Eugénia Coelho, Memória descritiva do quadro «Morte da Princesa Santa Joana, Vol. IX, pp. 273-279.

MEMÓRIA DESCRITIVA DO

QUADRO «MORTE DA

PRINCESA SANTA JOANA»

Tema da tese destinada a obter a carta do Curso de Pintura, realizada em Abril e Maio de 1943 na Escola de Belas Artes de Lisboa.


FOLHEEI a História de Portugal, procurando um Vulto Feminino que me interessasse, provocando a minha admiração e fazendo vibrar a minha sensibilidade. Entre tantas portuguesas ilustres, ou heroínas, célebres por diversos motivos, e exemplos de patriotismo e de coragem, ou simplesmente notáveis pela sua extraordinária beleza, e também algumas grandes amorosas, impôs-se ao meu espírito uma Figura gentil, pura como uma açucena. aureolada pela Fé, que abandonou as grandezas e vaidades da corte para se entregar a uma vida de mortificações, de caridade e de amor a Deus e ao próximo: a Princesa Santa Joana!

Em redor do Vulto insinuante e piedoso da linda filha de D. Afonso V, comecei idealizando assunto para a última prova do meu curso: a tese − tendo sempre presente na retina aquele belíssimo retrato da Princesa (em trajo de corte) existente no Museu de Aveiro, boca de expressão inocente, angelical, quase infantil, olhos azuis transparentes, de profunda expressão, olhar de iluminada, revelando pensamentos superiores, pairando em regiões celestiais, longe das vaidades mesquinhas do mundo.

A Princesa vive na corte, ostentando as luxuosas galas, veludos, cetins, brocados, ouro e pedrarias, porque assim é / 274 / preciso que se apresente aquela ínclita filha do Rei na faustosa época de D. Afonso V. No entanto, debaixo das galas, existem cilícios e roupas grosseiras de estamenha.

Junto dos seus aposentos oculta-se uma cela paupérrima de monja, humílimo catre, onde aquela estrela de primeira grandeza passa as melhores horas das suas devoções. A princesa vive para Deus, despreza os prazeres mundanos, embora tenha de tomar parte neles, o que faz com toda a simplicidade, sem dar a perceber as abstinências a que se obriga, a caridade que pratica, as devoções a que se entrega.

Essa coroa de espinhos, que mandou pintar nas paredes da sua câmara, bordar em suas roupas, gravar em suas pratas, foi o emblema escolhido pelo seu espírito sedento de martírio ansiando pela conquista da Bemaventurança Eterna. Humildemente, sacrifica-se às conveniências políticas do seu reino, palpita no desejo ardente de ver aparecer um herdeiro da coroa, assegurando assim a independência da Sua querida Pátria. Solucionado este problema com a sucessão de D. João lI, a Princesa entra no Convento de Odivelas (ponto sobre o qual, aliás, divergem os autores).

Consultei, para me documentar sobre a vida de Santa Joana:

D. FERNANDO CORREA DE LACERDA (Bispo do Porto), Virtuosa Vida e Santa Morte da Princesa Santa Joana − Reflexões morais e políticas sobre a sua vida e morte.

D. ANTÓNIO CAETANO DE SOUSA, História Genealógica da Casa Real Portuguesa, tomo IlI, cap. II.

FREI LUÍS DE SOUSA, História de S. Domingos, voI. lI, liv. V, cap. I; Do nascimento, criação, princípios de vida da Princesa Dona Joana.

O manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa, Fundo Geral, n.º 2692, fl. 4.

D. BERNARDA PINHEIRO, contemporânea da Princesa, Breve Memorial da Mui excelente Princesa e Mui Virtuosa Senhora Infanta Dona Joana Nossa Senhora filha de D. Afonso V e da Rainha D. Isabel sua mulher.

Consultadas estas obras, fiquei com uma ideia assente sobre as virtudes cristãs e a inclinação para a vida monástica da filha de D. Afonso V; sinto a sua alma de Eleita desprendendo-se da terra logo nos primeiros anos da sua mocidade, e o seu espírito torturado na ânsia de perfeição para ganhar o Céu.

Folheei depois a Crónica d'El-Rei D. Afonso V, de RUI DE PINA. Este cronista inclina-se a que a Princesa foi para o Convento de Odivelas por imposição de seu pai, não só / 275 / para evitar futuros escândalos, dado o seu estado de solteira, vivendo em sua casa, como também para reprimir exagerados gastos devidos à vida faustosa que se fazia no Paço da Infanta. Consultadas, portanto, as crónicas de RUI DE PINA e também as de DAMIÃO DE GÓIS, e ainda o livro Linhagens de Portugal, existente na Academia de Ciências de Lisboa, encontrei opiniões bem diversas daquelas que colhi nas obras a que aludi anteriormente e que são as que mais pesam na minha maneira de sentir. Segundo estes cronistas, não foi a vocação para a vida monástica que levou a Princesa a abandonar o Mundo.

DAMIÃO DE GÓIS alude a um moço fidalgo, Duarte de Sousa, que D. Afonso V mandara degolar, talvez por suspeitar certo romance amoroso entre o jovem cortesão e a linda Princesinha de cabelos de ouro.

Modernamente também Mestre HENRIQUE LOPES DE MENDONÇA investigou em vários documentos e fez ciente de suas investigações a Academia das Ciências de Lisboa − investigações que o levaram a concordar com os cronistas atrás citados.

O Dr. JÚLIO DANTAS. segue as ideias do Prof. HENRIQUE LOPES DE MENDONÇA e no seu livro Arte de Amar apresenta a obstinação da Princesa em abandonar o mundo (trocando a vida da Corte pelo claustro) resultante de um desgosto de amor. E vai mais longe, profetizando que em futuras investigações se venha a provar que a Princesa não teria sido uma grande Santa Dominicana, mas uma amorosa da nossa História.

Todas estas e algumas outras notas, curiosas, se encontram igualmente no prefácio do livro intitulado:

Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e Memorial da Infanta Santa Joana, filha de El-Rei D. Afonso V − Códice quinhentista − Leitura, revisão e prefácio de ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL.

D. MARIA DE MENDONÇA, no seu livro Santas de Portugal, esboço de agiografia nacional, discorda da opinião de RUI DE PINA. Para esta Senhora a Princesa sentiu sempre o desejo ardente de se consagrar à religião, e o seu misticismo, o seu grande amor ao sofrimento, denunciou-o a escolha do emblema − a coroa de espinhos.

Para quem, como eu, não for literato nem investigador em livros modernos ou em alfarrábios antigos, o que acerca destes problemas históricos possa haver de verídico ou de irreal não interessa senão dentro de certos aspectos. Sobretudo vejo a Princesa consumir-se espiritualmente nas / 276 / sumptuosas salas dos Paços Reais e vejo-a depois viver em êxtase feliz, no seu Convento de Jesus em Aveiro. A Princesa não nascera para gozar os bens terrenos; nascera e criara-se para Deus, para ser mais um anjo no Céu e mais uma Bemaventurada a reinar, eternamente coroada, na Corte Celestial.

Estudada cuidadosamente a vida da filha de D. Afonso V, conhecida a suave beleza da sua personalidade, restava-me escolher, em sua Virtuosa Vida e Santa Morte, um dos momentos culminantes, sobre o qual pudesse delinear o meu quadro. O momento escolhido foi aquele em que a Santa mais se aproximou de Deus, isenta de pecados, a entregar a alma ao seu Criador.

Estudei pois todas as obras já citadas e tomei apontamento dos capítulos referentes à morte da Princesa Santa Joana.


ASSUNTO DO QUADRO

Na sua cela do Convento de Jesus em Aveiro, sobre uma cama estreita e dura (segundo o costume monástico) Santa Joana agoniza, rodeada por algumas religiosas da Ordem Dominicana. Junto da cama está armado um altar, que se divisa levemente ao fundo. Dois Padres Dominicanos, os confessores da Princesa, rezam a seu pedido o «Ofício da Agonia»; um dos sacerdotes lê as orações e o outro acompanha-o com um círio bento na mão. Junto à cabeceira da cama, à direita, uma religiosa, ajoelhada, sustenta na mão pálida e transparente da moribunda um círio bento; a mão esquerda da Princesa aperta ao peito um crucifixo. Do lado esquerdo da cama, outra religiosa de pé ocupa-se a acomodar serenamente o travesseiro onde repousa a iluminada cabeça da Santa Princesa. Aos pés da cama, duas Dominicanas ajoelhadas rezam, chorando, uma curvada sobre o leito e a outra erguendo os olhos para o Céu, Ao fundo da cela ainda se avistam, envoltas na penumbra, algumas religiosas.

A Princesa não chegara a professar, devido a exigências políticas: imposições do Rei, da Corte, do povo e até de alguns altos dignitários da igreja.

Na História de S. Domingos, FREI LUÍS DE SOUSA diz:


«Pertence ao Mosteiro de Jesus de Aveiro, a Princesa Dona Joana como qualquer filha de profissão dele; porque ainda que não chegou a professar solenemente, impedida primeiro por seu Pai e Irmão e por todo o Reino: e depois por escrúpulo próprio de se ver cercada de muitas enfermidades, com tudo em seu ânimo
/ 277 / [Vol. IX - N.º 36 - 1943] e obras foi verdadeira religiosa. E como nos honrou a casa com sua pessoa, razão será que honremos também estes escritos com a relação da sua vida.»

A página 245 do livro Virtuosa Vida e Santa Morte da Princesa Santa Joana, que já citei, encontra-se o seguinte:

«Pediu à Prioresa, com toda a humildade, a amortalhassem no hábito de que sempre se tivera por indigna...» / 278 /

Abandonando o rigor histórico, representei a Princesa com o hábito de Dominicana, porque se Ela não era freira professa, pelo menos o seu amor a Jesus e o seu ardente desejo de professar eram sobejas razões para poder ser considerada como tal, e ainda porque não me parece inverosímil que, realmente, no momento da sua morte, lhe tivessem vestido o hábito como derradeira manifestação de apreço e veneração, dado o desejo por ela própria manifestado. É esta a minha maneira de sentir; mas se errei, se a Santa não deveria ser assim representada, que Ela, a Santa Padroeira da Cidade de Aveiro, me perdoe, porque se a obra for má, se a execução for fraca, a intenção é boa.

Sobre o leito, a Santa eleva para o Céu seus olhos já embaciados pelas névoas da morte; seu rosto de alvura transparente, apesar de macerado pelo prolongado sofrimento físico, esplende júbilo pela aproximação da Vida Eterna; seus lábios quase sorriem beatificamente, em êxtase divino.

Aquela alma pura que se restitui sem culpa, com a Baptismal inocência, no Céu, para onde foi criada, antevê certamente nó momento supremo (enquanto segura contra o peito o Santo Crucifixo), entre nuvens que se esbatem em suavíssimos cambientes de cor, luminosas figurinhas de anjos, de túnicas alvinitentes, de asas brancas de neve, rodeando a Virgem Nossa Senhora, que inclinada para a terra de onde se desprende aquela Alma Eleita, esboça um amoroso gesto de acolhimento. Toda a claridade se deverá espalhar suavemente pela parte superior da tela, friso de alas nevadas e cabeças de anjos nimbadas de ouro.

Mencionadas todas as fontes de informação, resta-me ainda dizer que, sobre a indumentária religiosa e hábitos monásticos, todos os esclarecimentos me foram gentilmente prestados pela Reverenda Madre Prioresa do Convento do Bom Sucesso e pelos Reverendos Dominicanos do Corpo Santo.

Consultei ainda os livros:

Cerimonial e Ordinário Monástico, de Fr. MANUEL DA GRAÇA, editado em Coimbra na Real Imprensa da Universidade no ano de 1794.

Vida Monástica: ldeales de la Edad Média, de W. VEDEL.

A Encadernação em Portugal, por MATIAS LIMA.

Na Biblioteca Nacional de Lisboa observei um magnífico in-fólio, um precioso gótico, impresso em bom papel, a duas colunas: O Floreto de S. Francisco. Este livro é encadernado / 279 / em tábuas forradas de couro preto, ornado de vincos em diagonal, formando losangos, e a meio destes uns lavores formados pela pressão de ferros singelos. No papel que forra interiormente a tábua está assinado: Fr. JOÃO DA PÓVOA, confessor de D. João II. O autor desta encadernação foi Fr. Álvaro da Ilha, que a confeccionou em Xabregas no ano de 1493. Desta encadernação se têm ocupado vários autores, como: FRANCISCO MARTINS DE ANDRADE, Catálogo das Obras do XV Século, que possui a Biblioteca Nacional de Lisboa, págs. 48 a 49; GABRIEL PEREIRA, Boletim Mensal da Livraria M. Gomes, n.º 6, Lisboa, 1884.

Como no quadro existem dois livros, tomei este exempIar de encadernação do século XV por modelo para o meu trabalho.

O quadro Morte da Princesa Santa Joana pertence à Escola de Belas Artes de Lisboa, que me concedeu a carta do Curso Superior de Pintura com a classificação de 18 valores, e foi, há pouco, superiormente cedido em depósito ao Museu Municipal do Dr. Santos Rocha, da Figueira da Foz.

1943.

EUGÉNIA COELHO

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