TOCAS DAS
MOURAS ENCANTADAS
NÃO é difícil ver nesta
região de Vouga, em pedreiras,
nos sopés de certos montes, umas bocarras, cavernas abertas nas montanhas, maiores umas, menores outras;
e lá para dentro tudo escuridão. A tais cavernas, a que
andam ligadas velhas e interessantes lendas e que deitam
uma interrogação de mistério de épocas remotas a pairar nos
espíritos dos simples, chama o povo Tocas das Mouras(1)
ou Covas das Mouras.
Ora, ali na freguesia de
Travassô e no caminho que,
de Almear, vai por Picão até à Senhora do Amparo, havia duas Tocas de Mouras. Uma em terreno da família «Mouco»,
próximo à linha do Vale do Vouga; a outra no sítio do Vale
do Olho, em terreno da família «Laranjeira».
A primeira dessas Tocas abria na pedreira uma grande
bocarra aos olhos dos curiosos. E toda a caverna devia
medir: − oito metros de largura, na frente, por três de altura,
e seis a sete metros de fundo, o tecto em abóbada.
Toca da Moura! Moura que por ali andava encantada
desde tempos de antanho, a verdade é que muitas crianças
tinham medo de por lá passar. Ainda me lembro que, em
pequeno, ali fui algumas vezes, entrei na Toca, e recordo-me
que lá pelo fundo escuro havia, aqui e ali, pequenas conchas
e seixos do mar, reminiscência dos tempos em que águas do
Oceano banharam a região.
Mais tarde, há dez anos, se tanto, fizeram da Toca um
depósito de pólvora e taparam-na com uma parede e uma
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porta. Ultimamente, homens de negócios de pedreiras, com
tiros de dinamite desfizeram a Toca e o mistério que a envolvia.
Mas lenda interessante a da Toca da Moura do Vale do
Olho. Essa, sim!
Várias vezes tenho ouvido contar essa lenda, e da última
vez contou-ma a Sr.ª Claudina de Castro Laranjeira, de setenta
anos, aproximadamente, residente no Lugar de Baixo, em
Travassô. Seus pais também lha haviam contado assim, e
já seus avós a contaram a seus pais:
− Ali, no sítio do Vale do Olho, na grande pedreira que
margina o sítio, havia, antigamente, duas aberturas na rocha,
uma espécie de pequenas portas que mal davam passagem a
regular corpo humano. Estas estreitas aberturas conduziam,
por curioso labirinto, a uma sala subterrânea aberta na própria rocha. Desta sala partia extensa galeria que ia até ao lugar da Fontinha, em Segadães, cerca de três quilómetros
de distância (furando por baixo de pinhais e terras de semeadura, onde havia uma pequena fonte de água milagreira que
à Moura muito apetecia.
E conta-se que certa vez, pessoa
que tinha em dúvida se
a dita galeria ia de facto até à Fontinha, tocou por ali dentro
um cavalo branco e agarrou-se à cauda do animal, porque,
baixa que era a galeria, não podia o curioso ir montado.
A propósito informou-me o Sr. José Martins Taveira
de que, na freguesia de Segadães (a que pertence o lugar da
Fontinha), no sítio do Poço das Pipas(2), existe uma bocarra de caverna
a que chamam ali Cova da Moura, e que, segundo
a lenda que corria entre as gentes daquela freguesia, essa
Cova da Moura comunicava, também por extensa galeria,
com Travassô, provavelmente com a referida Toca da Moura
do Vale do Olho, de onde se conclui que a dita lenda era
contada e tida por verdadeira entre as gentes das duas freguesias e redondeza.
Mas vamos continuar a história da Toca da Moura do
Vale do Olho: − À frente da Toca, em seguimento das duas
pequenas portas abertas na rocha e viradas para a largueza
dos campos do dito Vale, onde ao tempo andavam águas
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feitas no próprio lajedo vermelho da grande pedreira.
Ora, acontecia que, pelas
tardes soalheiras, a Moura trazia lá de dentro o seu muito ouro e ali o
vinha arejar, naquelas eirinhas, à luz forte
do Sol. E muito desse ouro, conta-se, estava transformado em utensílios
de lavoura, como arados, grades, machados, ancinhos, enxadas,
forquilhas, foucinhas − tudo de ouro.
Porém, certo dia, um homem que numa embarcação
navegava por aquelas águas do Mar (um Braço do Mar), ao
aproximar-se da margem viu, nas eirinhas, a luzir, grande quantidade de objectos daquele metal, ali espalhados. Olhos em cobiça,
encosta a embarcação à terra e, não vendo a Moura, sorrateiramente se
aproxima das eirinhas e já as mãos punha em alguns objectos daquele
ouro quando, de repente, aparece a Moura que o surpreendeu no furto.
E logo a Moura a correr atrás do homem, não tendo
este tempo de entrar
na embarcação. E sempre no seu encalço, conseguiu deitar a mão ao
casaco que o embarcadiço vestia; mas, astuto, o homem pôde livrar-se do
casaco, despindo-o e deixando-o nas mãos da Moura, e lá se foi com o
ouro...
Então a Moura, enraivecida, rasga o casaco às tiras e assim o homem
o foi encontrar dentro do seu barco, que andava à deriva, dois dias e
duas noites passadas, quando a lua era quarto crescente.
Esta Toca da Moura do Vale do
Olho também os homens de negócios de
pedra a desfizeram com tiros de dinamite, mas conta-se ainda a
interessante lenda entre o povo.
E há na região mais Tocas de Mouras, como atrás digo.
No limite do lugar de Casal de Álvaro, freguesia de EspinheI, há outra,
também de curiosa lenda, com subterrâneos que
'também vão muito longe, muito longe... E há outra numas pedreiras
entre Almear e a Fontinha. E há mais, por outras localidades.
E o sítio da Bicha Moura, em Águeda, diz-me o Dr. Adolfo de Almeida Ribeiro(3) que também anda ligado a curiosa lenda de Moura
Encantada.
OS OSSOS DE PILATOS
Na Mourisca, localidade desta região de Vouga e pertencente à freguesia
da Trofa, corre uma lenda a propósito dos ossos de Pilatos, que me foi
contada por um filho da Mourisca, o Sr. Fernando Corga de Melo Rocha. E
embora toda
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a gente da região tenha ouvido falar nos Ossos de Pilatos,
quando aludem àquela localidade, estou certo de que a maioria
desconhece a origem da lenda que vou relatar:
− Ao tempo em que por ali não havia estradas, mas
simples caminhos mal amanhados (Portugal medieval), já existiam na
Mourisca algumas casotas e já residentes do
pequeno povoado de então se dedicavam á velha e rudimentar indústria de
taxas e cravos (hoje bastante desenvolvida), e por ali passavam a caminho de Coimbra ou de
regresso a suas terras, lá mais para o Norte, muitos estudantes.
Ora, sempre que por ali
passavam, os estudantes (talvez
para se divertirem) praticavam diabruras com os homens das
taxas e dos cravos da Mourisca, e, estes, não gostando de
tais brincadeiras, resolveram, certa vez, esperar os estudantes,
e dar-lhes uma lição. Assim aconteceu.
Os amotinados esperaram os
rapazes, houve escaramuças,
e, não podendo estes com aqueles, puseram-se em fuga. Mas,
um dos estudantes, ou porque não quisesse fugir ou porque,
sendo apanhado, reagisse, foi morto pelos amotinados da
Mourisca, que logo deram sumiço ao corpo da vítima para
assim evitarem ser incomodados pelas autoridades. Esse estudante
chamava-se Pilatos.
Mais tarde, os seus companheiros e a família do estudante morto pretenderam saber,
sem resultado, dos ossos
da vítima, e, daí, a pergunta que ainda hoje se faz às gentes
da Mourisca: − onde estão os ossos de Pilatos?(4)
Como se vê, não há nenhuma ligação entre o nome
deste
Pilatos e o do célebre Governador que lavou as mãos quando
do famoso e piedoso drama cristão.
Aveiro, Abril de 1944.
LAUDELINO DE MIRANDA MELO
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