PREÂMBULO
PARECE
agora sestro meu isto de salvar navios.
Em período inferior a doze
meses, três importantes casos ocuparam a minha atenção.
Dos dois primeiros,
relativos ao rebocador «Cabo Sardão» e à draga «Alcântara», dei conta à
Ordem em tempo oportuno.
Agora trata-se da «Nau
Portugal», e aqui estou para relatar quanto se fez.
Sofram-me o auditório e os
leitores as minhas deficiências e supram-nas, por favor, como melhor
for.
*
* *
Na imprensa diária da
Capital, de segunda-feira, 8 de Julho de 1940, lê-se a seguinte notícia
textual:
«A Nau «Portugal» na ocasião
do seu lançamento à água sofreu um pequeno acidente que a não impedirá
de figurar na Exposição dentro de 15 dias.
Na ocasião do seu «bota-abaixo»,
ao entrar na ria de Aveiro, a «Nau Portugal» partiu uma das talhas dos
cachorros da carreira e galgando sobre o inclinado elevou-se, perdendo o
centro de gravidade. Este facto deu origem a uma aparatosa inclinação do
barco, que adornou para estibordo. Só daqui a alguns dias voltará à sua
posição vertical. O incidente em nada afecta a sólida construção do
navio nem a sua estrutura.
No tejadilho da nau seguiam cerca de
70 pessoas que, como é natural, sofreram um susto e algumas ficaram com
ligeiras escoriações.
/ 6 /
Dentro de 15 dias,
aproveitando as marés vivas, a nau deverá sair da ria de Aveiro, e
figurar na Exposição do Mundo Português».
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Fig. 1 −
A nau na carreira, na Gafanha da Nazaré, concelho de Ílhavo,
pouco antes de ser lançada à água. |
Notícia de leigo para leigos, há nela evidente louvável boa
intenção, ante a qual a afirmada perda do centro de gravidade
/ 7 /
da nau, consequência de se haver partido uma das talhas dos
cachorros da carreira e causa do emborcamento e afundamento
do navio, é coisa pouca.
O autor dá notícia não é técnico nem assistiu ao lançamento
da nau; aliás, não nos teria falado em tejadilho, em perda de
centro de gravidade, que nada é, e em cachorros da carreira,
expressão sem nexo, nem teria dito que o navio tinha sofrido
um pequeno acidente que consistia em ter-se adornado para
estibordo, quando em verdade ele se deitou e se afundou e o
acidente não foi portanto tão pequeno como isso.
Tejadilho deve estar em lugar de tombadilho.
|
Fig.2 − Outro aspecto da nau no estaleiro. |
Na sobre dita segunda-feira, à tarde, significou-me S.
Ex.ª
o Subsecretário de Estado das Obras Públicas e Comunicações
o desejo, para mim honroso, que tinha S. Ex.ª o Ministro da
mesma pasta de saber a minha opinião sobre o triste acontecimento.
Triste, na verdade!
A «Nau Portugal» afundara-se; era preciso correr a salvá-la.
Aquele nome simbólico impunha decisão e acção enérgicas
e imediatas.
/
8 /
Mais do que o péssimo efeito moral da sua ausência da Exposição e dos
não pequenos prejuízos materiais derivados
da sua perda, era para mim, nada supersticioso, a impressão
que me causara o afundamento, não de qualquer navio, mas da
«Nau Portugal», expressão sinónima de «pátria portuguesa».
Símbolo expressivo da nossa acção
civilizadora no mundo, não poderíamos ser insensíveis à sua perda;
antes, era de todos
o desejo imenso de recuperá-la quanto antes.
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Fig, 3 −
A nau após o seu lançamento à água, em 7 de Julho de 1940.
(Testemunhas oculares asseguram que apenas manteve esta posição
por espaço de tempo inferior a um minuto). |
Em satisfação, pois, do desejo do citado membro do
Governo, logo no dia seguinte, terça-feira, 9, fui a Aveiro, em visita
de inspecção à nau virada e afundada.
O estaleiro onde ela foi construída e que pertence ao
construtor naval Manuel Maria Bolais Mónica está situado no lugar
da Gafanha da Nazaré, a quatro quilómetros da cidade de Aveiro.
Ali estive examinando a nau e, no mesmo
dia, concluído o exame, regressei a Lisboa.
/ 9 /
Em 11, quinta-feira, dirigi a S.
Ex.ª o Subsecretário de Estado um
ofício (N.º 2904) dando conta do que vira e do que pensava que se devia
fazer. São dele os passos que se vão ler.
«O navio, ao chegar à água, portanto logo após o lançamento, adornou
para E. B. e deitou-se.
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Fig. 4 − Posição em que ficou a nau momentos depois de ter sido lançada à água.
(Fotografia obtida na própria tarde do desastre) |
«Cálculos e desenhos de construção não
os obtive ainda, de modo que
impossível me é dizer se a causa do fenómeno reside em defeito de
estabilidade originário, se a perda desta se deve a encalhe.
No primeiro caso, haverá que dar ao navio as condições de estabilidade
que lhe faltarem para o manter na posição direita.
/
10 /
Para o endireitamento convirá espiar o navio com robustos cabos
abraçando-o em forma de tira-vira e ligados
a ferros unhados fortemente em pontos convenientes da ria, do lado do
convés.
Do lado da quilha haverá que abrir uma vala de profundidade,
largura e comprimento convenientes.
«Esta operação fará que o barco gire em torno
do eixo
criado pelo espiamento referido.
Fechadas as aberturas do casco e esgotada a água do
seu interior, o navio flutuará.
Para garantia da posição direita, serão os mastros convenientemente espiados. Estas espias serão suprimidas, garantida que seja a estabilidade do
barco.
Todo este trabalho se fará com a draga escavadora «Engenheiro Matos» e
o rebocador «Cabo da Roca» desta Administração Geral. Ambos em
reparação neste momento, deverão estar prontos para seguir ainda esta
semana.
Alguns trabalhos exigirão a presença de mergulhadores,
para o que se enquadrarão na brigada que for destacada
para Aveiro para os serviços de recuperação da «Nau
Portugal».
Esta Administração Geral, a quem não interessam
propriamente serviços desta natureza por não estar convenientemente aparelhada para os executar, poderá, se
esse for o
desejo de V. Ex.ª, encarregar-se deles, e em tal hipótese − afirmo-o
desde já a V. Ex.ª − porá toda a sua competência, vontade e energia para
fazer flutuar o navio em curto prazo de tempo.
Poderá entender-se com o seguro na base universalmente aceita:
no cure,
no pay. Em caso de resultado positivo, receberá o que for combinado
entre o mesmo seguro e esta Administração Geral.
Parece-me bem levar ao conhecimento de V.
Ex.ª estas
considerações, antes mesmo de ter nas minhas mãos todos os elementos
necessários à formação dum juízo exacto sobre
a questão posta, porque os trabalhos que preconizo são de
fazer-se, quaisquer que sejam os resultados dos estudos
feitos sobre esses elementos.
Estas considerações são pois uma espécie
de preâmbulo a outras que terei de fazer em tempo oportuno.
Não posso fazer uma ideia perfeita do que se vai gastar; mas, ficaremos seguramente dentro de limites razoáveis e a
Administração Geral do Porto de Lisboa tem possibilidade legal, orçamental e financeira para executar o trabalho
e fazer face aos encargos».
Por despacho do mesmo dia lançado sobre
este ofício, foi
esta Administração Geral encarregada por S. Ex.ª o Ministro
/ 11 / das Obras Públicas e Comunicações de orientar e dirigir os trabalhos
para pôr a flutuar a «Nau Portugal».
Prevendo este despacho e com o intuito de andar depressa, mal regressei
de Aveiro, em 10 portanto, ordenei aos serviços competentes que se
activassem, simplificassem e abreviassem os trabalhos a fazer no
rebocador «Cabo da Roca», na draga
«Engenheiro Matos» e na cábrea «Adolfo Loureiro» a fim de os poder
enviar para Aveiro no mais curto prazo de tempo possível.
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Fig. 5 − Outro aspecto da nau deitada, tirado na mesma ocasião do antecedente. |
Ordenei outrossim ao chefe dos mesmos serviços
que partisse
imediatamente para ali a fim de me colher elementos relativos à
navegação na barra e na ria, cotas e natureza de fundos, correntes de
enchente e de vazante, recursos, etc.
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12 /
Em 16, pelas dezanove horas e cinquenta minutos, largaram
para Aveiro, a cuja barra chegaram às onze horas e vinte minutos de 18, o rebocador e a draga.
Nortada rija que soprou na costa foi causa de tamanha demora.
Devido a não ter a draga especiais
condições para o mar,
as duas unidades recolheram à protecção do Cabo Mondego
pelas catorze horas de 17, e só no dia seguinte, pelas seis horas
suspenderam de Buarcos.
Na Gafanha da Nazaré fundearam pelas quinze horas e dez
minutos do mesmo dia.
O «Cabo da Roca» regressou imediatamente a Lisboa,
afim de prestar, se fosse necessário, auxílio ao vapor americano
«Nashaba» que estava encalhado na praia de S. Julião, próximo da Ericeira, e de rebocar para Aveiro a cábrea «Adolfo
Loureiro» cujos preparativos para a sua largada para o mar
estavam em via de acabamento. Com efeito, estas duas unidades, logo em 21, pelas cinco horas, largaram para Aveiro onde
fundearam em 22, pelas dezasseis horas, próximo da nau, e
da draga.
E desta forma se juntaram todos os elementos com que se ia
operar no salvamento daquele navio, e depois na sua libertação.
*
* *
Além deste preâmbulo, consta
o presente trabalho de dois
capítulos distintos: «Salvamento» o primeiro, e «Libertação» o segundo.
No primeiro não só se mostra como resolvi o problema e
como se operou, mas ainda faço uma ligeira descrição da nau
e algumas considerações sobre as condições de estabilidade desta.
No segundo, além dos trabalhos feitos expressamente para
tornar possível a travessia da ria e a passagem da barra de
Aveiro, há uma ligeira referência à condução da nau para Lisboa.
SALVAMENTO
A «Nau Portugal» é uma nau portuguesa dos fins do
século XVII cujas dimensões principais são:
Comprimento entre perpendiculares . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . |
41,200 m. |
Boca máxima na linha de água
carregada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . |
11,400 m. |
Pontal contado do fundo da querena a meio à
linha recta dos vaus do pavimento
superior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . |
7,500 m. |
A sua construção foi cometida ao construtor naval da Gafanha da Nazaré, Manuel Maria Bolais Mónica.
/ 13 /
|
Fig. 6 − Plano de formas
da nau «Portugal» |
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14 /
Trata-se dum empírico, bom homem; mal sabendo traçar a
própria firma, consumado carpinteiro de machado, com larguíssima prática de construção naval de madeira e
com um sentido
especial, direi atávico, em trabalhos deste género de construção,
que o torna verdadeiro mestre da especialidade.
Mestre Mónica pertence a uma família de construtores
cujos
membros nascem já com especiais aptidões para este mister e
em que os pais transmitem aos filhos conhecimentos e segredos da arte.
Isto, em gerações sucessivas, o que permite classificar esta família
simples como verdadeira dinastia de construtores
navais de madeira, lídima representante daqueles antigos construtores portugueses que fabricaram os navios que nos levaram
às descobertas marítimas e que na sua arte, mestres como ninguém, davam lições ao resto do mundo, guardando para si
segredos que depois passavam para filhos somente.
Esta gente, com o instrumento perigosíssimo que é a enxó,
faz peças, verdadeiras maravilhas, que nos fazem cismar como
pôde o artista ajeitar-se para as fazer tão perfeitas.
O próprio mestre Mónica, referindo-se à habilidade de um
dos irmãos, de nome Benjamim, não escondia a sua admiração
pela arte deste, ele, o artista insigne que todos admiram.
Dir-se-ia que o carpinteiro de machado conversa com a
enxó, e esta com ele: que se entendem.
Além de tudo isto ainda, a família Mónica é benemérita
porque emprega na sua indústria dezenas e dezenas de braços.
Bem haja quem tais dotes tem!
Apontar méritos é sempre agradável, e certamente os meus
ouvintes e leitores relevarão o parêntesis aberto para tal fazer.
Reatando o fio das considerações encetadas neste capítulo,
direi que, além dum plano geométrico ou de formas que serviu para a
construção da nau (fig. 6) nenhum outro elemento logrei obter.
Cálculos de querenas direitas e inclinadas, de robustez do
navio, de lançamento à água enfim, tudo o que pudesse servir
para ajuizar da bondade do navio e do que lhe aconteceu ao abandonar a
carreira, nada veio à minha mão.
Curvas de deslocamentos, de abcissas e ordenadas do centro de querena, de
metacentros e de raios metacêntricos transversais e longitudinais, de deslocamentos por centímetro de
imersão, diagrama de estabilidade, posição do centro de gravidade do navio, etc., são elementos não vistos por mim.
Porque se tratava de reprodução, com modificações não julgadas de
substância, de tipo experimentado, entendeu-se,
olvidando-se a influência dos imponderáveis, que tais elementos eram de
dispensar, e deste modo nem a própria Direcção da
Marinha Mercante, única entidade oficial competente em matéria
de construção naval mercante, foi ouvida.
Esqueceu-se, sem intenção, é certo (que seria estupidez) mas esqueceu-se
de recorrer ao engenheiro naval para o estudo
/ 15 /
da nau, e do esquecimento resultou um acontecimento triste que é uma
lição, mas lição só para casos futuros, que o da nau, esse, é
facto consumado.
Mas, fosse como fosse, era preciso andar de pressa, e por isso, enquanto
se preparava o material e se ajustava com o construtor e com o seguro as
condições a fixar em contrato
para o salvamento, cometi ao Estaleiro Naval da A. G. P. L o
encargo de fazer um estudo urgente de querenas direitas. Para este
efeito foi-lhe enviado o citado plano geométrico. É claro que com tão
pouco era impossível fazer-se estudo completo. Dada a falta de elementos
relativos à construção e ao peso do navio para o lançamento à água,
houve que arbitrar para este um número e fixar por sentimento a posição
do centro de gravidade.
Os cálculos feitos na sala de desenho do Estaleiro sob a superior
imediata direcção do ilustre engenheiro Sousa Mendes, conduziram à
conclusão de que a altura metacêntrica do navio suposto sem lastro no
acto do lançamento era negativa: r - a = - 0,68 m. Tinha, pois, que
fazer da quilha portaló.
A falta de rigor do resultado, filha da deficiência de elementos para um
estudo a valer, era causa de eu não lhe atribuir o valor que lhe
atribuíra se não fora a deficiência. Mas, sem dúvida, esse resultado
dizia-me muito, e precisamente que o r - a, se não era negativo, era
nulo ou positivo mas muito pequeno, o que afinal significava que a
estabilidade transversal do navio no acto do lançamento era tal que o
seu em borcamento seria certo.
Havia, pois, que endireitar o navio primeiro e dar-lhe depois a
estabilidade que lhe faltava, quer baixando-lhe o centro de gravidade,
quer elevando-lhe o metacentro inicial, quer fazendo uma e outra coisa.
O abaixamento do centro de gravidade obter-se-ia com o emprego de
lastro e de colocação em baixo dos pesos amovíveis colocados em cima.
Foi o que se fez, e isso
bastou.
Não houve que recorrer à elevação do metacentro, que exigiria o emprego de meios para aumentar o momento de inércia da
superfície de flutuação em relação ao seu eixo longitudinal e único e
que por isso não tem a simplicidade da operação anterior.
*
* *
Como disse, antes mesmo da assinatura do contrato para o salvamento, a
qual é de 18 de Julho de 1940, começaram os trabalhos para a recuperação
da nau.
Além do rebocador e da draga já referidos, resolvi empregar no endireitamento a cábrea «Adolfo Loureiro», como disse
/
16 /
já, afim de diminuir a duração dos trabalhos de endireitamento,
os quais se executaram em duas fases.
O esquema junto (fig. 7) dá
ideia da maneira como se operou na primeira fase.
|
Fig. 7 − Esquema da
primeira fase dos trabalhos de endireitamento da nau «Portugal». |
Dragada a bacia de
flutuação, o esforço da cábrea exercido sobre o calcez do mastro grande, convenientemente escorado,
fez
girar o navio em torno do eixo criado pelos tira-viras de cerca de75º.
Mal chegou à Gafanha a draga, começou-se a trabalhar na
passagem dos tira-viras e, em seguida, na dragagem da bacia de
flutuação. Em 19 de Julho ficou passado o da proa, e em 20
/ 17 /
[VoI. VII - N.º 25 - 1941]
o da popa, depois de árduo e dedicado trabalho de todo o pessoal, proficientemente dirigido pelo distinto chefe dos Serviços
Marítimos da A. G. P. L., Sr. Com.te Luís Vaz Spencer.
Em 21
começou-se a dragar o fundo ao longo da nau, do lado da quilha, e em 26 terminou
este trabalho.
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Fig. 8 − Escala de deslocamentos traçada pelo Engenheiro Estanislau de Barros. |
Dei então ordem para que a cábrea, então já ligada ao calcez do
mastro grande, começasse a actuar. A nau entrou de adriçar e pelas 13
horas do mesmo dia, ao cabo de uma rotação de 75º e reconhecida a
impossibilidade de se conseguir mais, já porque estavam quase a beijo os
dois cadernais da cábrea, já porque a acção desta se exercia quase
segundo o eixo do mastro e portanto o momento adriçante era praticamente nulo, dei
por finda a primeira fase desta operação.
Tentei ainda aproveitar melhor o efeito
da cábrea fazendo-a
actuar sobre um tira-vira, mas sem resultado apreciável, pelo
que mandei passar a cábrea do lado norte, em que até então operara, para o lado sul, isto é, da quilha, o que se
fez em 29.
Neste mesmo dia, os mergulhadores começaram a tapar as portinholas de E. B. e no seguinte, 30, terminaram esta tarefa.
Começou-se imediatamente o trabalho de esgoto; e, à medida que
este ia progredindo, ia-se rodando o aparelho da cábrea e a
nau ia-se endireitando. Esgotada completamente, houve que
/ 18 / mantê-la ligada à cábrea para que não voltasse a deitar-se, que
era isto tendência sua, consequência de falta de estabilidade
transversal como já disse.
Esta ligação, qual cordão umbilical prendendo o filho à
mãe, só pôde ser cortada depois de colocado o conveniente
lastro, o que só era de fazer-se, limpo que fosse o porão do
lodo e objectos que o pejavam.
Começou então a baldeação do navio com intensidade, a
qual terminou em 31, dia em que também se começou a lastrá-lo e a dragar nova bacia de flutuação, perpendicular à primeira, na qual devia deixá-lo, terminado o salvamento.
Em 3 de Agosto, findos o lastramento e a dragagem e
liberta a nau já da cábrea, foi ela conduzida pelo «Cabo da
Roca» para a nova bacia de flutuação, onde ficou convenientemente
amarrada para terra, de popa e de proa, e aproada ao norte.
Seguia-se fazer uma experiência de estabilidade
a fim de
poder fazer ideia do grau desta.
Serviu para o efeito um dos carros das peças de artilharia
da nau e empregaram-se como peso móvel amarras de corrente.
O peso de todo o sistema móvel foi de 2,525
toneladas.
No momento da experiência, o calado médio do navio
era
de 3,82 m, medindo o da proa 3,12 m e o da popa 4,52 m.
Àquele calado médio correspondia o deslocamento de
820 toneladas medido numa escala de deslocamentos (fig. 8)
traçada pelo ilustre engenheiro Estanislau de Barros, a qual foi
amavelmente posta à minha disposição pelo Autor e que me
serviu várias vezes depois da reflutuação do navio por ter verificado que, embora traçada em base a elementos de valores
aproximados, por carência dos certos, o seu grau de rigor era
ainda assim elevado.
A experiência de estabilidade tem por escopo principal
determinar o centro de gravidade do navio; mas, no caso da
nau, o que mais me interessava conhecer era a sua altura metacêntrica
transversal.
A experiência faz-se, em água tranquila e com tempo
sereno, utilizando-se um peso móvel p (fig. 9) colocado em
pavimento elevado e que se faz deslocar dum bordo para o
outro. As inclinações do navio são dadas por um pêndulo cujo
peso mergulha em água para lhe amortecer as oscilações, e
medidas numa régua graduada como indica a figura cujo exame
nos diz serem:
|
/ 19 / |
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Fig. 9 − Gráfico de experiência de estabilidade. |
valor este que, por bom, me
deu a conhecer que estava terminada a minha tarefa e cumprida a
obrigação que o Porto de Lisboa assumira por
contrato perante o construtor.
Esta experiência foi feita na Gafanha em 5 de Agosto.
LIBERTAÇÃO
Chegados ao ponto indicado no anterior capítulo, dei ordem
para se disporem as coisas para a condução de todo o material para
Lisboa.
/
20 /
Logo no dia 6 dirigi a S.
Ex.ª o Ministro das Obras Públicas
e Comunicações um ofício (N.º 3238) do qual são estes passos:
«Em continuação do meu ofício
N.º 2904 de 11 de Julho
último para V. Ex.ª e cumprimento do despacho de V. Ex.ª
do dia seguinte nele exarado, aqui dou conta do modo como desempenhei
esta minha missão.
O programa esboçado no meu citado ofício
N.º 2904 foi integralmente seguido, com uma pequena variante, aliás
muito importante, que consistiu em fazer intervir nos trabalhos a cábrea «Adolfo Loureiro» desta Administração
Geral.
Uma experiência de estabilidade por mim feita deu-me
para altura metacêntrica latitudinal do navio 0,32 m, valor
muito bom na sua actual condição de armamento.
A estrutura da parte resistente do casco é robusta.
Com alguns pés de carneiro mais e convenientemente distribuídos; umas 70 toneladas de lastro
para dar ao navio
maior imersão; ligeiras divisórias para que o lastro não
corra de bordo para bordo; todas as aberturas do costado
e escotilhas fechadas; peados devidamente todos os objectos
que possam vir na nau e colocados o mais baixo possível:
poderá a «Nau» vir para Lisboa onde se concluirão os
trabalhos.
A quadra que se atravessa é favorável a esta navegação
e por isso, baseado na experiência feita e na forma e resistência do navio, entendo dever dizer a V.
Ex.ª que não há que ter receio de o trazer para Lisboa nas condições
ditas.
Se isto for julgado conveniente, farei seguir oportunamente um rebocador para Aveiro,
a fim de a conduzir, de
conserva com as outras unidades da A. G. P. L. que lá se encontram, para
o Tejo.
A afirmação que faço sobre a estabilidade do navio,
baseada na experiência feita, na forma e robustez do casco
e no seu estado actual de armamento, é sobretudo destinada a habilitar V.
Ex.ª a resolver imediatamente. Ela não exclui de
modo nenhum a conveniência de um estudo
completo, necessariamente demorado, de querenas direitas
e inclinadas.
O conhecimento do diagrama de estabilidade para se
ter ideia segura sobre a estabilidade estática e dinâmica, e
em especial sobre a reserva de estabilidade e o modo de comportar-se do
navio com os balanços, é necessário.
É claro que tal estudo a
fazer-se demoraria a vinda do navio para Lisboa, e a oportunidade da sua
apresentação na
«Exposição do Mundo Português» perder-se-ia».
/ 21 /
Resultou do exposto encarregar-me S.
Ex.ª o Ministro de prover a quanto necessário para a imediata condução
da nau para Lisboa.
Infelizmente veio a reconhecer-se que o grande calado da
nau a ré e o estado de assoreamento da ria em determinados pontos tornavam impraticável a saída daquela do sítio em que
estava, como impraticável era a barra a navio de tal calado.
|
Fig. 10 − Nau «Portugal».
Antecâmara da sala do ouro
(Fot. obsequiosamente cedida pelo Secretariado da Propaganda Nacional) |
Em consequência disto ordenei a retirada do rebocador,
cábrea e draga para Lisboa, onde se ficaria aguardando que as
condições da ria e da barra fossem favoráveis.
Em 11 de Agosto, terminados todos os preparativos de
viagem, largaram da Gafanha para S. Jacinto o rebocador
«Cabo da Roca» e a cábrea «Adolfo Loureiro». Não lograram
sair a barra devido ao mau estado do mar ali.
Em 12 também se não podia sair porque o estado do mar
era ainda pior que na véspera.
Assim se ia agora passando o tempo sem possibilidade de
sair. Por outro lado, tive de reconhecer que, se eu, com o
/
22 /
material do porto de Lisboa e engenho próprio, não tentasse resolver o
problema da travessia da ria e da barra, a nau ficaria por tempo
indefinido, seguramente longo, em Aveiro, e privada dela, portanto,
continuaria a «Exposição Histórica do Mundo Português».
Sem curar de saber a quem competia arcar com
as despesas a fazer para
tornar possível aquela travessia, ordenei que permanecessem em Aveiro,
embora com prejuízo do porto de Lisboa, as unidades que ali se
encontravam.
A draga «Engenheiro Matos» começou a dragar intensivamente os pontos da ria de cotas de fundo deficientes.
O lastro metido (cerca de 200 toneladas) ao qual se deviam
juntar umas 30 toneladas mais, devia ser corrido para a proa
tanto quanto possível.
Entretanto o construtor iria consolidando o navio, tapando
as aberturas, afinando o leme, etc.
Os próprios artistas, que, mal
o navio se endireitou, foram para bordo trabalhar, sob a superior e proficiente direcção do
conhecido artista, Sr. Leitão de Barros, continuariam a sua obra.
Sondagens repetidas se fizeram, assim na ria como na barra.
Na remoção do lastro para a proa notou-se que, enquanto o
calado nesta extremidade aumentava, o de ré era praticamente
constante.
Isto, que impressionou os observadores, leigos na matéria,
levou o mestre Mónica a escrever-me uma carta de que é cópia
textual o que a seguir se lê:
«Segundo a minha opinião baseada, é claro, na longa prática
destes
serviços, experimentei no sábado e segunda feira o barco com lastro à proa que levei a cerca de
11 pés produzindo
um levantamento de 2" originando pouco levantamento da popa, e ante
este
facto, resolvi não pôr lastro à proa observando ainda o seguinte:
1.º − Com lastro demasiado à proa deverá estabelecer-se alquebramento
do casco que a princípio já se deu e por consequência a perda de
estabilidade, devido à posição em que o barco fica.
2.º − Como o barco vai para a barra, deverá manter-se sempre com mais
calado à popa com cerca de 4' pelo menos de maneira que a quilha da
parte da proa nunca bata no «banco de areia» e só assim poderá o barco
sofrer menos.
3.º − Eu era de opinião, visto que a escavadora tem um depósito para cerca de 40 ton. de cada vez que
o barco fosse para o chamado «banco de areia» quando a
maré repontar manter-se-á até à preia-mar ou pouco antes da maré virar e
que seja largado o ferro para Noroeste, servindo este para a escavação e
outro para sudoeste servindo este para deslocar o barco para fazer a
descarga.
/
23 /
Não precisa andar muito avante e à ré porque as mesmas correntes de água
trazem a areia ao local, repetindo-se este serviço quantas marés sejam
precisas.
Estou convicto que V. Ex.ª não deixará de prestar a sua melhor atenção a
esta minha opinião pelo que antecipadamente agradeço penhorado.»
A boa vontade e interesse de mestre Mónica estão ali
patentes. Não podia deixar de me merecer a melhor atenção quanto me diz
ele naquela carta. O que não pude foi dar-lhe o meu acordo e por isso
ordenei o cumprimento integral e rápido da ordem sobre remoção e
embarque de lastro.
Devo notar que esta ordem tinha sido dada em 12 por mim
telefonicamente de Lisboa aonde tinha vindo por motivo de serviço.
Em 13, que é também a data daquela carta, encontrando-me
já na Gafanha onde a recebi, confirmei de viva voz a ordem telefónica.
As operações ordenadas tinham por fim modificar o caimento do navio por
forma que o calado a ré se tomasse inferior a 14'; aliás os trabalhos de
dragagem na ria seriam
dispendiosos e morosos e a travessia desta impossível, isto é, a «Nau
Portugal», que estava de facto prisioneira, não lograria libertar-se do
seu ergástulo.
Agora, ao contrário do que antes se presenciara, à medida
que se ia removendo e embarcando lastro, a nau ia levantando a popa e mergulhando a proa.
Este alçar da popa era de facto impressionante, porque, sendo ela já de
si extraordinariamente elevada, qualquer aumento na parte visível da
sua altura tomava mais flagrante o seu contraste com a proa, que cada
vez mergulhava mais. Depois, a linha que limitava o fundo negro da querena
e indicava a flutuação
carregada, imergindo de todo a proa e imergindo sensivelmente à popa, agravava, por efeito óptico, aquela impressão.
Foi então que se viu que ignorantes, e outros que parecia não o serem,
ou enfiavam desconfiados e assustados ou comentavam entre si baixinho
que era um tremendo disparate o que se estava fazendo.
Deixemos que os trabalhos avancem no sentido ordenado e consintam os meus ilustres ouvintes e leitores (nem todos engenheiros
construtores navais; os que o forem perdoem) que eu faça aqui
uma ligeira referência ao fenómeno observado em certa altura e que
consiste no facto de se não ter notado modificação na imersão à popa
quando se removia carga para a proa.
Na «Teoria do navio» estudam-se os chamados «pontos
de indiferença para as imersões de proa e de popa».
É intuitivo que o embarque dum peso determina um aumento de imersão do
navio e que o seu transporte longitudinal provoca uma variação das
imersões extremas: maior a vante do que a
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24 /
ré, segundo que o peso se deslocou para aquela ou para esta parte do
navio.
O embarque, pois, dum peso por ante-avante do centro de
volume da camada compreendida entre a primitiva flutuação e
a resultante daquele embarque, supostas paralelas, faz que, ao
passo que a distância do traço da perpendicular de vante à flutuação primitiva aumenta, a do traço da perpendicular de ré
diminui podendo tornar-se nula ou negativa, e vice-versa se o
embarque for por ante a ré do mesmo centro.
Embarquemos um peso p por forma que a primitiva flutuação L F passe a ser L' F', paralela à primeira e distante dela
a (fig. 11).
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Fig. 11 |
Transportemos p para
vante. À distância d de c, seja a
imersão na perpendicular de vante a + b e a correspondente na de ré
nula. Isto equivale a dizer que o embarque do peso p
na vertical v ' v ', não determina variação de imersão na perpendicular de ré. A variação de imersão a corresponde ao
embarque do peso, e a b à posição deste. As verticais vv ' traçadas à distância d do centro c da camada compreendida entre a nova
flutuação F ' L ' e a primitiva ou inicial F L (na prática
basta considerar c situada no centro de gravidade da flutuação
inicial) são lugares dos pontos de indiferença para as imersões
de popa ou de proa segundo que v ' v ' está por ante-avante ou por ante a ré de v v.
Se designarmos por M o momento necessário a produzir
1 cm de diferença de imersão e por δ o deslocamento por 1 cm de
imersão, a condição para que a imersão primitiva i permaneça
invariável numa ou noutra das perpendiculares de vante e de ré é dada
pela expressão:
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Como as considerações feitas são igualmente aplicáveis ao caso do desembarque de pesos, o sinal daquela expressão será
positivo
ou negativo, segundo que o peso é embarcado à popa ou desembarcado à proa, ou embarcado à proa (ou desembarcado à popa), isto é a distância d deverá medir-se sempre do lado oposto à perpendicular de imersão constante.
Se as tais pessoas ignorantes e as outras que parecia não
o serem
tivessem esta noção elementar, não se teriam surpreendido e teriam
concluído que a invariabilidade notada derivava do lastro removido ou
embarcado estar sendo colocado em ponto de indiferença para as imersões
de popa. O que havia a fazer era pôr o lastro para além desse ponto,
como se fez, logrando-se assim que o calado a ré passasse de cerca de
15 ' em que estava para 13' 10 ''. O calado avante correspondente era de
12' 5", e o médio portanto de 4,01 m.
Atingido este novo caimento e levadas as dragagens a um ponto
conveniente, resolvi largar para São Jacinto no dia 16 do mesmo mês de Agosto, o que se verificou, havendo nós largado da
Gafanha pelas dezasseis horas e quarenta e cinco minutos e chegado a
São Jacinto pelas dezassete horas e quarenta minutos. Nesta travessia a
nau arrastou no fundo em dois pontos da ria: «Caxina» e «Duas Águas »,
chegando a pegar e a perder seguimento, mas sem consequência desagradável porque, como
disse, em menos duma hora chegámos ao nosso destino.
Durante todo o dia de 17, sábado, se trabalhou na ultimação
dos preparativos para a travessia da barra e viagem para Lisboa.
A barra, em sondagens
feitas, só numa prumada deu 13 1/2
pés; nas outras deu 14 e mais.
Isto fazia prever, dado o estado favorável do tempo, que no dia seguinte
as condições seriam ainda melhores e que portanto me podia afoitar a
abandonar São Jacinto.
No mesmo dia 17 fiz uma segunda experiência de estabilidade nas novas
condições de carga e de caimento. Nesta experiência, os dados foram
(fig. 9): p = 2,855 t d = 3,39 m
Este valor de r - a é indicativo do grau de estabilidade
do navio nas suas condições actuais e estava-me dizendo que
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26 /
não seria de defeito daquela qualidade que poderia resultar facto
desagradável na viagem que se ia empreender.
No dia 18, domingo, começou a faina para a partida.
De madrugada ainda, chegou à barra o rebocador «Cabo
EspicheI», de 1500 cavalos, que eu mandara avançar de Lisboa para
auxiliar a passagem na barra, em caso de necessidade que se não
verificou afinal, e felizmente, rebocar a nau para o Tejo.
Às dez horas e trinta minutos começou-se manobrando para a saída e às
onze horas e quarenta e cinco minutos, vencidas algumas dificuldades,
filhas todas do pouco fundo da ria
em certos pontos, seguiu-se, a reboque dos rebocadores «Cabo
da Roca» e «Vouga», este da praça do Porto, e o seu mestre muito
prático no serviço da barra de Aveiro, para o sítio denominado «Espalhado» onde se devia aguardar, e de facto se
aguardou, o momento oportuno para se transpor a barra.
Este sítio deriva o nome, suponho eu, de serem ali relativamente tranquilas as
águas. Em verdade, quem observar a
violência da corrente no canal, tanto na enchente como na vazante, e a
rebentação no banco, tem de reconhecer que está entre dois perigos e que
o «Espalhado» poderá ser salvatério de quem se vir neles.
São duas coisas dignas de observação, o canal e o banco, pela velocidade
com que a água ali corre e a violência com que aqui se quebra. Chegam a
meter medo tamanhas velocidade e violência.
Isto explica que houvesse incrédulos que afirmavam que a nau nunca
sairia de Aveiro. Um engenheiro construtor naval me referiu que o
comandante de certo grande navio de pesca do bacalhau, conhecedor
daquela barra, lhe asseverara isso mesmo. Um grande industrial, esse sem
competência técnica, mas atrevido como todo o ignorante, afirmava ou afirmou o
mesmo, para quem o queria ou quis ouvir.
É com sumo prazer que registo aqui a perícia, boa vontade
e dedicação do piloto da barra, Sr. Samuel Maia, e do patrão do
salva-vidas e prático da barra, valente lobo do mar, José Maio. A
valiosa cooperação de ambos foi de importância decisiva no feliz
resultado do empreendimento, tão mal augurado
por todos anteriormente.
Às quinze horas e quarenta e cinco minutos (antes tinham-se feito
sondagens) seguimos para a barra que transpusemos sem novidade de maior
senão que a nau roçou umas duas ou três vezes no fundo, mas sem consequências de qualquer espécie.
Uma vez fora da barra, o «Cabo
da Roca» e o «Vouga»
largaram a nau, tendo esta recebido o reboque do «Cabo Espichel».
Enquanto o «Vouga» voltava para São Jacinto para trazer a reboque a
cábrea e esta não chegava, foi o pessoal embarcado na nau empregado na
remoção do lastro para ré a fim de dar a
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27 /
esta caimento mais conveniente para a sua estrutura e navegação até
Lisboa.
Eram dezasseis horas quando chegou com a cábrea o
«Vouga» que, passando-a ao «Cabo da Roca», partiu para o Porto.
Às dezoito horas e dez minutos largou para Lisboa esta
original esquadra assim formada: o «Cabo EspicheI» rebocava a nau, que tinha à popa, qual leme auxiliar, a draga, e o «Cabo
da Roca» rebocava a cábrea.
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Fig. 12 − A nau «Portugal»
no dia do seu lançamento à água. Pormenor da proa. |
Assim se navegou até se
reconhecer a conveniência da draga
deixar a nau e seguir sozinha.
Esta formação heterogénea navegou de conserva com a velocidade
conveniente. Abandonada a draga aos próprios
meios, o conjunto «Cabo EspicheI» − « Nau» distanciou-se das
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outras unidades e foi ordenado ao conjunto «Cabo da Roca» − cábrea que não perdesse de vista a draga.
Às vinte horas e vinte minutos, do dia 19 atracava finalmente
no cais da Rocha do Conde de Óbidos sem novidade a «Nau Portugal».
A viagem havia decorrido sem incidentes, com um tempo
esplêndido que parecia expressamente encomendado. Dir-se-ia que tudo − mar, vento e céu
− se combinara para festejar a
pobre nau, primeiro afundada e deitada e depois prisioneira no
sítio, qual gaiola, em que fora construída, e agora salva e livre.
Dir-se-ia que a nau se sentia feliz na sua nova condição de
liberdade e que a natureza folgava com esta felicidade tão própria dos
seres livres.
O molhe e praia coalharam-se de espectadores que foram
ver a saída da «Nau Portugal».
Era espectáculo digno de se ver, para os que estavam
embarcados, tanta gente reunida, como para esta devia ser belo
o espectáculo da passagem das seis unidades apontadas, não
contando com o salva-vidas da Junta Autónoma da Barra e Ria
de Aveiro que nos acompanhou em todas estas manobras para a saída.
Em 24 fez-se na doca seca n.º 2 da Administração Geral
do Porto de Lisboa nova experiência de estabilidade da nau nas
condições de carga e caimento em que aproximadamente se
encontra hoje:
Dados da experiência: (fig. 9)
Em 2 de Setembro, pelas quinze horas e trinta minutos,
entrou na doca de Belém onde se encontra presentemente.
*
* *
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Fig. 13 − A nau «Portugal»
integrada no conjunto da «Exposição do Mundo Português».
À direita, a «Esfera dos Descobrimentos»
(Fotografia obsequiosamente cedida pelo Secretariado da
Propaganda Nacional) |
Enfim, depois de dizer o seu último adeus à terra que lhe
foi berço e que muitos lhe destinaram para túmulo, eis a «Nau
Portugal» pujante de beleza rara, integrada na «Exposição Histórica do
Mundo Português», (fig. 13) essa criação genial que faz
reviver a alma nacional e nos dá estímulo para construirmos um
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Portugal Maior e nos faz crer em nós próprios e ter confiança
nas forças próprias.
A lusitanidade não é morta; não; atesta-no-lo esta exposição que nos diz
de quanto fomos, somos e seremos capazes, e que a pátria lusa é eterna.
Ali, em Belém, em frente dos Jerónimos,
esse símbolo
maravilhoso da nossa epopeia marítima.
Bem hajam os que o idearam e o fizeram tão lindo.
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Fig.14 − Uma bordada da artilharia da nau «Portugal».
(Fot. obsequiosamente
cedida pelo Secretariado da Propaganda Nacional). |
Jóia de arte inconfundível, visível, palpável, maravilha que
deslumbra a vista, tamanha a sua beleza, não ficaria de bem comigo
próprio se − suum cuique tuelur − não prestasse aqui
a minha homenagem ao falecido comandante Quirino da Fonseca, investigador erudito que a delineou; ao professor Leitão
de Barros, o artista genial que a fez tão bela, que nos parece
coisa de sonho, nos fascina o olhá-la, nos arrebata vê-la; ao
ilustre Engenheiro Manuel de Sá e Melo, Comissário Adjunto da Exposição,
incansável no seu empenho para que esta fosse
a melhor e que nela não faltasse a jóia que é a «Nau Portugal»; e finalmente
ao não menos ilustre Comissário, Dr. Augusto
de Castro, em cujas hábeis mãos pôs o Governo, em boa hora,
a alta direcção do Comissariado.
A todos estes ilustres Senhores, pois, as minhas homenagens, os meus parabéns.
Ao Sr. Ministro, a cujo empenho se deve o haverem-se
levado a bom termo os trabalhos de salvamento e de libertação
/ 31 / da nau, visto ter sido S. Ex.ª quem se lembrou do meu nome para tais trabalhos e quem confiadamente me cometeu o encargo dos
mesmos, o que é grande honra para mim, os meus agrade'cimentos.
Ao Sr. Subsecretário de Estado, pelo carinho com que me atendeu
sempre, iguais agradecimentos.
Enfim, aos ilustres engenheiros Estanislau de Barros e Sousa Mendes,
Comandantes Luís Vaz Spencer e Manuel Bento e a todos que comigo
colaboraram nesta tarefa; este público testemunho do meu reconhecimento
pelo contributo prestado.
*
* *
Já ninguém se lembra da situação precária em que jazeu a
nau por algum tempo.
Ainda bem!
Para alguma coisa serve a fraca memória dos homens.
Não fora ela, e aqueles que padeceram amarguras ante a expectativa da
nau não chegar ao Restelo, e que fomos todos nós, continuariam sofrendo
com as tristes recordações do passado.
Cessou o motivo do amofinamento, cessou o amofinamento.
Assim é que é. Esta a boa filosofia.
Há dias, estando na nau, lá em cima no tombadilho, comentava em voz
alta um visitante para outros visitantes que o escutavam; maravilhados
de tanto saber:
− O construtor desta nau é um sábio. Imaginem que, antes de ser lançada
à água, ele fez ver (não sei a quem) que a nau se viraria ao chegar a
ela. Não o quiseram ouvir (desconheço portanto o sujeito da oração) e,
«meu dito, meu feito», a nau virou-se (espanto do auditório).
− Virou-se? interrompeu uma ouvinte que logo formulou
esta nova pergunta, ansiosa por aprender com tão bom mestre alguma coisa
do seu muito saber:
− E como é que a endireitaram depois?
− Foi com umas máquinas, elucidou o comentador em tom
seguro.
Não ouvi mais, esgueirei-me, que era tempo de me ir embora. Tudo
esquece.
Só não olvida o passado quem, assumindo uma responsabilidade
tremenda, jogou o próprio nome.
Que teria sido de mim se a «Nau Portugal» tivesse
naufragado na barra de Aveiro ou na sua viagem para Lisboa?
Perdoe-se-me a pergunta e tenham-se como razão dela os
tormentos passados antes de a ver no Tejo.
Arrojo foi sem dúvida a
passagem da nau por aquela barra. Justificada a ansiedade de todos antes
de a fazer e enquanto a fazia...
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32 /
Não se pode neste caso dizer com o grão Camões:
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
Quanto a mim, confesso que estes trabalhos me seduzem;
que o enfrentar-lhes os perigos, arcar com as inerentes
responsabilidades e sofrer-lhes as consequências, são outros tantos
motivos de sedução; que, finalmente, recompensa, e grande, é o bom
resultado da empresa, principal fito de quem esta dirige.
Lisboa, 25-10-1940.
ENG.º SALVADOR DE SÁ
NOGUEIRA
Administrador Geral do Porto de Lisboa |