Tema da tese destinada a
obter a carta do Curso de Pintura, realizada em Abril e Maio de 1943
na Escola de Belas Artes de Lisboa.
FOLHEEI a História
de Portugal, procurando um Vulto Feminino que me interessasse, provocando a minha
admiração e fazendo vibrar a minha sensibilidade.
Entre tantas portuguesas ilustres, ou heroínas, célebres por diversos
motivos, e exemplos de patriotismo e de coragem, ou simplesmente notáveis
pela sua extraordinária
beleza, e também algumas grandes amorosas, impôs-se ao
meu espírito uma Figura gentil, pura como uma açucena. aureolada pela
Fé, que abandonou as grandezas e vaidades da corte para se entregar a
uma vida de mortificações, de
caridade e de amor a Deus e ao próximo: a Princesa Santa Joana!
Em redor do Vulto insinuante e piedoso da linda filha de D. Afonso V,
comecei idealizando assunto para a última prova do meu curso: a tese −
tendo sempre presente na retina aquele belíssimo retrato da Princesa (em
trajo de corte) existente no Museu de Aveiro, boca de expressão
inocente, angelical, quase infantil, olhos azuis transparentes, de
profunda expressão, olhar de iluminada, revelando pensamentos
superiores, pairando em regiões celestiais, longe das vaidades mesquinhas do mundo.
A Princesa vive na corte, ostentando as luxuosas galas,
veludos, cetins, brocados, ouro e pedrarias, porque assim é
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274 / preciso que
se apresente aquela ínclita filha do Rei na faustosa
época de D. Afonso V. No entanto, debaixo das galas, existem cilícios e
roupas grosseiras de estamenha.
Junto dos seus aposentos oculta-se uma cela paupérrima de monja,
humílimo catre, onde aquela estrela de primeira
grandeza passa as melhores horas das suas devoções. A princesa vive para
Deus, despreza os prazeres mundanos, embora tenha de tomar parte neles,
o que faz com toda a simplicidade, sem dar a perceber as abstinências
a que se obriga, a caridade que pratica, as devoções a que se entrega.
Essa coroa de espinhos, que mandou pintar nas paredes da sua câmara,
bordar em suas roupas, gravar em suas pratas, foi o emblema escolhido
pelo seu espírito sedento de martírio ansiando pela conquista da Bemaventurança Eterna. Humildemente, sacrifica-se às conveniências
políticas do seu reino, palpita no desejo ardente de ver aparecer um
herdeiro da coroa, assegurando assim a independência da Sua querida
Pátria. Solucionado este problema com a sucessão de D. João lI, a
Princesa entra no Convento de Odivelas (ponto sobre o qual, aliás, divergem os autores).
Consultei, para me documentar sobre a vida de Santa
Joana:
D. FERNANDO CORREA DE LACERDA (Bispo do Porto),
Virtuosa Vida e Santa Morte da Princesa Santa
Joana − Reflexões morais e políticas sobre a sua vida
e morte.
D. ANTÓNIO CAETANO DE SOUSA,
História Genealógica
da Casa Real Portuguesa, tomo IlI, cap. II.
FREI LUÍS DE SOUSA, História de S. Domingos, voI. lI,
liv. V, cap. I; Do nascimento, criação, princípios de vida da
Princesa Dona Joana.
O manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa,
Fundo Geral, n.º 2692, fl. 4.
D. BERNARDA PINHEIRO, contemporânea da Princesa,
Breve Memorial da Mui excelente Princesa e Mui Virtuosa Senhora Infanta
Dona Joana Nossa Senhora filha de D. Afonso V e da Rainha D. Isabel sua
mulher.
Consultadas estas obras, fiquei com uma ideia assente sobre as virtudes cristãs e a inclinação para a vida monástica da filha
de D. Afonso V; sinto a sua alma de Eleita desprendendo-se da terra logo nos primeiros anos da sua mocidade, e o seu
espírito torturado na ânsia de perfeição para ganhar o Céu.
Folheei depois a Crónica d'El-Rei D. Afonso V, de RUI
DE PINA. Este cronista inclina-se a que a Princesa foi para
o Convento de Odivelas por imposição de seu pai, não só
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para evitar futuros escândalos, dado o seu estado de solteira, vivendo
em sua casa, como também para reprimir exagerados gastos devidos à vida
faustosa que se fazia no Paço da Infanta. Consultadas, portanto, as
crónicas de RUI DE PINA e também as de DAMIÃO DE GÓIS, e ainda o livro
Linhagens de Portugal, existente na Academia de Ciências de Lisboa,
encontrei opiniões bem diversas daquelas que colhi nas obras a que aludi
anteriormente e que são as que mais pesam na minha maneira de sentir.
Segundo estes cronistas, não foi a vocação para a vida monástica que
levou a Princesa a abandonar o Mundo.
DAMIÃO DE GÓIS alude a um moço fidalgo, Duarte de Sousa, que D. Afonso
V mandara degolar, talvez por suspeitar certo romance amoroso entre o
jovem cortesão e a linda Princesinha de cabelos de ouro.
Modernamente também Mestre HENRIQUE LOPES DE MENDONÇA investigou em
vários documentos e fez ciente de suas investigações a Academia das
Ciências de Lisboa − investigações que o levaram a concordar com os cronistas atrás citados.
O Dr. JÚLIO DANTAS. segue as ideias do Prof. HENRIQUE LOPES DE
MENDONÇA e no seu livro Arte de Amar apresenta a obstinação da Princesa
em abandonar o mundo (trocando a vida da Corte pelo claustro)
resultante de um desgosto de amor. E vai mais longe, profetizando que em
futuras investigações se venha a provar que a Princesa não teria sido
uma grande Santa Dominicana, mas uma amorosa da nossa História.
Todas estas e algumas outras
notas, curiosas, se encontram igualmente no prefácio do livro
intitulado:
Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e Memorial da
Infanta Santa Joana, filha de El-Rei D. Afonso V − Códice
quinhentista − Leitura, revisão e prefácio de ANTÓNIO GOMES DA ROCHA
MADAHIL.
D. MARIA DE MENDONÇA, no seu livro
Santas de Portugal,
esboço de agiografia nacional, discorda da opinião de RUI DE PINA. Para
esta Senhora a Princesa sentiu sempre o desejo ardente de se consagrar à
religião, e o seu misticismo, o seu grande amor ao sofrimento, denunciou-o a escolha do emblema
− a coroa de espinhos.
Para quem, como eu, não for literato nem investigador em livros
modernos ou em alfarrábios antigos, o que acerca destes problemas
históricos possa haver de verídico ou de irreal não interessa senão
dentro de certos aspectos. Sobretudo vejo a Princesa consumir-se
espiritualmente nas
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êxtase feliz, no seu Convento de Jesus em Aveiro. A Princesa não nascera
para gozar os bens terrenos; nascera e
criara-se para Deus, para ser mais um anjo no Céu e mais
uma Bemaventurada a reinar, eternamente coroada, na Corte Celestial.
Estudada cuidadosamente a vida da filha de D. Afonso
V, conhecida a
suave beleza da sua personalidade, restava-me
escolher, em sua Virtuosa Vida e Santa Morte, um dos momentos
culminantes, sobre o qual pudesse delinear o meu quadro. O momento
escolhido foi aquele em que a Santa mais se aproximou de Deus, isenta de
pecados, a entregar a alma ao seu Criador.
Estudei pois todas as obras já citadas e tomei apontamento dos capítulos referentes à morte da Princesa Santa
Joana.
ASSUNTO DO QUADRO
Na sua cela do Convento de Jesus em Aveiro, sobre uma cama estreita e
dura (segundo o costume monástico) Santa Joana agoniza, rodeada por
algumas religiosas da Ordem Dominicana. Junto da cama está armado um
altar,
que se divisa levemente ao fundo. Dois Padres Dominicanos,
os confessores da Princesa, rezam a seu pedido o «Ofício da Agonia»; um
dos sacerdotes lê as orações e o outro acompanha-o com um círio bento na
mão. Junto à cabeceira da cama, à direita, uma religiosa, ajoelhada,
sustenta na mão pálida e transparente da moribunda um círio bento; a mão
esquerda da Princesa aperta ao peito um crucifixo. Do lado esquerdo da
cama, outra religiosa de pé ocupa-se a acomodar serenamente o
travesseiro onde repousa a iluminada cabeça da Santa Princesa. Aos pés
da cama, duas Dominicanas ajoelhadas rezam, chorando, uma curvada sobre
o leito e a outra erguendo os olhos para o Céu, Ao fundo da cela ainda
se avistam, envoltas na penumbra, algumas religiosas.
A Princesa não chegara a professar, devido a exigências políticas:
imposições do Rei, da Corte, do povo e até de alguns altos dignitários
da igreja.
Na História de S. Domingos, FREI LUÍS DE SOUSA diz:
«Pertence ao Mosteiro de Jesus de Aveiro, a Princesa Dona Joana como
qualquer filha de profissão dele; porque ainda que não chegou a
professar solenemente, impedida primeiro por seu Pai e Irmão e por todo
o
Reino: e depois por escrúpulo próprio de se ver cercada de muitas
enfermidades, com tudo em seu ânimo
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277 /
[Vol. IX
- N.º 36 - 1943]
e obras foi verdadeira religiosa. E como nos honrou a casa com sua
pessoa, razão será que honremos também estes escritos com a relação da
sua vida.»
A página 245 do livro Virtuosa Vida e Santa Morte da
Princesa Santa Joana, que já citei, encontra-se o seguinte:
«Pediu à Prioresa, com toda a humildade, a amortalhassem no hábito de que sempre se tivera por
indigna...»
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278 /
Abandonando o rigor histórico, representei a Princesa
com o hábito de Dominicana, porque se Ela não era freira professa, pelo
menos o seu amor a Jesus e o seu ardente desejo de professar eram
sobejas razões para poder ser considerada como tal, e ainda porque não me parece
inverosímil que, realmente, no momento da sua morte, lhe tivessem
vestido o hábito como derradeira manifestação de apreço e veneração,
dado o desejo por ela própria manifestado. É esta a minha maneira de
sentir; mas se errei, se a Santa não deveria ser assim representada, que
Ela, a Santa Padroeira da Cidade de Aveiro, me perdoe, porque se a obra
for má, se a execução for fraca, a intenção é boa.
Sobre o leito, a Santa eleva para o Céu seus olhos já embaciados pelas
névoas da morte; seu rosto de alvura transparente, apesar de macerado
pelo prolongado sofrimento físico, esplende júbilo pela aproximação da
Vida Eterna; seus lábios quase sorriem beatificamente, em êxtase
divino.
Aquela alma pura que se restitui sem culpa, com a Baptismal inocência,
no Céu, para onde foi criada, antevê certamente nó momento supremo
(enquanto segura contra o peito o Santo Crucifixo), entre nuvens que se
esbatem em suavíssimos cambientes de cor, luminosas figurinhas de
anjos, de túnicas alvinitentes, de asas brancas de neve,
rodeando a Virgem Nossa Senhora, que inclinada para a
terra de onde se desprende aquela Alma Eleita, esboça um amoroso gesto
de acolhimento. Toda a claridade se deverá espalhar suavemente pela
parte superior da tela, friso de alas nevadas e cabeças de anjos
nimbadas de ouro.
Mencionadas todas as fontes de informação, resta-me ainda dizer que,
sobre a indumentária religiosa e hábitos monásticos, todos os
esclarecimentos me foram gentilmente prestados pela Reverenda Madre
Prioresa do Convento do Bom Sucesso e pelos Reverendos Dominicanos do
Corpo Santo.
Consultei ainda os livros:
Cerimonial e Ordinário Monástico, de Fr. MANUEL DA GRAÇA, editado em
Coimbra na Real Imprensa da
Universidade no ano de 1794.
Vida Monástica: ldeales de la Edad Média, de
W. VEDEL.
A Encadernação em Portugal, por MATIAS LIMA.
Na Biblioteca Nacional de Lisboa observei um magnífico
in-fólio, um
precioso gótico, impresso em bom papel, a duas colunas: O Floreto de S.
Francisco. Este livro é encadernado
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279 / em tábuas forradas de couro preto, ornado de vincos
em diagonal, formando losangos, e a meio destes uns lavores
formados pela pressão de ferros singelos. No papel que
forra interiormente a tábua está assinado: Fr. JOÃO DA PÓVOA,
confessor de D. João II. O autor desta encadernação foi
Fr. Álvaro da Ilha, que a confeccionou em Xabregas no
ano de 1493. Desta encadernação se têm ocupado vários
autores, como: FRANCISCO MARTINS DE ANDRADE, Catálogo das
Obras do XV Século, que possui a Biblioteca Nacional de
Lisboa, págs. 48 a 49; GABRIEL PEREIRA, Boletim Mensal da
Livraria M. Gomes, n.º 6, Lisboa, 1884.
Como no quadro existem dois livros, tomei
este exempIar de encadernação do século XV por modelo para o meu
trabalho.
O quadro Morte da Princesa Santa
Joana pertence à Escola de Belas Artes
de Lisboa, que me concedeu a carta do Curso Superior de Pintura com a
classificação de 18 valores, e foi, há pouco, superiormente cedido em
depósito ao Museu Municipal do Dr. Santos Rocha, da Figueira da Foz.
1943.
EUGÉNIA COELHO |