BEDUíDO não é qualquer
estância das afamadas por seus ares e águas. E superior embora a muitas
outras regiões do País, nem por isso o seu nome tem figurado entre as
zonas categorizadas de repouso e saúde! É uma terra
do Norte, apagada no Mapa, e desconhecida e ignorada do nosso público
fino e viajado! Tem belezas naturais, tem recursos variados e sem conta,
mas, não obstante, ninguém sabe onde é nem quanto vale Beduído!
Mas agora também não vá o leitor pensar que se trata duma aldeola de
CAMlLO ou ORTIGÃO, pregada aí nessas serras, debruçada sobre horizontes
alpestres com água a deslizar cristalina e cantante e a vegetação
enchendo os olhos de verde e cobrindo a paisagem de maciezas de paraíso
!...
Não: Beduído, estendendo-se por essa Beira Litoral, no espaço que vai
das faldas do Caramulo até à Ria de Aveiro (Nascente e Poente) e dos
campos de Avanca até às lezírias de Salreu (Norte e Sul), é mar e é
serra, é planície e planalto!... Terra grande, magnificente, com
extensíssimos horizontes formosos e variados! Terra de fartura, de
belezas e de
saúde, como outra não haverá em todo esse Portugal de jardins à
beira-mar!
Pois bem: supondo que os cativa a paisagem verde, plana, onde a vida se
espraia na vastidão e o pensamento se eleva preso duma misteriosa
impressão de grandeza e duma ânsia forte de expansão a mil necessidades
estranhas, vagas, imprecisas − assente que amam as vistas da planície,
aí têm Beduído com as suas praias de arroz e as suas marinhas rasgadas
na lama à força e perícia de enxada!... As praias de arroz!... Uma doce
expressão da terra e a floração generosa do suor que em Fevereiro despenderam homens e gados!...
Mas gostando mais do monte e preferindo socalcos e declives, onde o esforço do homem é mais visível e mais duro e
mais ingrato, voltarão seus olhos ao Nascente, e logo outra
grandeza de terra lhes será patente! Outrora montes desnudos, agora
doces colinas manchadas com ramaria variada de pinheiros e eucaliptos,
de carvalhos e sobreiros; vales onde o Antuã
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deslizava tranquilo e só, vêem-se agora guarnecidos de povoações e moinhos, postos rio acima, a embelezar e a enriquecer; e mais
fontes e estradas e pontes, um cenário ao mesmo tempo bravo e manso que
nos fala do engenho forte do homem e dos prémios de beleza e riqueza que
a terra dá a quem lhe vota amor e trabalho.
Depois, as boas águas e os ares que dão juventude, a temperatura
regular, suavíssima! Ali se nos acalmam os nervos, ali o coração regula
mansinho, o cérebro desencendeia-se e pensa calmo − e uma confiança
alegre desperta para a vida e
para o tempo. e dá-nos humanidade e desfaz-nos egoísmos enfim, um meio
belo, que dá beleza às nossas almas!...
Quantas vezes o nosso pacato semelhante dá voltas à memória e ao Mapa à
procura da sua estância, e encontra sempre esta e aquela que não lhe são favoráveis, que não
quer escolher
porque não lhe satisfazem as exigências?! Quantas vezes ele queda
triste, desesperado de não saber duma terra
assim?!...
Mas Beduído não é só a terra que lhes pinto. Um folclore vasto e variado
reflecte a sua vida e a alma do seu povo. Costumes de trabalho, lendas,
contos, provérbios, uma fala típica e uma indumentária bela e original
revelam-nos o bom gosto, os primores artísticos, o génio sem par desta
gente!...
Não obstante algumas indústrias fabris, Beduído é mais agrícola, é mesmo
essencialmente agrícola, pois que as suas indústrias estão presas à
agricultura e à lavoura.
Os operários são filhos de lavradores, ou lavradores por si,
têm as suas pequenas terras e, cessado o labor das fábricas, lá se
voltam para elas num espontâneo e generoso carinho.
Por toda a parte e a toda a hora se respira ali o ar rijo da saúde, do
trabalho e da grande abundância! Por toda a parte
as palpitações da fecundidade, do amor activo, da bondade dos
homens e da fartura das terras. Por toda a parte o cheiro a saúde e os
encantos da fartura alegre e fácil.
E, caso singular: este povo de Beduído é magro e é sóbrio.
Não obstante a fartura de pão e tanto vinho e carnes de vitelos e
coelhos e galinhas, tantos ovos, tanto leite, tanta fruta, não obstante
toda essa abundância, alimenta-se quase exclusivamente do peixe da Ria e
do Mar.
Magros e altos, parecem uma anomalia rácica neste meio
tão favorável. A tez morena das irradiações do Mar e da Ria, que ficam
perto, não lhes consente uma vestimenta numerosa e
pesada. Qualquer fino algodão, qualquer ligeira roupagem se
veste e chega. E esta indumentária tende sempre para o escuro − é preta, é castanha, é azul!... Outra anomalia, quem sabe?!...
«Que é dos pintores?!...» E que é dos etnógrafos?!
Ora muitos do povo aqui têm um ideal sobre todos os
outros − querem a todo o custo enriquecer! E tisnam-se
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os corpos sob invernos e soalheiras, gastam-se os músculos na dureza dos
trabalhos, esgota-se a força, só para que no S. Miguel se possam contar
mais alqueires na arca ou mais cordões e correntes. Já na tenra idade os
pais deitam os filhos ao trabalho, e os moços acabam por amar a labuta,
fanatizando-se ao ganho e poupança! Mas não obstante, boa gente,
honestíssima,
franca e generosa! Com eles próprios, toda a frugalidade é pouca; mas
com os outros, manda a boa hospitalidade que se dê arca à discrição, que
dá fartura sem reservas.
E também não é triste este povo! Podeis vê-lo mudo, vergado
agressivamente para a terra, uma praga contorcida nos lábios ou formada
nas rugas, mas não é mais que a raiva forte de a rasgar para a
fecundidade. Não é mais que a gana viril de arrancar o pão à terra!...
E passado isso, eis que esta gente se mostra despreocupada, alegre e
reinadia! Pode ver-se − e é bom de ver-se! − aí pela Senhora da Saúde,
pela Senhora das Dores ou no São Paio! Vão vê-lo aí, nas romarias, e já
vai esquecido e seco o suor do trabalho, já a terra, segunda mãe, está
dada ao olvido!... A alma é então pujante, estrepitante, cantando
alegrias, fremindo entusiasmos, rodando nas danças, soltando cantigas,
rindo forte, são e alegre, numa apoteose à vida, tão farta e tão bela.
Os descantes sucedem-se; são moças folgazãs que desafiam rapazes, são
velhos a velhas, é um delírio simpático!...
E diz este:
Deus, se deu a terra ao
homem,
Foi p'ra ele trabalhar;
E até deixou escrito:
Ninguém come sem suar!...
E outro:
Deus abandonou o homem,
Deixando-lhe a maldição
De trabalhar toda a vida,
Que ao contrário não há Pão!...
E digam lá se este povo de Beduído não tem uma crença rija, sã, pautada.
por virtude e honra, afirmada em sólida realidade social!... É que a
segurança na frutificação da terra em
que trabalha, todas as condições físicas do meio, desenvolvem-lhe a
independência e a filosofia confiada, serena e superior a temores e dúvidas!... E também não sustenta vís egoísmos, que a consciência
é esclarecida e nobre e a terra é hospitaleira e farta:
Não vês que é filho de Deus
Esse homem que vai na rua?
Dá-lhe pão e agasalho,
Que a terra não é só tua!...
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E sobre tudo isto uma lenga-lenga ingénua, mas que lhe
fica bem:
Dizem as águas da fonte
Que a terra não esquece a gente;
Dizem as flores do monte
Que o sol é bom, mesmo quente;
E eu digo em meus cantares:
Homem serei, hoje e sempre!
E isto vem significar-vos que todo o seu desejo é ser sempre tal qual
− trabalhador, honesto, urbano, leal e dedicado.
Tem isto como determinante do seu fado, como imperiosa, inarredável
finalidade de vida. Quer nunca deixar de ser homem!... Quer sempre ser homem, em toda a humanidade e firme obediência do dever!
E então é vê-los em festa, ali no São Paio, por exemplo. Toda a sua alma
se nos abre, todo o oiro, todo o perfume, todo
o encanto. Nem preconceitos, nem moralismos de qualquer
ordem. É cantar, dançar, dar enfim largas a mil desejos tão
longa e austeramente contidos pelo tempo em que urgia trabalhar e ganhar
dinheiro. E são então raparigas que vêm dizer:
Ó São Paio da Torreira,
Casai-me que bem podeis,
p'ra não ter teias d'aranha
Naquilo que vós sabeis!...
E arma-se rusga e segue outro mote:
Ó mar da variedade,
Eu também já variei:
Variaram os meus olhos
Logo que aqui cheguei!
E eu não vi nem sei de povo que seja tão outro quando se toma num
ambiente de festa. Folgazão, desbragado, repentista, sentencioso:
O meu pai é cantador,
Minha mãe é cantadeira;
Sou filho de cantadores
Cantarei a vida inteira!
E as festas crescem de animação, os arraiais são postos em
maior agitação, há maior movimento e há mais cores, mais
luzes, um jogo maior e melhor, um estonteamento de corpos,
de fatos garridos e arcos de festa e foguetes e balões e frutas
e doces e bandeiras e cordões de flores e o riso e o sussuro!... O
aturdimento nos sons, nas cores, na luz, no crepitar da alegria
desmedida!... O delírio e a felicidade, a embriaguez dos corpos e das almas, no franco e generoso tributo à sensualidade
humana. O homem é isto, é assim mesmo, e não serei eu a dizer que é mal!
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Depois, quando a festa vai no auge, o povo lembra-se,
como que acorda, e começa as despedidas:
Ó São Paio da Torreira.
Ó milagroso santinho,
Pró ano cá voltaremos
Regar teu manto com vinho!
E regava. Inda há bem pouco tempo o povo fazia isto. Mas como foi
proibido, nem sequer aquela gente crê na santidade e virtude do santinho
novo, tão rosadinho, tão bem talhado. Milagroso, só o outro, o negro,
aquele que entrava num alguidar e era banhado ali, para receber a
oferenda, e ao fim da festa dar vinho santificado a quem queria.
O santo curava maleitas. E as maleitas... vinham da água! Natural estava
que o santo fosse assim festejado. E ninguém bebia água, ninguém!
Naquele arraial tudo ria, e tudo trocava as pernas. O vinho era de
preceito!
Aconselhava-se mesmo o abuso. E não lhes digo nada; toda esta
diversidade de alegrias e pândegas, constituía o espectáculo mais
consolador e extravagante que têm visto meus olhos. Um povo bondoso,
trabalhador e valente. Um povo feliz que a terra fez!... Eu creio que
foi a terra!... É certo que o fez pagão; pagão no sentir, no pensar e
nas expansões!... Mas, se a terra o fez assim, se Beduído faz isto, não
serei eu a dizer que Beduído faz mal!...
(Do livro a publicar: Delírios de Amor à Terra).
JOAQUIM RODRIGUES DA SILVA |