigário os não prendesse. Testemunhas para isto: Diogo Homem e mestre Adão e Jorge Nunes, Mercário e Luís Gomes Sancinatore (?), de quem a referida concubina extorquiu até... (?).

14) Item foi-lhe dado em confissão certo apitinu(?) de prata, assim vulgarmente chamado...... que tinha o peso de setecentos reais, e ele próprio lhe chamou seu e o vendeu. / 86 / Testemunhas para isto:. António Rodrigo e o arcipreste e Francisco Brás e André Jorge e Diogo Fernandes de Montemor, a quem pertencia o dito apitũ (?)

15) Item roubou certa cadeia da pia batismal e levou-a para sua casa, sita na «rua da Cruz», onde a tem....., e por tal motivo esteve aberta a pia. Testemunhas para isto: Francisco Vieira e o clérigo Diogo Dias e Francisco Brás e o arcipreste e António Rochio.

16) Item roubou certa parte da prata do turíbulo para os panos do altar, os quais não quis dar senão depois de, por isso, ser excomungado. Testemunhas para isto: o tesoureiro André Jorge e o arcipreste e António Rodrigo e Francisco Brás.

17) Item roubou dois livros pertencentes à igreja e certo cratinũ (?),que tudo teve em sua casa, e o tesoureiro ordenou que se obtivesse certa carta da excomunhão, que o próprio vigário publicou, e depois da publicação, durante alguns dias; de manhã, enquanto se rezavam as horas matutinas, foi encontrado o seu fâmulo com os mencionados livros, trazendo-os à igreja, e ele próprio foi além dos dias marcados, a partir do próprio tempo da publicação da referida carta. Testemunhas para isto: o tesoureiro André Jorge e o arcipreste e António Rodrigo e Francisco Velasco.

18) Item, estando...... a filha de Miguel Ribeiro, e porque dizia estar tomada do demónio, presente aí uma certa feiticeira, o vigário trouxe junto dele o Beato Bartolomeu para sua casa com uma estola, onde deixou tudo à mencionada feiticeira, durante muitos dias, e tinha ligado o Beato Bartolomeu com quatro ligaduras; e, estando a referida estola na cabeça da doente, a própria feiticeira fazia as suas rezas, e vinham muitas pessoas prestar-lhe as suas homenagens e interrogá-la acerca de seus maridos e filhos já defuntos, e o próprio vigário sabia tudo isto e ia ali sempre. Testemunhas para isto: Miguel Ribeiro e a senhora Catarina Lopes e o arcipreste e a mulher de Jorge Alvares e António Rodrigo e a mulher do mecânico André Gonçalves e André Jorge e Francisco Brás e a mulher do mecânico João Gonçalves.

19) Item como se confessasse ao mesmo certa serva de Pedro Anes Amado, governador da província, e revelando-lhe certo pecado que respeita à feiticeira, ele próprio a tentou, dizendo que queria dormir com ela, por ser bonita, e lançou-lhe a mão para fazer isso; e, porque a citada serva lho não consentiu, disse que exporia tal pecado ao visitador, / 87 / quando ele viesse; e que ela própria visse qual preferia: se consentir agora no desejo dele, ou ser denunciada. E porque ela o não quis consentir, acusou-a do dito pecado secreto ao irmão Luís, visitador, que pouco depois veio, o qual a condenou na pena de mil reais. Testemunhas para isto: a própria serva e o governador Eduardo Lopes e o arcipreste e António Rodrigo e Francisco Brás e André Jorge e Francisco Vieira.

20) Item confessando-se ao mesmo uma certa filha da Comumba (?)..., ele próprio lhe manifestou desejos de dormir com ela, por ser mulher de muito boa disposição, o que ela não quis consentir; e porque ele queria abusar, ela própria se queixou disto, e depois ele mandou-a prender, por causa do ódio que lhe tinha.

21) Item quando baptizava as crianças não quer dizer − «ego te baptizo in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti»; e, apesar de ser a este respeito repreendido, não o quis emendar, como aconteceu com certo filho de Cosme Diogo..., a quem baptizaram de novo, e com outros. Testemunhas para isto: o prior de S. Martinho, o tesoureiro André Jorge, Cosme Diogo ....., o barbeiro Bastião Vaz e o arcipreste.

22) Item não deve ter cuidado com as almas, porque é grande jogador e por isso não ministra, como lhe cumpre, os sacramentos necessários. Testemunhas para isto: António Rodrigo, Francisco Brás, o arcipreste e Miguel Rodrigo.

23) Item, estando um tal João Diogo, marinheiro do Alboi, para morrer, mandou chamar o dito vigário, a fim de lhe ministrar a extrema-unção; e, porque estava a jogar em casa de Lopo Alvares, não o quis fazer, apesar de ter sido repetidas vezes chamado, até que aquele morreu sem a referida unção. Testemunhas para isto: a mulher do referido João Diogo, André Jorge e o sacristão.

24) Item, como um sujeito de S. João estivesse moribundo, o qual na verdade veio a falecer em casa da Sr.ª Catarina, mandou chamar o referido vigário para que lhe fosse ministrar o sacramento da confissão, o que ele, por andar ocupado a caçar coelhos, não quis fazer. Por isso, o clérigo Diogo Dias foi-lhe ministrar a confissão, e depois disso mandou chamar de novo o mesmo vigário para que lhe desse a extrema-unção; e porque ele estivesse ocupado no jogo, recusou-se a fazer isso, e assim morreu o doente sem a referida unção. Testemunhas para isto: o arcipreste Diogo Dias e António Rodrigo. / 88 /

25) Item, entrou em casa do Bandaglio, assim vulgarmente chamado, porque lhe prendeu a mulher sem licença do Bispo e lhe esquadrinhou a casa até que encontrou certo recibo (?) do qual constava ser o próprio Bandaglio devedor de dinheiro, e dois barretes (?), o qual recibo imediatamente rasgou. Testemunhas: o Tabelião André Afonso, Fernando de Leão Bandaglio e sua mulher.

26) Item, estando André Martins casado com certa mulher, o mencionado Vigário obrigou-o a casar com uma serva de Miguel Ribeiro, por causa dos presentes que ela lhe deu; e embora Bastião Martins, pai do dito André Martins, lhe dissesse que os não unisse em casamento, porque ele era casado, não o quis fazer, e assim por ele foram praticados grandes latrocínios e devastações, e a citada outra mulher morreu. Testemunhas: Bastião Martins, o pai de André Martins e a sua mulher.

27) Item porque estas pessoas que vêm confessadas para receberem o Santo Sacramento, depois que estão na missa, lhes não quer dar o corpo de Nosso Senhor... e os faz levantar, até que de novo se confessem a ele e os obriga a dizer alguma coisa contra os seus senhores, como fez com certa serva que foi de Manuel Diogo e com a mulher de Pedro Jorge e com Agarena de Torres, as quais estando na igreja para receberem o Santo Sacramento, publicamente as mandou levantar, o que foi grande escândalo. Testemunhas para isto: eles próprios.

28) Item, tendo ele próprio a sua concubina na parte alta da vila junto do Corgo (?), assim vulgarmente chamado, e como tivesse chegado a mesma concubina, com quem dormira, celebrou missa no Espírito Santo; e, depois que comungou, por estar muito incomodado, vomitou, sem sobre isto tomar qualquer precaução. Testemunhas para isto: o tesoureiro André Jorge e a mulher. . . (?)

29) Item, depois de ter dado o corpo de Nosso Senhor a certo enfermo e ter voltado à igreja, pôs o Santo Sacramento no cálice sobre o altar, não querendo tornar a pô-lo na custódia; e, quando regressou não foi encontrado, a não ser algumas poucas partículas, a despeito do que lhe competia fazer. Testemunhas: o arcipreste, António Rodrigo, Francisco Brás e o tesoureiro André Jorge.

30) Item, tendo o tesoureiro André Jorge sessenta reais de esmolas e como o próprio vigário estivesse jogando e carecesse de dinheiro para o jogo, apropriou-se das ditas / 89 / esmolas, que imediatamente perdeu e não quis restituir ao referido André Jorge.

31) Item, na noite da Natividade do Senhor, dizendo missa um tal Salinia e estando na altura do Evangelho, veio o referido Vigário com grande fúria e tirou-lhe o cálice, tal qual como ele o tinha, e afastou-se sem o querer restituir. Pelo que foi necessário, para acabar a missa, ir buscar certo cálice pertencente à confraria da Santíssima Trindade. Testemunhas para isto: Salvador Fernandes, o tabelião João Peres, o acima dito presbítero Salinia, António Rodrigo.

32) Item, morrendo uma criança de certo Ferreira, servo de Fernando Álvares, procuraram o dito vigário em casa da mulher de Dionísio Pires, onde ele próprio estava com a amázia, para que lhe fosse dar sepultura, o que ele não quis fazer. Testemunhas: o próprio Ferreira e sua mulher e a mulher de Lourenço Anes Canar.

33) Item, sendo-lhe apresentada certa carta de excomunhão do Bispo de Coimbra por parte da mulher de João de Ipse (?) sobre certa contenda que Lopo Álvares, da mesma vila, tinha, estando o mesmo vigário no púlpito a fazer prédica, viu-o de pé; e porque a dita carta falava contra Lopo Álvares, do púlpito onde estava mandou-lhe perguntar se a publicaria ou não, o qual respondeu afirmativamente. Testemunhas: Lopo Álvares e o doutor Paulo Luís.

34) Item manda pescar aos domingos e apropria-se dos peixes que pescam, sem os pagar pelo seu valor; e por isto o mencionado vigário consente que pesquem em dias de festa, como fez com os filhos de Maria Peres, do palheiro, aos quais e a outros mandou pescar ao domingo, e por isso os absolveria, os quais pescaram muitos peixes, e até hoje não os quis pagar, e de igual modo fez com Eduardo Rodrigo e Francisco Rodrigo, de Sá. Testemunhas: todos esses.

35) Item exigiu a essa Maria Peres três mil reais, por isso que os filhos dela, ou um deles, não podiam contrair matrimónio. Testemunhas: eles e ela.

36) Item, dando-lhe João Peres certas casas de aluguer para a sua amázia, pela renda de mil e oitocentos reais, dos quais tinha de rezar um trintário ou ofício dos mortos, tomou para isso mil e duzentos reais, e até hoje não o quis dizer ou rezar. Testemunhas: João Peres e o médico Haro.

37) Item, cobrando João Peres as esmolas devidas a S. Sebastião, ele próprio lhe tirou quinhentos reais, que não / 90 / quis restituir, e pelo contrário se esforça por haver aquelas que restam, dizendo ao referido João que teve licença de celebrar missa na dita igreja de S. Sebastião, se der as mencionadas esmolas. Testemunhas: o dito João Peres.

38) Item foi a casa do cristão-velho João Egídio Largemo, a quem disse que era mau cristão, porque não ia à igreja, e por isso o ia excomungar; e, porque aquele lhe respondeu que era bom cristão e todos os domingos e dias festivos ia à igreja, pediu-lhe cem reais, para que o não publicasse, os quais ele lhe deu. Testemunhas: João Gonçalves e o tabelião João Peres.

39) Item, sabendo ele próprio que têm publicamente amázias o estalajadeiro que veio da cidade do Porto e além disso um ourives que também veio da mesma cidade, não os afasta dos ofícios divinos por causa dos bens que lhe dão e põe-nos a perder. Testemunhas: o arcipreste, António Rodrigo, Francisco Vieira, André Jorge, Francisco Brás.

40) Item, porque é de muito má vida, sendo dados ao visitador do Senhor Bispo os artigos (da acusação) e sobre eles interrogadas testemunhas, não quis deixar de jogar, nem no dia de hoje o quer fazer. Testemunhas para isto: o arcipreste, António Rodrigo, Francisco Brás, André Jorge, Diogo Lopes.

41) Item, como certa serva, chamada Isabel, abrisse de noite a porta da casa da sua concubina, querendo revelar-lhe alguma coisa, despiu-a, como se fosse a sua própria serva e, com grande aspereza e crueldade, como com razão costuma fazer aos próprios servos, bateu-lhe desalmadamente. Testemunhas para isto: o filho Bedes; Francisco, filho de mestre Simão Peres e a própria serva.

42) Item, prendeu na igreja certa mulher de Ferrário Vicente, a qual viveu com Fernando Álvares desta vila, conduziu-a a sua casa e interrogou-a muito, e muito a exortou a jurar que eles eram judeus, a fim de salvar a sua alma; e porque ela não lhe quis fazer a vontade, injuriou-a muito, dando-lhe o nome de meretriz e muitos outros desonestos. Testemunhas: a dita mulher e Francisco Vieira.

43) Item, mandou prender na vila o jovem Adão e depois com certo notário apostólico fazia-se passar por inquisidor e interrogava pelos crimes ou culpas daquele e instantemente obrigava as pessoas a jurar contra o mesmo, as quais também com as maiores excomunhões por esse facto obrigava, / 91 / e ralhava com as mesmas, por não jurarem falso contra o mesmo: Testemunhas para isto: Pedro Tomás e sua mulher Isabel Dias, e o clérigo Salinia que era o escrivão.

44) Item, sabendo que a serva do governador Pedro Anes Amado jurara contra ele próprio sobre o supradito artigo (de acusação), que fala nele, temendo aquele mau e grande pecado, que contra este cometera, socorre-se de Lopo Álvares para que lhe valesse e fizesse que a mesma serva não jurasse contra ele; o qual Lopo Álvares mandou chamar no dia de S. João esta mulher e a mãe dela, dizendo-lhe com muita instância que não culpassem o vigário; e, ao fazerem a inquirição, ele próprio afastara a dita mulher, para que ela  não pudesse depor. Testemunhas: Lopo Álvares e a própria mulher, e o governador e sua mulher e a mãe da mulher e da ama do governador e Álvaro Doquintes e o mestre Dr. Gregório.

45) Item, como contra outra Isabel Caldeira, por causa de rendas da sua capela que lhe não haviam sido pagas, publicasse uma carta de excomunhão, um tal Ferreira deu ao mesmo vigário duzentos reais, para que ele os entregasse à dita Isabel ou ao seu procurador Fernando, os quais ele nunca quis entregar. Testemunhas: Fernando de Leão.

46) Item, roubou da casa do mestre Luís dois livros de Física, do valor de dez ducados. Testemunhas: o juiz Pedro Dermaro, o tabelião Manuel Dias e o físico Flávio.

47) Item, o mesmo vigário induziu Pedro Anes Mendes (?) de Alcântara, sendo habitante do lugar de Alboi, à ir a Coimbra jurar falso contra certo cristão novo, que ali foi, e ele não quis jurar, e ele disse-o ao nobre Álvaro de Sousa que logo no dia seguinte disse aquilo ao vigário no cemitério da igreja, estando presente o tabelião Fernando Diogo.

*

Não desejamos comentar nada do que acima fica: consideramo-lo, segundo já dissemos, mero testemunho histórico de uma época distante, e como tal o oferecemos ao futuro historiador da evolução social do nosso Distrito, que não pode, evidentemente, dispensar-se do conhecimento integral de documentos desta categoria.

Ele os julgará na sua serena imparcialidade.

ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL

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(1)Arquivo Histórico Português, vol. 1, 369.

(2)Tomo III, págs, 151 e segs. da 9.ª edição..

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